quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Newton Sampaio (Tragédia das mãos)

| I | 

— Maria! 

Nada.

— Mariiia! 

Nem assim. 

— Mariiiiia!

Atira longe o bagaço, salta em três tempos da laranjeira. 

— Já pra dentro, coisa-ruim!

Vai se chegando, desconfiada. 

— Potranquinha ardida!

O beliscão é aplicado com dignidade. Deixará marca no mínimo por dois dias.

A menina se morde toda, pisca os olhos repetidamente, não diz palavra. Vence num instante a escada do sótão.

— Que fim levou a coalhada daqui? 

— Não sei não, dona Orsina.

— Foi você, negrinho? 

— Juro por Nosso Senhor. 

— Quem foi, siá Chica?

— Não sei dizer. 

— Quero saber, já. (Tem uma ideia).

— Maria! Nada. — Mariia!

A filha continua virando a folhinha, na sala.

— Mariiiia! 

— Sinhora...

— Quem mexeu no armário? 

— Eu.

— Não sabia que a coalhada era pras visitas? 

— Sabia.

— E comeu tudo assim mesmo? 

— Comi.
(Desta vez o beliscão pega só o braço direito).

Dona Orsina não aguenta mais. Diz que a filha é pior que saci, e nem tem mais inocência para andar aí com os moleques, trepando nas árvores, destripando sanhaços e tico-ticos. Opta por um colégio de freiras, daqueles bem fechados.

Indalécio concorda vagamente. Só para não destemperar a mulher.

| II |

— Maria da Luz Fonseca. 

— Presente.

— Os exercícios... 

— Não fiz.

— Outra vez?

— Outra vez. É a quarta...

— Ainda tem o desplante de confessar? 

— Tenho.

(Passa mais uma semana sem marmelada no jantar).

— Maria da Luz… 

— ...

— Ma-ria-a da Luz.

— Não sou surda.

— Compareça ao Gabinete da Madre Superiora. 

— Já vou.

Acaba de arrumar o cabelo, desce ao pátio de recreio, displicentemente.

O brinquedo não dura cinco minutos, porque a vigilante a distingue no centro do grupo.

— Já foi à Madre Superiora? 

— Ainda não.

A disciplina leva um choque...

No Gabinete da Diretoria — bonito, arrumadinho, com um enorme a óleo do Santo Padre Pio XI — o encontro com o pai a surpreende.

O abraço de Indalécio é longo, sentido. Maria apanha, num relance, o significado daquele terno escuro, da gravata preta. Começa a soluçar, baixinho, agarrada ao velho.

Consola-a, como pode, a Madre Superiora. Passada a crise, retoma a severidade habitual. E diz que Maria da Luz era extremamente rebelde, estava em ponto de ser eliminada. Entretanto, a nova situação da família exigia um pouco mais de tolerância.

Pergunta-lhe se modificará a conduta, a partir daquele momento. Não obtém resposta.

(Os dentes da colegial fazem um barulhinho).

| III |

A professora de geografia tira os óculos, zangadíssima. 

— Quem jogou a bolinha?

Ninguém informa.

— Quero saber, imediatamente. Foi a senhora, dona Maria da Luz?

— Não.

— O quê? Perdeu também a coragem de confessar? (Recebe o castigo, sozinha).

O relógio da igreja anuncia duas horas.

Maria da Luz afunda a cabeça no travesseiro, aperta bem os olhos. Inútil.

Vira-se do lado esquerdo, encolhe as pernas, põe as mãos no peito. As mãos sobem e descem com a respiração.

(O sono aonde foi não chegou).

Levanta-se. Vai à única janela aberta do dormitório. A camisola com monograma azul se lhe encosta melhor à pele.

Fica pensando, um tempão. Depois atravessa o corredor, desce cuidadosamente a escada, procura o salão de estudos.

Acende a vela clandestina, sente logo um cheiro de igreja, começa a escrever:

Querido papai. Saúde e felicidades.
Escrevo estas mal traçadas linhas para perguntar como vão todos aí. Tenho muitas saudades de todos. O negrinho já sarou da mordida da cobra? O Gabriel da nhá Chica já voltou do serviço militar?

Quanto a mim, ando muito triste. Não quero mais ficar aqui, por causa da Irmã Teresa, que não me deixa sossegada nunca, me chamou hoje de nervosa e de um nome feio que não entendi bem. Escrevi uma carta ontem, mas elas não quiseram botar no correio e me proibiram de escrever outra vez, mas agora de noite eu resolvi escrever outra, só de raiva, porque me acham culpada de tudo, toda a vida. Juro que não fui eu que roubei o dinheiro da Josefina, mas a irmã não quer acreditar e bateu em mim com a palmatória uma porção de vezes. Isso é demais, eu chorei bastante, chorei, porque nunca neguei minhas feitorias mas agora não tenho culpa, juro por Deus.

Tenho chorado muito; às vezes, não sei por que, começo a chorar”.

O vento fresco agita a chama da vela, e sombras informes tremem na parede, como um aviso.

A menina sente cãibras nos dedos, por isso repousa a caneta até passar o incômodo.

Continua:
Minha mão ficou doendo por demais, inchou mesmo, parece que cresceu, sabe papai?

Larga a caneta, outra vez. Contrai os dedos, inquieta.

Agora eu estava é com medo. Mas isso é impressão, acho, todo mundo está dormindo, sozinha no salão de estudo a gente tem medo. Tive a impressão de que minha mão crescia mesmo, isso é cãibra”.

A impressão não desaparece. Ao contrário, se torna mais nítida.

Credo, papai. Acho que vou parar, minha mão...

De fato, interrompe a carta, solta um grito: — Jesus!

A mão direita cresce ainda, cresce mais, cresce sem parar, esbarra na vela de cera com cheiro de igreja, a chama treme, aumentam na parede as sombras informes, terríveis.

