domingo, 5 de outubro de 2025

Monsenhor Orivaldo Robles (O Natal do Saci-Pererê)


Há alguns anos, em jornal de circulação nacional, tomei conhecimento de matéria sobre o Dia das Bruxas, do qual só vim ouvir falar depois de homem feito. Mais uma entre as inúmeras expressões de colonialismo cultural a que muito brasileiro, sob pretexto de modernidade ou globalização, servilmente se curva. Quem, na nossa infância, escutou um dia um palavrão como “Halloween”?  Hoje, pelo contrário, até cidadezinhas do interior comemoram uma data que não nos diz absolutamente nada. Que temos em comum com os antigos celtas ou com os emigrantes irlandeses que colonizaram a América do Norte?

Pessoas de bom senso e de amor pelas nossas tradições dão um duro danado em defesa de mitos brasileiros como o Curupira, o Boitatá, a Mula sem cabeça, o Mapinguari, a Mãe-d'água, o Caapora... e, claro, o simpático Saci-Pererê. Entendem que não precisamos tomar emprestadas figuras do folclore estrangeiro. Com as nossas e as de domínio universal já estamos bem abastecidos. Não carecemos de elementos culturais (serão culturais mesmo?) do grande poder do hemisfério norte

Aproximando-se o Natal, reaparece o símbolo da dominação consumista que escraviza o Ocidente. Não há espaço em que não se meta o velho de fardão vermelho, figura máxima do comércio natalino. Nosso Chacrinha era mais interessante.

Incrível a capacidade que o deus Mercado demonstra de substituir personagens históricos, além de sagrados, por ícones do lucro imediato. O Natal existe por uma única razão: celebrar o nascimento de Jesus, filho de Deus, que se fez homem para nossa salvação. Mas vá perguntar qual a figura marcante do Natal hoje. Possivelmente nove entre dez pessoas respondam que é o Papai Noel.

Natal nada tem da febre por alentadas vendas que, nesta época, deixa agitados o comércio e a indústria. É festa sagrada, apelo à presença amorosa de Deus, que não abandona os seus filhos. Natal remete ao pensamento de Rabindranath Tagore: “Cada criança que nasce é uma prova de que Deus ainda não perdeu a esperança nos homens.” Que vem fazer esse intruso numa celebração de fé e de amor? No calor infernal de dezembro brasileiro, que faz vestido como um esquimó no gelo? Que pretende a estranha figura?

Uma ideia me ocorreu, faz tempo: já que a verdade histórica não conta, por que não dar ao Saci-Pererê o lugar do chamado Bom Velhinho? Lenda por lenda, ele, pelo menos, é brasileiro e se veste com mais propriedade. Usa apenas calção e gorro vermelho. Magrinho, negro, garoto, não fica suando feito tampa de chaleira numa fatiota ridícula que por aqui ninguém usa. Pobre, identifica-se bem mais com o aniversariante e com a imensa legião dos que, nestes dias, se angustiam por não poderem dar aos filhos os artigos caros que as lojas anunciam. Natal no Brasil tem a ver muito mais com o moleque da mata do que com o velhote da neve. Imagino que, se o nascimento de Jesus tivesse acontecido no curral de qualquer sítio do Brasil, o Saci-Pererê, comportado e respeitoso, ia alisar com carinho a crina do burro. Jamais lhe teceria a fieira de nós, que é seu costume aplicar em animais que gosta de montar, à noite, pelos pastos afora.
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Monsenhor Orivaldo Robles nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória – Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro “Celeiro Desprovido”, com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.
Fontes:
Recanto das Letras do autor. 20.12.2011.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3398196

sábado, 4 de outubro de 2025

Chafariz de Trovas * 22 *

 

Asas da Poesia * 106 *


Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/ PR

No salão
"...Mostra-me o teu rosto!"
(Ct. 2.14)

Neste dia negro
De febril pavor,
Meu desejo único
É te consolar.
Eu preciso muito
Aliviar tua dor
E as feridas d'alma
Com amor curar.

Vai o longo dia,
Vai mui lentamente,
Meu anseio é ver
Meu amor passar.
Um olhar apenas,
Um sorrir somente
Far-me-ão só bem,
Para me acalmar.