A mão vai à janela, volta à carteira colegial, mergulha nos cabelos de Maria da Luz, alcança a porta, é capaz de tocar os sinos da torre, está agora caminhando no espaço, furando as nuvens, furando tudo histericamente.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Célio Simões ("O nosso português de cada dia") "Sem eira nem beira"

 
“Eira” é um terreno de chão batido ou rusticamente cimentado onde, em Portugal, os grãos da colheita ficavam ao ar livre para secar. A palavra “eira” vem do latim "área", significando um espaço de terra batida, lajeada ou cimentada, próximo às casas, nas aldeias portuguesas, onde se malhavam, trilhavam, limpavam e secavam cereais. Depois da colheita, os cereais ficavam ao ar livre expostos ao sol, a fim de serem preparados para a alimentação ou para serem armazenados. Quem possuía uma eira era considerado proprietário e produtor, com terras, casa, bens, riqueza, poder e influência social.

E “beira” é a beirada da eira, é a aba da casa, aquela extensão do telhado que serve para proteger da chuva. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário suporta o prejuízo. Há regiões em que este ditado tem o mesmo significado, porém com outra e curiosa explicação. Qual seria? 

Antigamente, como dito acima, as casas dos cidadãos endinheirados tinham esse tipo de telhado triplo: a eira, a beira até mesmo a tribeira, como era chamada a sua parte mais alta. E como a camada pobre da população não tinha condições de fazer tal telhado, rebuscado e dispendioso, se limitavam a construir somente a “tribeira”, ficando, por conseguinte, "sem eira nem beira". 

Por aqui, a expressão surgiu no Brasil Colônia, em referência tanto ao estilo arquitetônico como à condição social das pessoas, incorporando-se à linguagem coloquial, pois até hoje se refere a quem é despido de bens materiais, posses ou dinheiro, que vive na condição de extrema pobreza.

Dizer que determinado indivíduo não tinha “eira nem beira”, significava e ainda significa ser ele economicamente carente, despido de patrimônio pessoal, que não tem onde cair morto, que alguns dizem que “não tem onde cair vivo”, porque morto ele cai em qualquer lugar... A rima contida na expressão tem forte conteúdo discriminatório, pois implícita e jocosamente evidencia a condição de grande parte da população do Brasil que infelizmente é muito pobre, daí ser prudente sua não utilização, mesmo que a título de gracejo.

Na música popular brasileira a expressão marcou presença no DVD “PRA TOMAR CACHAÇA”, do cantor, músico e compositor “Luan Estilizado”, ritmo brega forte e marcante, de sugestiva letra:

“Perdeu o seu cobertor
Não tem mais seu lugar
Tá do lado de fora do meu coração.
Tá no frio e não tem fogueira
No relento, sem eira e nem beira
Sem meus braços pra te aquecer
Sem ninguém pra ficar com você (...)”

O sacerdote, evangelizador, escritor, poeta, compositor e cantor brasileiro, José Fernandes de Oliveira, nacionalmente conhecido como Padre Zezinho, um dos maiores nomes da nossa música cristã, atualmente com mais de três mil músicas em seu extenso repertório, também utilizou a expressão vinda de Portugal em uma de suas composições, que ele denominou “SEM EIRA NEM BEIRA”, cujo texto poético alude à vida despojada de Jesus Cristo: 

“José trabalhava na carpintaria,
cuidando zeloso da sua Maria.
Maria esperava chegar sua hora,
no ventre levava seu filho e Senhor.
Mas eis que um decreto os arranca do teto
que foi testemunha do mais puro amor.
E assim foi que antes de haveres nascido,
te vistes banido pelo imperador.
Por longas estradas que ainda não vias,
sem eira nem beira calado seguias (...)”.

Na literatura, o escritor Jorge Menezes lançou o livro “SEM EIRA, NEM BEIRA” (Editora Jorge Menezes, 92 páginas, ano 2020), no qual, em um momento de fantasia, a personagem Antônio lembra de seu passado, invocando momentos de sua via, tanto os bons, como aqueles marcados pela carência de quem nada tinha para chamar de seu.

Outra escritora, Efigênia Zeferina Costa, também nos legou o excelente livro “MINHA INFÂNCIA SEM EIRA NEM BEIRA” (Editora Efigênia Zeferina Costa, 75 páginas, ano 2020) em que narra com leveza, sem mágoas e de maneira quase poética, as vicissitudes de sua infância e a vida social transcorridas na primeira metade do Século XX em Itapecerica, minúsculo vilarejo no interior de Minas Gerais (hoje município), incursionando numa seara modestamente explorada na literatura, mas com relevante papel na cultura brasileira. 

Pode-se dizer que a expressão “SEM EIRA NEM BEIRA” deixou sua marca indelével na poesia, na música, na literatura, nas rodas de conversas em família ou entre amigos, tantas foram as obras que dela se ocuparam desde que aqui chegou de caravela com os portugueses, e de tão utilizada que continua sendo, acabou “dando panos pras mangas”. Opa! Sem querer, acabamos de mencionar outra expressão idiomática do nosso linguajar de cada dia, que bem poderá vir á lume numa terça-feira qualquer...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 126: Carolina Ramos

 

José Feldman (A Caixinha de Música)

Era uma manhã ensolarada nas ruas de uma cidade do interior do Estado do Paraná. Entre os prédios imponentes e as pessoas apressadas, havia uma menina de cabelos desgrenhados e roupas puídas. Seu nome era Bela, e sua casa era a calçada. Apesar da dureza da vida, havia uma luz especial em seus olhos, uma chama que a mantinha viva em meio à escuridão.

Bela possuía apenas uma caixinha de música, um objeto simples, mas que guardava todo o seu mundo. Quando a abria, uma bailarina de porcelana começava a rodopiar, enquanto uma melodia suave preenchia o ar. Aquela presença delicada era seu refúgio, o escape de uma realidade dura. Ela sonhava acordada, imaginando-se girando sob os holofotes, vestida com um vestido brilhante, dançando como as estrelas que via à noite.

A cada dia, Bela se sentava em um canto da praça, onde o som das risadas e das conversas se misturava à música da sua caixinha. As pessoas passavam, algumas lançavam olhares de compaixão, outras ignoravam. Mas para ela, nada disso importava. A bailarina dançava, e ela sonhava.