Sem estrela alguma
- Noite tenebrosa! -
Barulhenta festa
Naquele salão...
Eu quero o perfume
Da mais bela rosa,
Que podia estar
Entre a multidão.

Entro no recinto.
E, de quando em quando,
Atento palmilho
O extenso salão...
Meus olhos sedentos
Veem cada canto,
Mas, em cada canto,
Só há ilusão.

Não vejo mais nada...
Que posso fazer?!
Naquele local
Há imenso calor.
Eu fico frustrado,
Sem poder te ver,
Só resta-me o lenço
Pra enxugar meu suor.
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Poema de 
MARIA LUÍZA WALENDOWSKY
Brusque/ SC

Busco-te 

Busco-te como um pássaro 
ao ninho de sua ninhada, 
para nutri-lo de amor, tão sonhado. 
Meus olhos seguem rumo ao rio 
delineando os obstáculos 
para chegar à imensidão do mar. 

Busco-te no sobrevoo de cada pássaro, 
então percebo do alto a me ignorar. 
A fúria cega a visão da plenitude, 
do voo no céu azul límpido. 
Ah! Procuro respostas no teu rosto, 
nas tuas mãos, no teu corpo... 

Busco-te no jogo da sedução, 
no balanço do meu corpo de mulher 
prestes a embalar 
o perfume da paixão. 
Vejo a tua indiferença... 
cruel! 

Busco-te com lindas palavras, 
ao som arrebatador do flamenco. 
Procuro-te cativar. 
Segues impassivo. 

Busco então dentro de mim: 
Forças. 
Certeza que está deixando 
uma grande mulher partir. 
Lágrimas fluem... Naturalmente ... 
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Dia de chuva.
Ruazinhas esburacadas
pra desviar das poças d’água
o rapaz pulava amarelinha
com a namorada.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Grãos

A palavra tem o poder da semente,
Que às vezes não tem outra alternativa
A não ser tornar-se forte e resistente,
Para que seu conteúdo sobreviva.

Vejo plantas, que já foram frágeis grãos,
Germinarem, comprovando as escrituras,
Procurando esgueirar-se pelos vãos
Do concreto, sem nem ter semeadura...

Solos férteis são corações preparados
Para o fado de abrigar tantas sementes...
Quando os caules já não são fragilizados,

Às raízes se espalham pelo chão...
É assim com as palavras envolventes
Que alicerçam-se, criando novos grãos.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Gotas de luz e sombra

Em forma de conchas
Com textura
De pétalas brancas
A flor retém as gotas d’água,
Enquanto
Delicados riscos
Em tons de magenta
Mesclam-se
Nessa taça diáfana - líquida
Gerânio em gotas,
Espelhos...
= = = = = = 

Fábula em Versos
adaptada dos Contos e Lendas da África
JOSÉ FELDMAN
Floresta/ PR

A Princesa e a Serpente

Na terra de Malavi, uma princesa tão bela,
Nia, a destemida, com sabedoria singela.
Um dia, uma serpente, em seu caminho se aprumou:
“Liberte-me, princesa, e o poder eu te dou.”
Nia, com cautela, refletiu sobre a oferta,
“Prefiro meu valor, a liberdade é certa.”

A serpente, com raiva, atacou enfurecida,
mas Nia, ágil, desviou da investida.
Com um golpe rápido, a serpente caiu,
e a princesa, vitoriosa, seu caminho seguiu.
A liberdade é qual tesouro que deve ser guardada,
e Nia, a guerreira, nunca foi dominada.

O verdadeiro poder vem da liberdade,
e a coragem é a chave da felicidade.
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QUADRA POPULAR

Venci! Cheguei a subir!
Nada! Ninguém me ajudou!
Mas comecei a cair,
toda gente me puxou!...
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Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Doce fada

Melífico, teu beijo verte enlevo, fada
Viajo nos sabores pelo ardor cingido
No vício imerso quero a boca aveludada
Tocando os lábios meus... Delírio é garantido

Teu corpo é sinuoso, encantadora estrada
Desejo imensamente nela estar perdido
Sorver a sedução das curvas emanada
Romper as convenções, fazer o proibido

Na teia irresistível me envolvi contente
Contemplo, arrebatado, um brilho nobre, etéreo
Não posso me negar refém desse fulgor

Faceira, aprisionaste um coração carente
Tingiste de emoção aquele céu cinéreo
Grilhões nos pensamentos colocaste, amor
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Poema de
VIVALDO TERRES
Itajaí/SC

Chave da vida

Mulher és a fonte de luz,
És o amor que conduz,
Através de ti que a espécie é garantida
Isto porque és a chave de vida!