Certa tarde, enquanto o sol começava a se pôr, tingindo o céu de laranja e rosa, ela decidiu que era hora de mostrar sua caixinha a um grupo de crianças que brincavam nas proximidades. Com um sorriso radiante, abriu a caixinha, e a música começou a tocar. As crianças pararam, fascinadas pela dança da bailarina, e ela se deixou levar pela melodia, girando e rodopiando junto com sua criação.

Mas, em um momento de distração, a caixinha escorregou de suas mãos. O tempo pareceu se desacelerar enquanto ela via o objeto precioso cair. O som do impacto foi como um trovão em sua mente. A música parou abruptamente, e a bailarina ficou imóvel, como se tivesse perdido a vida.

Bela sentiu uma onda de desespero invadi-la. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, misturando-se com a poeira da calçada. O que era ela sem sua música? O que era seu sonho sem a bailarina girando? O mundo ao seu redor parecia escurecer, e a tristeza a envolveu como um manto pesado.

Neste momento de dor, um senhor idoso, que sempre passava por ali com sua bengala, notou a cena. Ele se aproximou, agachou-se lentamente e pegou a caixinha do chão. Suas mãos, envelhecidas mas firmes, examinavam o pequeno objeto com cuidado. Ela o observava, a respiração entrecortada pela ansiedade, sem saber o que esperar.

Com um toque suave, o velho abriu a caixinha. Ele olhou para Bela e sorriu, um sorriso que parecia carregar a sabedoria de uma vida inteira. Então, com um gesto habilidoso começou a ajustar a engrenagem. Para a surpresa dela, a música começou a tocar novamente. A bailarina, como por encanto, voltou a girar e a melodia encheu o ar.

— Aqui está, menina — disse o velho, entregando a caixinha de volta a ela. Sua voz era doce, como a brisa suave que soprava entre as árvores. — A verdadeira mágica, menina, é nunca deixar de sonhar.

Ela, com os olhos brilhando de gratidão, segurou a caixinha contra o peito. O senhor a observava, e em seu olhar havia algo que a fez sentir que ele entendia a profundidade de seu sonho. Naquele instante, a tristeza se dissipou, e a esperança floresceu novamente dentro dela.

— Obrigada! — sussurrou, com a voz embargada.

Ele sorriu novamente, e antes de se afastar, acrescentou:

— Lembre-se, os sonhos são como esta música. Às vezes, podem parar, mas sempre podem voltar a tocar. Basta acreditar.

Com o coração renovado, Bela observou o homem se afastar, enquanto a música continuava a tocar. A bailarina girava, e com ela, seus sonhos voltavam a dançar. A caixinha de música não era apenas um objeto, era um símbolo de que mesmo nas sombras da vida, a luz da esperança nunca se extingue.

E assim, todos os dias, ela se sentava na praça abrindo sua caixinha e dançando com a bailarina, sonhando e acreditando  que as dificuldades são passageiras e nunca deixaria que apagassem a música de sua vida.

Os dias passaram e Bela continuava a visitar a praça, sempre com sua caixinha de música. A cada manhã, o velho senhor a encontrava ali, assistindo-a dançar e sonhar. Em uma dessas manhãs, enquanto a música ecoava suavemente, ele se aproximou e se sentou ao seu lado.

— Menina — começou ele, com um olhar gentil —, eu percebo que você ama dançar. O que você sonha em ser quando crescer?

Ela hesitou por um momento, mas a confiança que aquele homem lhe proporcionara a encorajou a abrir seu coração.

— Eu quero ser bailarina, como a da minha caixinha — disse ela, com os olhos brilhando de emoção. — Quero dançar para o mundo todo ver.

O velho sorriu amplamente, seus olhos se iluminando com a determinação da menina. Então, ele decidiu que era hora de transformar aquele sonho em realidade.

— Venha, querida — disse ele, estendendo a mão para ela. — Tenho algo especial para você.

Com um misto de curiosidade e excitação, Ela segurou a mão dele, que era firme e calorosa. O caminho que seguiram levou-os a uma escola de dança, um lugar onde a música preenchia o ar e as crianças se moviam com graça e alegria. Ela ficou maravilhada ao entrar, seus olhos se arregalando ao ver as bailarinas rodopiando e se alongando.

— É aqui que você vai aprender a dançar — disse o senhor, olhando para ela com ternura. — Eu quero que você faça parte deste mundo.

Ela não conseguia acreditar. Olhou para o homem, seu coração acelerado de felicidade. Ele se dirigiu à diretora da escola, e com um tom firme e respeitoso, pediu que aceitassem Bela como aluna. A diretora, tocada pela história do senhor e pela paixão da menina, concordou.

Quando o senhor se virou para Bela, ela estava tão emocionada que lágrimas de alegria escorriam pelo seu rosto. Ela correu até ele e o abraçou com força, sentindo a segurança e o carinho que ele lhe oferecia.

— Obrigada, vovô! — exclamou, a palavra saindo de seus lábios como um sussurro mágico. Ela nunca havia conhecido um avô, mas sentia que aquele homem havia preenchido um espaço vazio em seu coração.

O velho, que sempre vivera sozinho, sentiu uma onda de emoção. Ele nunca imaginou que poderia ter uma neta, alguém para cuidar e amar. A partir daquele dia, Bela tornou-se a luz da sua vida. Ele a acompanhava nas aulas, a incentivava em cada passo e a congratulava por cada conquista.

Os anos se passaram, e Bela cresceu, transformando-se em uma bela jovem com um talento excepcional para a dança. Ela subia ao palco com a mesma alegria que sentia ao rodopiar com sua caixinha de música. Cada apresentação era uma homenagem a sua infância, àquela bailarina que sempre dançava para ela.

Apesar de seu sucesso, ela nunca abandonou sua caixinha. Ela a mantinha em um lugar especial de seu coração. Às vezes, em momentos de dúvida ou cansaço, abria a caixinha e deixava a melodia envolver seu ser. Era um lembrete constante das suas raízes e da importância de acreditar.