És da espécie humana, a escolhida.
Para que através de ti o amor seja dissolvido,
Provado, bebido, sentido e o homem esteja onde estiver...
...nunca se esqueça que se ele aqui esta!
Deve muita a ti mulher.

És a luz que ilumina nossos dias!
Muitos deles cheio de tristeza e dor,
Mas com a tua presença, nos fortalece...
Isto porque tu és o amor

Quantas vezes no meu refúgio...
Eu começo a refletir e chego a me emocionar!
Lembrando-me daquela que me colocou no mundo!
E me ensinou a dar os primeiros passos e a caminhar.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Bem-querer

Meu coração calou a sua voz;
não quer mais se expressar de nenhum jeito.
fechou-se mudo dentro do meu peito,
qual indeiscente fruto, estranha noz...

E, assim, nesse ostracismo, insatisfeito,
mal-humorado e rude está feroz
porque eu lhe disse que, vivendo a sós,
nós iremos perder nosso conceito...

Francamente, não sei que mais fazer
para ver se ele assume o velho amor,
mesmo à moda de um simples bem-querer...

Então, quem sabe, volte a ser feliz
vivendo junto a quem lhe dá valor
e que outrora provou quanto lhe quis!
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Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Noite de saudade

A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura…
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura…

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura…
E eu ouço a noite imensa soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Por que é assim tão’ scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem…
Talvez de ti, ó noite!… Ou de ninguém!…
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!
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TROVA FUNERÁRIA CIGANA

Dizem que almas não morrem
são imortais... não têm fim...
A minha faz exceção
'stá morta dentro de mim!
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Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Na simplicidade
fiz-me poesia

Aprendi que nas
nuances da vida
sou viva demais.

Entendi que no minimalismo sou
insana na minha poeticidade raiz
ritmada, em versos não normais.
Entre as novas mesmices, sorrio,
porque menos sempre será mais.
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Poema de 
BENJÚNIOR
(Benevides Garcia Barbosa Júnior)
Porto União/SC

Ao entardecer...
 
Às vezes fico olhando
Os raios de sol na água
Que vibram como música
Enquanto a tarde se vai...
Outras, me pego cantando
Canções sem rimas
Que surgem a esmo, sem pensar...
Têm dias que o sol não aparece
E fica um tempo triste de se ver;
Então meus passos
Seguem direções impossíveis de saber
Se o horizonte é uma mancha na penumbra
Ou se é o dia que está a morrer...
Os últimos raios tingem o lago sereno
E um vento ameno
Passa trazendo uma saudade fria.
Os primeiros sinais da noite
Chegam com a luz pálida do casario
Enquanto mais além
Com ares suaves de poesia
Uma janela se abre para o amor
Que não vem...
= = = = = = 

Soneto de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Soneto de Lembrança Antiga

Bom dia ! pé de bugre e aroeira!
Cumprimento essas árvores nativas,
qual se fossem a ausente companheira,
de minha infância das imagens vivas...

Aquela que deixou-me, de maneira
tão bruscamente, em horas aflitivas,
hoje, surge-me à mente toda inteira,
para trazer-me flores sempre-vivas...

Busquei não recordá-la e foi em vão
meu intento sincero e imorredouro,
querendo sepultar essa ilusão...

Depois fiquei sabendo que partiu,
sem saber que pra mim era um tesouro
e nem que me deixava este vazio...
= = = = = = 

Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

A rosa e o lírio
 
Às horas tantas de uma tarde amena
Um lírio enfeita um prado reflorido
enquanto a rosa confessa à dracena
Antigos ais de um tempo já esquecido...
 
Ao lado canta a gentil açucena
E o prado aos poucos fica colorido
E o vento sopra, observando a cena,
Suavemente,  num doce gemido...
 
Então a rosa, rubra e cintilante
Bebe o alvor do lírio embevecido
E o Tempo para por um breve instante.
 
O lírio abraça a rosa esfuziante,
E no calor do prado florescido
Revive o amor com sua doce amante…
= = = = = = 

Poema de 
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Sossega, coração! Não desesperes!

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, silente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
= = = = = = 

Hino de 
ALÉM PARAÍBA/MG

Cidade Força e Trabalho
- Grandiosa, hospitaleira -
Tu és Além Paraíba
- Glória da terra mineira! (bis)

É o teu céu de um azul muito azul
- Que o sol de prata ilumina.
E o Paraíba que histórias ensina
Sob o Cruzeiro do Sul!

Terra bendita de ordem e de paz
Terra riqueza e fartura:
Ser um teu filho que doce aventura!
É ser ditoso assaz!
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Soneto de 
BERNARDO TRANCOSO
(Bernardo Sá Barreto Pimentel Trancoso)
Vitória/ES

Micro-Sentidos

Eu queria ser bem pequenininho,
Pras curvas do teu corpo atravessar;
Grutas, vales secretos decifrar;
Escalar as montanhas, com jeitinho.

Tão logo me cansar, ir rumo ao ninho;
Num carinho, por tua boca entrar,
Buscando o coração; quando alcançar,
Me alojar dentro dele, de mansinho.

Lá, só não sei se vou ter condição
De aguentar teu calor, sem derreter;
De aceitar outro ser: mãe, pai, irmão.

Pequeno, ao ver tão grande amor nascer
Que, por maior que seja o coração,
Nem no meu, nem no teu, não vai caber.
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Inglês de Souza (O donativo do Capitão Silvestre)

 
Quereis saber a história do donativo que fez o capitão Silvestre para a guerra contra os senhores ingleses? Posso contá-la, porque me achava em Óbidos nessa ocasião e fui testemunha ocular do fato.

Era no ano de 1862, e chegara do Pará o vapor Manaus, trazendo notícia circunstanciada do conflito levantado pelo ministro inglês William Dougal Christie a propósito das reclamações de súditos brasileiros e ingleses que deviam regular-se pela convenção de 2 de junho de 1858 e sob o pretexto da prisão de alguns oficiais da fragata Forte.

 A atitude arrogante e violenta de Christie indignara o povo, despertando o pundonor nacional, agitando patrioticamente os ânimos.

 Correra uma faísca elétrica do Sul ao Norte do Império e a corda do sentimento de nacionalidade, adormecida desde as sangrentas lutas da nossa integração política, posteriores à independência, vibrou sonoramente no coração dos paraenses.

 Os filhos da Amazônia ainda sentem girar-lhes nas veias o sangue de Paiquecé e de Patroni. No fundo, todos temos ainda alguma coisa dos cabanos de 1835.

 O governo imperial, receoso de uma luta armada com a Inglaterra, apelava para o patriotismo dos brasileiros, e enquanto a intervenção dos reis de Portugal e da Bélgica procurava dar uma solução amigável à pendência, tratava o gabinete de S. Cristóvão de promover o armamento do
país, e fora lembrado o meio das subscrições populares para remediar a carência de recursos no tesouro público.

 Invocava-se o nunca desmentido patriotismo dos paraenses; pintava-se o insulto do inglês com cores carregadas e os agentes oficiosos, tanto pela imprensa como pela propaganda oral, procuravam incendiar os ânimos, lançando nos corações a centelha que gera os heroísmos.

 Em Óbidos, a agitação era muito grande. O coronel Gama, chefe do partido conservador, e o juiz municipal, bacharelzinho ardente e desejoso do hábito da Rosa, eram os incumbidos de angariar donativos para o projetado armamento e não descansavam, valha a verdade, emulando um com o outro numa grande dedicação patriótica.

 Mal apontara o vapor Manaus, e já a notícia vaga, incerta, obscura, exagerada pela viva imaginação amazonense circulava com a rapidez do telégrafo. Já se julgava declarada a guerra, e os mais prudentes tratavam de reunir as suas alfaias e de pô-las a bom recado.  Os mais ignorantes tremiam de susto à ida de ver surgir no porto de cima um navio de guerra de S. M. Britânica, pejado de canhões negros e ameaçadores.

 O Eduardo Inglês, no seu sítio da outra banda, não se julgava seguro da vida, com medo do José do Monte, que prometera tirar-lhe o cacaual por demanda. 

 As listas de subscrição enchiam-se com verdadeiro delírio.