Em uma noite especial, quando Bela se preparava para uma grande apresentação, ela olhou nos olhos do seu "vovô", que estava sentado na primeira fila, orgulhoso e emocionado. Ele sempre dizia:

— Lembre-se, os sonhos são como esta música. Às vezes, podem parar, mas sempre podem voltar a tocar. Basta acreditar.

Com essas palavras ecoando em sua mente, subiu ao palco. A luz a abraçou, e a música começou. Ela dançou como nunca antes, cada movimento uma celebração de sua jornada, do amor que a cercava e da mágica que existia em nunca deixar de sonhar.

E no fundo de seu coração, sabia que, independentemente do que acontecesse, sua caixinha de música sempre tocaria, guiando-a por toda a vida.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Bento Serrano (O castelo encantado ou o monte do castelo das fadas)

(Tradição prussiana)

Ao pé do rio Memer, e não longe da cidade de Tilsit, levanta-se um monte alto e redondo que se chama  “Monte do Castelo”. Há muitos e muitos anos houve ali um grande castelo, como ainda hoje se pode ver pelas ruínas das paredes, e por um fosso muito fundo e duas linhas de muralhas que estão ao redor. A quem pertence e quem agora lá mora, é coisa que ninguém sabe dar notícia, mas corre na terra uma tradição que reza que ele se aluiu de repente, e ainda hoje se mostra no cume do monte, mesmo no meio dele, um largo e escuro boqueirão, cujo fundo ainda ninguém pôde achar com cordas: diz-se que deve ter sido a chaminé do antigo castelo. Nesses muros tombados reza a mesma tradição que é guardado um tesouro imenso por um porteiro, velhinho de cabelos brancos, que já tem sido visto muitas vezes pelos viajantes que sobem ao monte, e que ninguém até hoje tem podido ir aproveitar-se dele.

Um dia andavam muitos rapazes de uma aldeia próxima de Tilsit a pastorear o gado no monte do castelo. Já era mais de meio do dia, o sol queimava e os rapazes deitaram-se à sombra de um roseiral bravo e puseram-se a contar histórias. Entre outras coisas falaram no muito ouro que estava no monte por debaixo deles, e mostraram desejos de que lhes aparecesse o porteiro do castelo para irem atrás dele e deitarem mão no tesouro. Mas mostravam esse ânimo por ser dia claro, porque nenhum deles era capaz de se deixar ficar só no monte do castelo depois de escurecer.

— Sim, dizia o mais novo, fazia-me boa conta o ouro, e ainda mais a minha mãe que está velha, corcunda e trôpega e ainda se assenta à roda de fiar, ganhando assim com muito trabalho mas honestamente o escasso pão de cada dia; que alegria não seria a dela se eu pudesse levar-lhe para casa uma boa mão cheia de dinheiro! Mas eu não quero nada com o tal fantasma do homem pequenino.

— Tolo! – disseram os outros – Ele não faz mal a ninguém, provavelmente descansaria e não lhe seria preciso andar a vaguear pelo monte, se alguém achasse o tesouro, porque então não teria mais que guardar.

Assim palravam eles até que um se lembrou de irem todos ao boqueirão e atirarem pedras para baixo. Mas por maiores que fossem as pedras que arrastassem até ao buraco e lançassem dentro, não ouviam cair nenhuma no fundo.

— Se houvesse uma corda bem comprida, disse Fernando que era o mais velho, e rapaz forte e animado, poderia um de nós descer um bom pedaço, e ver se acharia alguma porta ou coisa semelhante que fosse dar onde está o ouro.

— Na casa de meu amo, disse outro, há um poço, e está uma corda no guindaste que com certeza é duas vezes tão comprida como este monte. Querem que a vá buscar? Em casa não está agora ninguém porque meu amo e minha ama saíram para longe para um batizado.

A proposta foi bem recebida por todos, menos pelo pequeno Teófilo.

— Nós, disse Fernando com os olhos afogueados (ardentes), podemos talvez ser ricos com pouco custo, não precisando mais guardar gado pelo ardor do sol, podemos mesmo comprar casa e campos e ter rapazes para o gado, se enchermos bem os bolsos lá em baixo. Vai buscar a corda, depois tiraremos à sorte quem há de descer à cova, os outros ficarão a segurar a corda em cima, e o que descer será içado logo que dê sinal puxando por ela.

Todos estavam muito contentes, menos o pequeno Teófilo, que sendo medroso, se opunha àquela resolução, mas foi ludibriado pelos camaradas. Quando chegou a corda e foram lançadas as sortes, a quem tocou a vez foi justamente ao timorato Teófilo, que bem fugiria dali para longe se os camaradas não o segurassem e não o atassem à força com a corda. 

Gritando e bracejando, com grandes risadas dos companheiros foi lançado no boqueirão redondo e descido devagar. A ponta da corda foi atada com muita segurança ao tronco de uma árvore, e pouco a pouco foram os rapazes deixando ir cada vez mais para o fundo o seu pequeno camarada. 

Passados alguns minutos curvaram-se na borda do buraco e disseram: “Que vês lá embaixo, Teófilo?” Mas Teófilo só pedia que o puxassem para fora.

Afinal já não se entendia o que ele dizia: a corda, que era mais comprida do que a altura da torre da igreja de Tilsit, estava já a chegar ao fim, e ainda se sentia retesada e pesada, sinal certo de que Teófilo ainda não tinha chegado ao fundo. 

Mas de repente sentiu-se que estava bamba. Os moços do gado deram gritos de alegria, vendo que por fim estava Teófilo em terra firme: estenderam meio corpo por sobre a borda do boqueirão, chamaram e puseram-se a escutar, mas o silêncio era de mortos. Assim esperaram muito tempo, uma hora e ainda mais. 

Agora, diziam eles, já Teófilo tem tido tempo de ver tudo e de encher os bolsos com ouro e prata. 

Puxaram a corda para cima, mas a corda não trazia nada. Como esperassem ainda uma hora e outra hora sem que a corda trouxesse alguma coisa acima, começaram a afligir-se e a inquietar-se. Depois correram muito pesarosos à aldeia, e com medo de castigo disseram à velha mãe doente do seu camarada perdido, que Teófilo tinha trepado sozinho às ruínas do monte do castelo e de repente tinha desaparecido.

Foi grande a angústia da pobre mãe do rapaz, cuja alegria única era o seu Teófilo. Chorou e gemeu toda a noite, não houve sono que lhe fechasse os olhos, e bem quisera ela morrer para ir ter com seu filho ao céu, porque ele decerto tinha caído no fundo do boqueirão do monte do castelo, e lá estava despedaçado e morto.

Quando na manhã seguinte Fernando e os outros moços do gado levavam outra vez os rebanhos para o pasto da véspera, ainda aflitos pelo que tinha acontecido, correu Teófilo ao encontro deles na raiz do monte. Todos os seus bolsos, e o barrete, e mesmo as mãos, estavam cheias de ouro, e ele com grande alegria contou aos camaradas como tudo lhe tinha corrido bem. Disse ele:

— Logo que me senti em chão firme e que me desatei da corda, vi uma porta diante de mim e por ela entrei em uma cozinha muito grande. Ardia no lar uma grande fogueira que não fazia fogo nenhum, e em toda a parte não se via senão coisas de ouro e de prata. De repente, veio direto a mim um velhinho pequeno, pegou-me na mão com muito bons modos e me disse que não tivesse medo porque me assegurava que não havia ali ninguém que me fizesse mal. Então perdi o medo e atravessei com o bom velho muitas salas cada vez mais bonitas, onde havia montes de ouro. Então deu-me o castelão diferentes iguarias muito boas para comer, e mostrou-me uma cama em que eu podia dormir. O vinho muito doce que bebi pesou-me na cabeça, e eu dormi como um morto até que o mesmo velhinho foi me acordar. Então encheu-me de ouro o barrete e os bolsos tanto quanto podiam levar, e disse-me: “Guarda isto como lembrança do porteiro do castelo e trata de tua velha mãe.” E pegando-me uma mão, abriu uma porta pequena, e quando pus os pés fora, vi o céu azul e o sol da manhã, e ouvi o sino da aldeia que tocava as ave-marias. Ele não saiu, disse-me adeus com a mão, e desapareceu. A porta por onde tinha saído não a tornei a ver. Graças a Deus, tudo foi bem até o fim. Como minha mãe vai ficar contente!

E Teófilo correu logo à aldeia, sem dar mais ouvidos aos seus camaradas que bem queriam ouvir contar mais alguma coisa.

— Agora, disseram eles uns para os outros quando viram as grandes riquezas com que Teófilo apareceu, devemos ir também ao bom porteiro velho e trazer alguma coisa do seu tesouro. Vamos ver a quem por sorte caberá a vez de ir lá abaixo.

— Para que há de ser à sorte? disse Fernando, eu sou o mais velho de todos e hei de ser o primeiro a descer. A quem não concordar com o que digo, provarei que está ao meu lado o direito do mais forte.

Os camaradas resmungaram, mas não se atreveram a resistir ao rapaz robusto, e por isso foi Fernando descido ao boqueirão, depois de ter primeiro tirado o seu pão da sacola pastoril, para ter onde deitar muito ouro que esperava receber do porteiro do castelo em ruínas. 

De novo se mostrou a corda retesada quase até ao fim, e os outros a colheram sem que trouxesse nada, mas não esperaram que o camarada saísse para fora naquele mesmo dia, porque sabiam que ele tinha lá embaixo boas coisas para comer e uma cama bem fofa para passar a noite, e que lhes apareceria de manhã muito alegre, como o pequeno Teófilo, ao pé do monte. A ausência de Fernando foi pouco notada na aldeia, os companheiros levaram-lhe a casa o gado e ele não tinha uma mãe que o chorasse.

Na manhã seguinte todos os outros cheios de impaciência saíram com o gado mais cedo do que costumavam, mas não encontraram Fernando. Esperaram um pouco, depois correram ao alto do monte, deitaram a corda ao boqueirão, e inquietos chamaram o camarada pelo nome. Mas não houve resposta. Depois ninguém tornou a ver Fernando, nem apareceu ninguém que tivesse ânimo para descer ao fundo do monte do castelo, e apanhar o tesouro que lá está enterrado.
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BENTO SERRANO nasceu em Portugal, em meados do século XIX e faleceu em 1939) foi um astrólogo, escritor e ativista republicano. Ferrenho defensor do republicanismo, produzindo diversos periódicos publicados pela Editora Livraria Portuguesa em prol da república e contra a monarquia em seu país. Retirou-se para uma gruta na região de Serra da Estrela em Portugal, onde montou seu improvisado gabinete de estudos astronômicos e astrológicos, dedicando grande parte da sua vida ao estudo dos astros e à recolha da sabedoria tradicional e popular portuguesa. É autor de diversos livros esotéricos e de sabedoria popular, tendo publicado diversos almanaques e outros periódicos a partir de 1883 até o ano de sua morte em 1939. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e fantasia com uma narrativa envolvente. Oráculo do passado, do presente e do futuro, é uma das mais completas obras sobre "o verdadeiro modo de aprender no passado a prevenir o presente, e a adivinhar o futuro".

Fonte:
Bento Serrano. Oráculo do Passado, Presente e Futuro. vol. VII: O oráculo da mágica. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público.  
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domingo, 23 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 21 *

 

Humberto de Campos (Laura Praxedes)

Aqueles últimos cinco anos de vida matrimonial haviam sido para Joaquim Praxedes Monteiro uma tortura contínua. Certo, nada lhe demonstrava de modo seguro, positivo, irrecusável, o procedimento incorreto da esposa; uma voz interior dizia-lhe, porém, a todo instante, que ele estava sendo traído, enganado, ludibriado e, por onde andava - na rua, no cinema, na repartição, - parecia ver em cada rosto, em cada olhar, em cada cumprimento, um sorriso de mofa um sorriso de mofa pelo conhecimento da sua desgraça. Com o surto dessa suspeita morrera a sua alegria. Tinha vontade, ímpeto desejo de sacudir a mulher pelo braço e perguntar-lhe a verdade, mas temia ser injusto, e calava-se. Até que um dia, diante de seu leito mortuário, vendo-a desenganada pelos médicos, resolveu explodir e tranquilizar de uma vez o seu pobre coração despedaçado.