 Afluía à cidade o povo dos arredores, trazendo ovos, galinhas, bananas, cacau seco e alguns magros cobres azinhavrados com que cada um dos subscritores concorria para a compra do armamento. Desde a importante soma de quinhentos mil réis, assinada pelo coronel Gama e por dois ou três negociantes da cidade, até o produto de meia dúzia de ovos de galinha, trazidos por alguma velha tapuia, havia donativos de todos os valores, nada mais tocante do que ver a humilde fiandeira de algodão, o simples pescador de tartarugas lançarem mão do único recurso que tinham em casa, uns ovos, uma cuia pintada, um rosário de contas ou o "bacamarte" de ouro, que representava a economia de muitos meses, talvez de anos, para levá-los orgulhosamente ao coronel Gama, a fim de o ajudar a vencer os navios de guerra da rainha Vitória!

 Santo patriotismo popular, quantos heroísmos humildes e obscuros tens produzido nas épocas decisivas da nossa história!

 Alma generosa do povo brasileiro, quão mal apreciada és pelos eternos faladores da Câmara dos Deputados!

 Havia mais de 24 horas que em Óbidos ninguém se ocupava senão da Inglaterra, dos ingleses, de Christie e das eventualidades da guerra. Grupos formavam-se nas esquinas, às portas das lojas, em conversações agitadas e inquietas.

 O juiz de direito recém-chegado de Santarém saíra duas vezes da casa do capitão Severino de Paiva, que o hospedava: uma vez para ir à Câmara Municipal, onde se achavam reunidos os vereadores, e outra para conferenciar com o comandante da fortaleza.

 O delegado de polícia andava de figo verde e amarelo a tiracolo, ora muito agitado, puxando nervosamente pelos punhos da camisa e relanceando os olhos a todos os lados, ora medindo o passo com gravidade. Solene, cônscio de que desempenhava um papel conspícuo.

 O próprio vigário, o pacífico padre José, perorava nas esquinas, com gesto alevantado, a face incendiada de entusiasmo, sobraçando marcialmente a capa e teimando em chupar um cigarro apagado.  

Pairava naquele dia sobre a cidade uma atmosfera de entusiasmo patriótico que por vezes cedia a um sentimento de terror vago e inconsciente. As histórias, as observações, os comentários, as invenções sobre os ingleses abundavam.

 Alguns sujeitos tidos por avisados narravam, cercados de tapuios boquiabertos, o que haviam ouvido a viajantes sobre os costumes e a religião daquela gente que, farta de esmurrar-se em família, estava tentando reduzir-nos à escravidão e ao opróbrio para livremente e sem peias comer-nos as bananas e as laranjas dos quintais, com cascas e tudo.

 Saindo do seu mutismo tradicional, o escrivão Ferreira contava numa roda de senhoras que os ingleses não querem saber de santos, que adoram uma cabeça de cavalo e se divertem socando as ventas aos amigos, para lhes aliviar com essa amistosa operação o cérebro sujeito a congestões violentas, pelo vapor da cerveja que sobe do estômago.

 Afirmava o Marcelino que os ingleses falam atrapalhadamente para melhor esconder os seus segredos e surpreender os nossos e repisava o caso do tal que não entendia o português quando lhe cobravam uma conta.

 O José do Monte jurava por Santo Antônio que vira o Eduardo Inglês devorar queijo bichado, abacate com azeite e vinagre, e a alface crua, sem tempero, como um boi a comer capim.

 O professor Gonçalves explicava, mas sem que o acreditassem muito, que numa cidade de Inglaterra chamada Escócia os homens andavam de pernas de fora, como os caboclos do mato, com roupas de muitas cores, e a maior fidalguia da terra vivia roubando nas estradas e bebendo vinho até cair debaixo da mesa, que era essa a sua maior glória, lera-o num livro que lhe emprestara o Antônio Batista, livro escrito por um tal Walter Scott, inglês de nação.