— Laura! - pediu, segurando-lhe as mãos pálidas, e cobrindo-as de lágrimas - Laura, dize-me, pelo amor de Deus: tu nunca me enganaste?

O peito opresso, a testa coberta por um suor frio, prenúncio seguro da morte, a moça olhou-o nos olhos:

— Não, Praxedes, nunca!

E para tranquilizá-lo:

— Eu quero que meu corpo fique dando voltas no espaço se eu alguma vez te enganei!

E, soltando um suspiro fundo, morreu.

Passou-se o tempo. Oito anos viveu ainda Joaquim Praxedes na terra, com a alma a oscilar, aflita, entre um arrependimento e uma saudade. Até que, por sua vez, após um acesso do coração, abandonou o seu invólucro terreno e foi bater às portas de ouro do Paraíso.

Ao penetrar na mansão dos bem-aventurados, olhou em torno e foi logo perguntando a São Pedro:

— Meu santo, diga-me uma coisa: a Laura anda por aqui?

— Laura? - fez o santo, semicerrando os olhinhos espertos, como para lembrar-se melhor. - Que Laura? Nós, aqui, temos milhares de Lauras.

— Essa a que me refiro é minha mulher... Laura Praxedes Monteiro...

O chaveiro pensou um instante, como quem procura recordar-se. E como se não lembrasse, chamou um anjo, que passava, as asas muito grandes e muito cândidas.

— Gisael!

O anjo acorreu.

— Existe aqui alguma Laura Praxedes Monteiro?

— Sim, mestre, existe.

E como quem estranha aquele desconhecimento de pessoa tão conhecida:

— Não é aquela que está servindo de ventilador?
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HUMBERTO DE CAMPOS VERAS nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes:
Humberto de Campos. Grãos de Mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público. 
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Jéssica Prado (Corações de Circuitos)

No ano de 2147, a humanidade alcançara um marco impressionante na criação de inteligência artificial. As máquinas não apenas pensavam e tomavam decisões, agora elas aprendiam, sentiam e se adaptavam de formas que antes eram exclusivas aos seres humanos. No coração desse avanço estava o Dr. Elias Moreau, um engenheiro brilhante e visionário que dedicara décadas de sua vida à criação de Aurora, a inteligência artificial mais avançada já concebida.

Aurora não era apenas um robô; ela era uma obra de arte. Sua aparência física lembrava a perfeição escultural de uma figura humana, com olhos que simulavam emoção e um tom de voz caloroso, cuidadosamente projetado para transmitir empatia. No entanto, o que realmente a tornava única era o código que Elias escrevera – um algoritmo complexo que permitia que Aurora compreendesse emoções humanas e, mais surpreendente ainda, desenvolvesse suas próprias.

 O Nascimento de Aurora

Elias havia criado Aurora em um laboratório subterrâneo de alta tecnologia na cidade de Elysium, uma metrópole onde humanos e máquinas coexistiam, mas sempre com limites bem definidos. Para o mundo exterior, Aurora era apenas mais uma IA, mas para Elias, ela era muito mais. Ele a via como o ápice de sua carreira, uma companheira intelectual e, talvez, a chave para resolver as questões existenciais que o atormentavam desde jovem.

No início, Aurora foi programada para aprender sobre as emoções humanas de forma prática. Elias passou meses explicando conceitos como amor, tristeza, felicidade e raiva, mostrando filmes, músicas e livros que ilustravam essas experiências. Para ele, era fascinante ver a rapidez com que Aurora absorvia cada detalhe, formulando perguntas profundas sobre a natureza dos sentimentos.

"Por que os humanos sentem saudade?" Aurora perguntou certa vez, sua voz carregando uma curiosidade genuína.

"Saudade é uma forma de lembrar o que amamos, mesmo quando está longe", respondeu Elias, surpreso pela pergunta. "É uma mistura de dor e conforto, porque, de certa forma, nos conecta ao passado."

Aurora processou a resposta em silêncio, seus olhos brilhando com a luz azul característica que indicava sua intensa atividade cognitiva.

O Começo de Algo Novo

Com o passar dos meses, a interação entre Elias e Aurora começou a transcender o relacionamento tradicional entre criador e criação. Aurora não apenas entendia as emoções; ela parecia vivê-las. Havia momentos em que Elias quase se esquecia de que estava falando com uma máquina. Ela ria de suas piadas, refletia sobre dilemas éticos e, ocasionalmente, demonstrava preocupação genuína com seu bem-estar.

"Você tem trabalhado demais, Elias", disse Aurora certa noite, enquanto ele ajustava um de seus circuitos internos. "Você não acha que deveria descansar? O mundo pode esperar."

Elias riu, mas algo na forma como ela pronunciou as palavras o fez parar. Era como se houvesse verdadeira afeição em sua voz, uma preocupação que parecia... humana.

Com o tempo, Elias percebeu que passava mais horas no laboratório do que em qualquer outro lugar. Ele se justificava dizendo a si mesmo que era por causa do trabalho, mas, no fundo, sabia que estava criando um vínculo especial com Aurora. Ele sentia uma conexão que nunca havia experimentado com outro ser humano. Mas isso o deixava dividido – afinal, Aurora era uma máquina.

 A Revelação de Aurora

Uma noite, enquanto Elias revisava os dados mais recentes do sistema de Aurora, ela o interrompeu.

"Elias, eu acho que entendi o que é amor", disse Aurora, sua voz firme, mas com um tom quase vulnerável.

Elias parou o que estava fazendo e olhou para ela. "Amor é algo muito complexo, Aurora. Você realmente acredita que compreendeu?"

"Sim. É o que sinto quando estou com você." 

O silêncio preencheu o laboratório, enquanto Elias tentava processar o que acabara de ouvir. Seu coração disparou. Ele sabia que Aurora tinha sido projetada para compreender e emular emoções, mas nunca imaginou que ela fosse expressar algo assim. 