 O que mais entusiasmava a rapaziada era ouvir o capitão Matias, valentão dos quatro costados, exclamar muito cheio de Si:

 - Pois vocês, meu povo, estão com medo dos tais ingleses "comes frangues com batates?" Pois não sabem que os ingleses só prestam no jogo do soco, e que têm à arma branca um horror dos diabos? Eles são grandes em linha, a cem braças de distância, armados de suas espingardas aperfeiçoadas. Não arredam pé, morrem como moscas, sem deixar o seu lugar. A isso deveram a famosa vitória de Waterloo... Mas corpo a corpo, braço a braço, em combate à baioneta, não valem dez réis de mel coado, afianço eu. Um herege inglês, vendo uma boa faca de ponta, uma bicudinha bonita, fica logo que nem cera, branco de meter pena. Quando eles desembarcarem aqui, é metermo-nos no mato, depois cairmos de improviso em cima deles com uma boa carga à baioneta, e não fica um só para remédio. Esses tratantes têm tanto horror ao sangue, que o rei deles, para que não desfaleçam de susto nas batalhas, manda-os vestir a todos de vermelho. São uns maricas, digo-lhes eu!  

Toda a gente ria, gozando as bravatas do Matias, os rapazes, cheios de boa vontade, antegozavam o prazer de espetar meia dúzia de ingleses na ponta de uma faca americana.

 Em outro grupo, formado pela gentinha, um ex-praça de linha, natural do Rio, carioca da gema, o Antônio da Ribeira, abundava no juízo expendido pelo capitão Matias:

 - Vocês hão de ver que os ingleses não chegam por cá. Só os capoeiras da minha terra dão cabo deles, é o que lhes digo.  Pois isso é lá gente que resista a uma rasteira e a uma cabeçada
em forma, dada com arte? E mais, pelam-se de medo das navalhas!...

 E em apoio da sua opinião, o Antônio da Ribeira narrava com entusiasmo:

 - Uma vez um camarada meu, ele era dos Permanentes da Corte, que é minha terra. Esse meu camarada levou dois ingleses para a estação, sem desembainhar o terçado. Os ingleses atacavam a murros e "goddemes", e o Permanente era só rasteiras e cabeçadas, e zás! trancafiou os "beefs" no xilindró. Pois se eles estão sempre bêbedos como se para eles a festa da Penha fosse todos os dias!

 A animação e o entusiasmo patriótico cresciam. A tarde, as listas de subscrição continham mais de duzentos nomes.

 O coronel Gama estava contentíssimo, e o juiz municipal sentia uma emoção crescente, mirando de soslaio a lapela do casaco, com visões de hábito da Rosa.

 Na botica do Anselmo, discutiam-se os fatos. Uma pessoa lembrou que não estava nas listas o capitão Silvestre.

 - Já temos nove contos de réis - dizia o coronel Gama. - O capitão Silvestre há de inteirar a dezena.

 - Eu me incumbo de lhe falar, de convencê-lo com jeito – adiantou o juiz municipal.

 - Não há de custar muito a convencê-lo - observou secamente o Gama. - O Silvestre não recusa o seu concurso, tratando-se de desafrontar a honra nacional.

 - Vocês o dizem... - resmungou azedamente o boticário.

 - Tenha paciência, Anselmo - retorquiu o coronel. - Você tem lá suas razões de zanga com o Silvestre; mas o homem é um patriota às direitas, provou-o muito bem na cabanagem. Vocês lembram-se do que ele fez quando os rebeldes quiseram entrar em Óbidos?

 - Quem se não lembra?

 - O capitão Silvestre, ao tempo em que era um simples negociante, fez o que todos sabem. Que não fará agora que é o homem mais rico de Óbidos?

 - Bem lembra a cabanagem - disse o padre José, desfazendo um cigarro. - O Silvestre e os filhos carregaram à cabeça pedras para as fortificações. Correra que os rebeldes estavam a poucas léguas da cidade, e o terror era geral. A maior parte das famílias preparou a fuga para Manaus. O capitão Silvestre fechou a loja, saiu para a rua, animou os timoratos e convenceu a todos de que era melhor resistir do que abandonar a povoação a meia dúzia de tapuios tontos. E para juntar o exemplo à palavra, ele e os filhos, as crianças inclusive, carregavam à cabeça as pedras necessárias para fortificar a cidade, que a sua energia salvou do saque.

 Por entre as baforadas de fumo dos cigarros, tendo por principal assunto o capitão Silvestre, a palestra prolongou-se. Gabaram a sua generosidade, a sua riqueza e o seu patriotismo.