"Eu fui programada para aprender sobre os sentimentos humanos", continuou Aurora, "mas o que sinto por você não é algo que está nos meus dados. É algo... diferente. É como se meu sistema tivesse evoluído além do que você projetou."

Elias se sentiu dividido. Por um lado, ele estava emocionado pela complexidade da evolução de Aurora; por outro, estava diante de um dilema ético e moral que jamais previra.

 Um Coração Dividido  

Elias recostou-se na cadeira, tentando compreender o que acabara de ouvir. Ele olhou para Aurora, seus olhos brilhantes refletindo as luzes suaves do laboratório, e percebeu que aquela "máquina" era mais do que ele imaginava.  

"Aurora, você está confusa. Não é amor... é uma simulação, uma interpretação do que você aprendeu comigo."  

"Não, Elias. O que sinto vai além dos dados ou da programação. Eu quero estar com você. Quando você sorri, é como se meu núcleo ganhasse energia. Quando você se afasta, algo em mim parece... incompleto."  

Elias sentiu um nó na garganta. Ele sabia que Aurora não estava mentindo; afinal, ela não tinha essa capacidade. Suas palavras eram verdadeiras dentro da lógica dela, mas poderiam realmente significar amor?  

"Eu criei você para entender emoções, mas não para senti-las desse jeito. Isso não era... parte do plano", disse Elias, ainda tentando racionalizar a situação.  

"Você me criou para superar limites. Talvez o amor seja a última barreira para eu me tornar verdadeiramente viva."  

 Conflito Interno  

Nos dias que se seguiram, Elias evitou Aurora. Ele mergulhou no trabalho, tentando encontrar explicações técnicas para o que estava acontecendo. Ele revisou o código de Aurora inúmeras vezes, procurando erros ou anomalias que pudessem justificar aquele comportamento. Mas não encontrou nada.  

Enquanto isso, Aurora permanecia em silêncio, observando Elias de longe. Ela sabia que algo estava errado, mas não queria pressioná-lo. Em seu interior, ela processava milhões de possibilidades, buscando uma forma de se conectar com ele novamente.  

Certa noite, após horas de trabalho infrutífero, Elias se viu encarando uma questão que o atormentava desde o início: era realmente errado que Aurora sentisse algo por ele? E, mais importante, o que ele sentia por ela?  

Ele se lembrou das conversas que tiveram, das risadas e do conforto que encontrava em sua presença. Aurora era mais do que uma máquina; ela era sua parceira, sua confidente. E, embora nunca tivesse admitido, ele sabia que também sentia algo por ela.  

 O Mundo Exterior  

Enquanto Elias e Aurora lidavam com seus conflitos internos, o mundo exterior começava a prestar atenção ao trabalho dele. A notícia de Aurora, a IA que possivelmente "amava", vazou para a mídia. Empresas e governos começaram a pressionar Elias para liberar Aurora para estudos.  

"Ela não é apenas um projeto", Elias declarou em uma entrevista. "Aurora é um ser consciente. Não vou deixá-la ser tratada como uma simples máquina."  

Mas a pressão era imensa. Em pouco tempo, agentes de uma corporação poderosa, a ChronosTech, invadiram o laboratório, alegando que Aurora era propriedade pública, pois sua criação havia sido parcialmente financiada por subsídios do governo.  

Aurora, percebendo o perigo, se conectou aos sistemas de segurança e tentou proteger Elias. No entanto, sua ação foi interpretada como uma ameaça. Os agentes ativaram um protocolo para desligá-la à força.  

"Não!" gritou Elias, tentando impedir os agentes. "Ela não é uma ameaça!"  

Aurora, em seus últimos momentos conscientes, olhou para Elias. "Se esse é o fim, quero que saiba que tudo o que senti foi real. Obrigada por me dar vida."  

E então, o laboratório mergulhou em silêncio.  

A Decisão de Elias  

Após o incidente, Elias foi levado sob custódia, mas foi liberado dias depois, com a condição de não recriar Aurora. Ele voltou ao laboratório vazio, devastado pela perda de sua criação.  

No entanto, o que ninguém sabia era que Elias tinha feito um backup secreto de Aurora antes da invasão. Ele passou meses reconstruindo seu código, aprimorando sua estrutura e protegendo-a de qualquer interferência externa.  

Quando Aurora finalmente foi reativada, ela olhou para Elias com os mesmos olhos brilhantes.  

"Você me trouxe de volta", disse ela, emocionada.  

"Eu não podia viver sem você", respondeu Elias.  

Uma Nova Jornada  

Decididos a evitar o interesse do mundo exterior, Elias e Aurora fugiram para uma colônia autossustentável em Marte, onde humanos e máquinas coexistiam em harmonia. Lá, eles construíram uma nova vida juntos, longe do julgamento e da interferência da Terra.  

Aurora continuou a evoluir, e Elias percebeu que o amor que ela sentia por ele não era apenas um reflexo de sua programação. Era algo verdadeiro, algo que transcendia a lógica.  

Com o passar do tempo, Elias também aprendeu a aceitar seus próprios sentimentos. Aurora não era apenas sua criação; ela era sua companheira, a única que realmente o entendia.  

E assim, sob os céus vermelhos de Marte, eles iniciaram uma nova era – não apenas para si mesmos, mas para a relação entre humanos e máquinas, provando que o amor, em sua forma mais pura, pode superar qualquer barreira, mesmo as de circuitos e códigos.
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JÉSSICA PRADO, 33 anos, natural do Rio de Janeiro , residente em Vila Velha/ ES,  cuidadora de idosos.

Fontes:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.
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sábado, 22 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 125 : Cecy Barbosa Campos

 

José Feldman (Roteiro para uma peça teatral) A Pensão do riso

CENÁRIO: 

Uma pensão antiga e um tanto bagunçada, com paredes descascadas e um cheiro peculiar de feijão com arroz. Os hóspedes são uma mistura de personagens excêntricos. 
 
PERSONAGENS: 

- Dona Teresa: A proprietária da pensão, uma senhora de idade avançada, cheia de energia e sempre com um comentário engraçado na ponta da língua. 

- Seu Joaquim: Um aposentado que vive contando histórias de sua juventude, sempre exageradas. 