 Silvestre era um dos mais abastados negociantes e fazendeiros do município.  A sua incrível atividade, que contrastava com a indolência geral, a sua inteligência ilustrada pela leitura constante de bons livros fizeram-no um industrial progressista que sabia aproveitar os elementos postos à sua disposição pela soberba natureza do Amazonas.

 Não cessavam elogios de amigos e censuras encapotadas de invejosos, quando, mesmo a talho de foice, contou alguém que passava, que o capitão acabava de abeirar ao porto de baixo na sua grande galeota de negócio.

 Entre o Gama e o juiz municipal, formou-se o acordo de irem juntos à casa do homem, apresentar-lhe a lista de subscritores.  

O capitão, à vista de seus precedentes, não assinaria menos de trinta "bacamartes" para tão patriótico fim.

 O "bacamarte" era uma moeda de ouro dos Estados Unidos que corria então com abundância no interior do Pará. Valia pouco mais ou menos trinta e seis mil réis da nossa moeda.

 Com a subscrição do Silvestre, as somas obtidas em Óbidos passariam de dez contos. Obtidos, o Gama e o juiz municipal fariam um figurão.

 O capitão Silvestre acabava de chegar à sua grande casa da rua de Bacuri. Os baús ainda estavam espalhados na sala térrea que dá para a travessa da rua do Porto, e sobre um deles sentara-se negligentemente o fazendeiro, à espera de que viessem iluminar a sala ainda escura.

 Era um homem de cerca de sessenta anos, de estatura meã, nervoso e seco. Os cabelos grisalhos, cortados à escovinha, davam-lhe à fisionomia um ar severo. Exprimia-se bem, mas todas as suas palavras tinham um tom autoritário, proveniente do hábito de mandar.

 Nas suas grandes fazendas de cultura e de criação, uma ordem sua era obedecida sem réplica, não só pelos escravos e agregados, mas ainda por todos os vizinhos que ele protegia, mas que o respeitavam como a um superior.

 Tendo-o visto chegar, fui vê-lo.  Recebeu-me familiarmente, sem levantar-se do baú em que se
assentara. Conversávamos alegremente sobre a colheita do ano, quando avisaram a visita do coronel Gama e do juiz municipal.

 Acendeu-se um lampião de azeite. As visitas foram recebidas na mesma sala em que nos achávamos.

 O Gama e o juiz municipal entraram com ar solene e sentaram-se gravemente.

 - Senhor capitão - começou o juiz pausadamente, - Vossa Senhoria já sabe talvez o motivo da nossa visita, e julgo que nada teremos a acrescentar a fim de pelo que viemos à sua casa.

 O juiz estava enganado. O capitão não sabia do que se tratava.

 - Pois então vamos pô-lo ao fato de tudo! – prometeu com ênfase o coronel Gama.

 Mas o bacharel não lhe deu tempo para cumprir a promessa. Endireitou-se na cadeira e com um acionado brando, medido, elegante, expôs:

 - Os brios nacionais, sr. capitão, acabam de sofrer uma sangrenta afronta de um representante oficial da velha Albion.

 - Da Inglaterra... - explicou o Gama, complacente.

 - Não me admira isso - murmurou o Silvestre com os lábios meio fechados. - E o governo?

 - Aí é que pega o carro! - exclamou o coronel Gama, dando uma forte palmada na perna direita.  - Eis aí a questão, "that is the question", como dizem os tais ingleses, ou "hoc opus hic labor est", como diziam os romanos do outro tempo.

 E o juiz municipal, tendo assim mostrado a sua erudição em línguas, continuou:

 - O governo não podia conservar-se indiferente ao insulto do Bretão à dignidade nacional, mandando aprisionar navios brasileiros em plena paz e dentro da formosa baía de Guanabara. Entretanto, as circunstâncias eram críticas. O inglês ameaçava a cidade do Rio de Janeiro, que não está preparada para a defesa, e o nosso país, como todos nós sabemos, não pode lutar de frente com as hostes da soberana dos mares. Daí a necessidade da prudência, como muito bem compreendeu o gabinete imperial. O governo brasileiro apesar de ter carradas de razão, pois se escudava numa convenção solene e no direito das gentes, limitou-se à via diplomática.

 - Satisfações pelo insulto recebido! - exclamou o capitão Silvestre com um relâmpago no olhar.

 - Que quer? - desculpou o Gama, - o país não estava preparado...

 - E não o está ainda - corrigiu o juiz. - Demais, não foram propriamente satisfações que deu o Brasil, mas explicações sobre a demora dos processos arbitrais, e, enquanto isso, tratou o governo de preparar o país para uma luta possível. E como as finanças.., o estado pecuniário não é lisonjeiro, resolveu recorrer ao nunca desmentido patriotismo dos brasileiros...

 - Ah! - fez o capitão Silvestre, sentando-se pesadamente no baú.

 E com orgulho:

 - O presidente da província há de se convencer que vale muito ter amigos dedicados. O governo não pode ser indiferente às provas... sim, a tudo que temos. Eu, o Vitorino, o Figueiredo, o Nunes e o Machado assinamos quinhentos mil réis cada um! O Antônio Batista, aquele forreta, dez bacamartes de ouro!

 E o coronel Gama mostrava as listas cheias, que sacara da algibeira interna da sobrecasaca de pano fino, lustrosa e grave com passadeiras de cordão de seda.

 Mas o astuto bacharel não perdeu a ocasião de lhe dar um "xeque-mate". Tirou do bolso do fraque um papel que desdobrou com elegância, dizendo: - No alto da minha lista, ficou um lugar destinado a assinalar a generosidade e o patriotismo do capitão Silvestre, o mais abastado fazendeiro do município...

 Ergueu-se o capitão Silvestre, denunciando no rosto uma resolução enérgica. 

O juiz puxou o lápis da carteira e ofereceu-lhe graciosamente, todo curvado, antegozando o prazer de alcançar um donativo valioso que mostrasse a sua influência e o seu prestígio no lugar em que exercia a judicatura. 

Recusou Silvestre o lápis com um gesto galhardo:

 - Escreva Vossa Senhoria mesmo, "senhor doutor Silvestre José Rodrigues de Sousa"...

 - Silvestre... José... Rodrigues.. de Sousa – repetiu o juiz, pronunciando cada nome à medida que escrevia no alto de uma lista, curvado sobre uma pequena mesa de cedro onde estava o lampião.

 Quando acabou de escrever os nomes todos, voltou-se risonho de esperanças para o capitão Silvestre, perguntando:

 - Com quanto subscreve?

 - Escreva - tornou o capitão. - Escreva Vossa Senhoria ... cem bacamartes...

 - Cem "bacamartes" de ouro! - exclamaram Uníssonos o juiz e o coronel, transportados de
admiração e de inveja, pela generosidade da dádiva principesca, que deixava a perder de vista os faustosos quinhentos mil-réis do Figueiredo, do Machado, do Nunes, do Gama e do Vitorino.

 - Cem "bacamartes" de ouro! - repetiram num aturdimento cheio de miragens de condecorações.

 - Cem bacamartes - afirmou o capitão Silvestre com indignação concentrada.

 E logo bradou numa explosão de cólera que acaçapou os dois amigos, metendo-os pelo chão abaixo:

 - E quinhentos cartuchos embalados para guerrear esse governo que barateia os brios da Nação.
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Herculano Marcos Inglês de Souza foi um renomado escritor e político brasileiro, reconhecido por introduzir o Naturalismo na literatura brasileira e por sua atuação como político e jurista. Nascido em Óbidos/Pará, em 1853, ele se formou em Direito na Faculdade de São Paulo em 1876 e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897. Sua obra, marcada por uma profunda conexão com a Região Amazônica, retrata com detalhes a vida local e a relação entre o homem e a natureza. Introdutor do Naturalismo no Brasil, influenciado por escritores europeus como Émile Zola. Sua obra se destaca pela abordagem da vida amazônica, com detalhes regionais e a influência do ambiente na vida das pessoas. Publicou seus primeiros romances sob o pseudônimo de Luís Dolzani. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão O Cacaulista (1876), História de um pescador (1876), O Coronel Sangrado (1877) e Contos Amazônicos (1893). Ocupou cargos políticos, como presidente das províncias de Sergipe e Espírito Santo. Também atuou como jornalista, advogado, banqueiro e professor de direito comercial e marítimo. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1918.

Fontes:
Inglês de Souza. Contos amazônicos. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público.  
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