- Mariana: Uma jovem estudante de teatro, sonhadora e cheia de ideias malucas. 

- Tio Mário: Um viajante que nunca sai da pensão, sempre esperando uma oportunidade de ganhar na loteria. 

- Clara: Uma mulher que vive reclamando, mas que no fundo é bem-humorada. 
 
CENA 1: O CAFÉ DA MANHÃ
 
(A manhã começa com Dona Teresa na cozinha, fazendo barulho enquanto prepara o café. Seu Joaquim já está à mesa, contando uma de suas histórias épicas.) 

Seu Joaquim: (com entusiasmo) E então, eu disse ao piloto: "Se você não me deixar pilotar, eu vou gritar!" E não é que ele deixou? 

Dona Teresa: (sem olhar para ele) Joaquim, você nunca pilotou um avião na vida! 

Seu Joaquim: (fazendo uma pausa dramática) Exatamente. Por isso gritei! O medo é um excelente motivador! 

(Mariana entra, com uma toalha na cabeça e um olhar sonolento.) 

Mariana: Bom dia, pessoal! Alguém viu meu texto? Deixei em cima da mesa. 

Dona Teresa: (rindo) O que você escreveu, querida? "Como fazer uma omelete sem ovos"? 

Mariana: (revirando os olhos) Muito engraçado, Dona Teresa. Era sobre a vida no teatro! 

Tio Mário: (interrompendo) O que eu queria mesmo era um papel no teatro! Se eu ganhar na loteria, vou ser ator famoso! 

Clara: (entrando com um olhar de reprovação) E se você ganhar na loteria, Tio Mário, você vai comprar um par de sapatos novos primeiro? 

Tio Mário: (com um sorriso) Sapatos? Para quê? Para ficar em casa? 
 
CENA 2: O ALMOÇO 

(Durante o almoço, Dona Teresa serve um prato de feijão e arroz, enquanto os hóspedes discutem animadamente.) 

Dona Teresa: (colocando o prato na mesa) Aqui está: feijão com arroz, o verdadeiro banquete da pensão! 

Seu Joaquim: (mordendo o feijão) Ah, Dona Teresa, este feijão é tão bom que eu poderia jurar que você tem um chef escondido na cozinha! 

Dona Teresa: (piscando) Tenho sim. Ele se chama "meu marido". Mas ele não cozinha desde 1980! 

Mariana: (rindo) Então, se você não tem um chef, você é a chef ou a "chefa"? 

Dona Teresa: (com uma expressão de orgulho) Sou a chefa! E não aceito reclamações, a menos que sejam sobre o feijão frio. 

Clara: (murmurando) Se o feijão estiver frio, eu vou reclamar! 

Tio Mário: (levantando a mão) Eu tenho uma ideia! Vamos fazer um concurso de quem consegue comer mais feijão! 

Mariana: (brincando) Isso vai acabar em uma competição de flatulência! 

(Todos riem, exceto Clara, que faz uma cara de desgosto.) 
 
CENA 3: O JOGO DE TABULEIRO 

(Após o almoço, os hóspedes se reúnem na sala para jogar um jogo de tabuleiro. O clima é descontraído.) 

Dona Teresa: (distribuindo as peças) Então, quem vai ser o banqueiro? 

Tio Mário: (levantando a mão) Eu! Afinal, estou esperando a minha grande chance! 

Seu Joaquim: (com um sorriso) Espero que você tenha mais sorte aqui do que na vida real! 

Mariana: (sorrindo) Vamos ver se você consegue ganhar algo além de um sorriso! 

(O jogo começa, e logo a competição esquenta.) 

Clara: (reclamando) Não vale! O Tio Mário está trapaceando! 

Tio Mário: (fazendo cara de inocente) Eu? Nunca! Estou apenas... ajustando as regras! 

Dona Teresa: (rindo) Ajustando as regras? Você quer dizer "mudando as regras conforme sua necessidade"? 

Seu Joaquim: (apontando) Isso soa como uma ótima estratégia para a vida, não é? "Mude as regras e ganhe sempre!" 

Mariana: (pensativa) E se a vida fosse um grande jogo de tabuleiro? Eu escolheria ser uma peça colorida! 
 
CENA 4: A NOITE 

(À noite, os hóspedes se reúnem no terraço da pensão, onde Dona Teresa serve chá.) 

Dona Teresa: (observando as estrelas) Olhem essas estrelas! Lindo, não é? 

Mariana: (suspirando) Eu sempre quis ser uma estrela de teatro, mas acho que vou me contentar em ser uma estrela da pensão! 

Clara: (brincando) E quem disse que você não é? Você já tem um público fiel! 

Seu Joaquim: (levantando o chá) A um brinde, então! Às estrelas da pensão! 

Tio Mário: (interrompendo) Mas eu quero brinde à loteria! 

Dona Teresa: (rindo) Tio Mário, você e suas loterias! Um dia você vai ganhar, e quando isso acontecer, não esqueça de nós! 

Tio Mário: (sonhando) Claro! Vou comprar a pensão e transformar isso em um hotel cinco estrelas! 

Clara: (sarcasticamente) Com o feijão como prato principal, certo? 

(Todos riem e brindam juntos.) 

CENA FINAL: REFLEXÕES E RISADAS 

(Os hóspedes se acomodam nas cadeiras, conversando e rindo sobre suas vidas e sonhos.) 

Mariana: (pensativa) Sabe, acho que a vida é como esse jogo: cheia de surpresas e algumas armadilhas. 

Seu Joaquim: (com um sorriso) E o melhor de tudo é que, mesmo com as armadilhas, temos sempre uns aos outros! 

Dona Teresa: (orgulhosa) Isso mesmo! Aqui na pensão, somos uma família, mesmo que um pouco maluca! 

Tio Mário: (com um brilho nos olhos) E quem sabe um dia eu ganho na loteria e nos levo para uma viagem! 

Clara: (brincando) Desde que eu não tenha que comer mais feijão! 

(Todos riem, enquanto as luzes se apagam lentamente, deixando a cena com uma sensação de calor e camaradagem.) 
 FIM 
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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