quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 109 *


Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Filigrana

Nem sempre o que sinto é o que escrevo...
Atrevo-me a pensar, perco o poeta,
Poesia é amor em alto-relevo...
Desejo é só ânsia... incompleta.

Nem sempre o que escrevo é o que eu sinto,
Não minto - todavia - as emoções,
O amor é uma taça, o vinho... tinto
É a transfusão do sangue das paixões.

Nem sempre o que me mata é o que me inspira,
Mas há, na minha dor, tanto sentido,
Que quando estou ferido, agindo a lira
Transformo em canção, o meu gemido.

Nem sempre o meu sempre é poesia,
O tempo fantasia a abstração...
O amor dilui a dor na alegria
E tudo flui em forma de emoção.

Meu sempre é ter, dentro da retina,
A luz que ilumina quem respeito...
O amor é uma doce bailarina
Que dança... cristalina... no meu peito.

O amor é sempre um sempre... e é tão bonito
Sonhar... com a ingenuidade de um menino,
Que crê que todo amigo é infinito
E é mais que um presente do destino.

Meu sempre é tão... singelo... e natural,
E o meu sorriso triste, tão... humano...
Que quando me maltrata algum... igual,
O meu amor se ri do desengano.

No fundo, tudo é fina porcelana
Que enfeita a solidão de uma estante,
O amor é muito mais que a filigrana
Que não precisa mais de um diamante.

Amar requer afeto... aceitação
E não um sentimento possessivo,
Que faz do egocentrismo, uma prisão
E a libertação me mantém vivo.

Meu sonho é real ou impreciso,
Porém nunca me encanta o desencanto...
Se choro, a semente do meu riso
Irriga-se no sal que vem do pranto.

O sempre é fugaz... o tempo corre
E escorre como o sangue em cada veia,
Mas minha esperança, que não morre,
Aguarda o diamante na bateia.

Porém o inequívoco anseio
De ter a inspiração brotando em mim,
Dilui meu sonho bom no que semeio
E afaga a brotação do meu jardim.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Há dias assim...

A lembrança do seu olhar,
Do perfume permanece.
A música da última dança...
E a saudade insiste!
Há dias assim
E noites também...
= = = = = = 

Quadra Popular

Eu casei-me e cativei-me,
inda não me arrependi;       
quanto mais vivo contigo, 
menos posso estar sem ti.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

História antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube porque foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…
= = = = = = 

Sonetilho de
EUCLIDES DA CUNHA
Cantagalo/RJ, 1866 – 1909, Rio de Janeiro/RJ

Comparação

"Eu sou fraca e pequena..."
Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,

Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.

Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:

Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela...
E no entretanto — é um mundo!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Pedra bruta

Pedra bruta que sou, me dá trabalho
Tirar de mim as lascas a cinzel...
Quantas vezes que eu já errei o malho,
Deixando a outra mão feito um pastel!

Quantas vezes também eu me atrapalho,
Mandando o que já fiz pro beleléu...
E o recomeço deixa-me em frangalho,
Pois bem sei eu como isto é cruel!

Já foram, assim, dez lustros de labuta,
Mas continuo ainda pedra bruta...
E mil pedaços já arranquei de mim!

Vou ter que contratar alguém bem destro
Que a essa lapidação coloque um fim,
E eu volte a trabalhar só com meu estro!
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
(Flor Bela de Alma da Conceição Espanca)
Vila Viçosa/Portugal, 1894 – 1930, Matosinhos/Portugal

A um livro

No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto! …

Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! … Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! …
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Sempre foste minha estrela,
eu com gosto te seguia,
na tormenta te apagaste,
fiquei sozinho e sem guia.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

As folhagens agitadas
sentem o frescor
do crepúsculo
que vai de encontro
ao horizonte, enquanto
gaivotas repousam
no por do sol.
= = = = = = 

Poema de 
CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
São Luís/MA, 1863 — 1946, Rio de Janeiro/RJ

Recorda-te de mim

Recorda-te de mim quando de tarde
Gloriosa a morrer na luz do dia
E nos seios da noite a serrania
Em candores de neve se ocultar
Recorda-te de mim nesse momento
As estrelas saudosas do penar.

Recorda-te de mim quando alta noite
Escutares um canto de tristeza
Descontando por toda a natureza
Nos formosos harpejos do luar
Recorda-te de mim quando acordares
E sentires no peito do adolescente
Um espirito em mágoa florescente
Uma hora em teu peito a suspirar.

Recorda-te de mim quando no templo
Numa prece serena, doce e fina
Sob o altar florescido de Maria
Teus segredos à Virgem confiar
Recorda-te de mim nesse momento
Para que minha dor tenha um alento
E me deixe morrer com o pensamento
De que morro feliz só por te amar.
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Poeta à antiga

Quando o enxergam passar - passos pequenos,
a face magra, quieto, entristecido -
lançando às vezes , no ar, mudos acenos
em gestos de abraçar o indefinido;

Quando o enxergam passar(e o seu ouvido
não atende aos insultos dos terrenos)
todos, num quase acento comovido,
dizem: "deve ser louco, mais ou menos..."

Um dia (nem eu sei como se deu)
conversamos...Contou-me todo o seu
viver, cheio de angústias e revezes...

É poeta!...Arrependo-me dizê-lo
pois eu sei que dirão, agora, ao vê-lo:
-"Poeta?... Então é louco duas vezes!"
= = = = = = 

Poetrix de
SÍLVIA MOTA
Belo Horizonte/MG

perda de tempo

de tempos em tempos
enquanto homens resmungam
renova-se o Tempo.
= = = = = = 

Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

Confidência do itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
= = = = = = 

Poema de 
GERRIT KOUWENAAR
Amsterdam/Holanda, 1923 – 2014

É um dia claro

é um dia claro é um mundo escuro
entre a verde erva a carne é vermelha
homens deixam-se vergar por um naco de pão
é um dia escuro é um mundo claro
riem os homens e tudo é possível

percorri o caminho para colher uma maçã
mas no caminho havia uma cobra

a vida é boa mas a vida podia ser melhor
todas essas guerras entre tréguas eternas
todo esse morrer para viver ainda mais
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
a carne é dura de roer mas mais tenra que os ossos

percorri o caminho para escapar à morte
mas no caminho havia um homem de ferro

enquanto a boca mastiga o ar rarefaz-se
enquanto o pão se digere a mão invalida-se
enquanto falamos na casa ela incendeia-se algures
é um dia escuro é um mundo escuro
os jornais noticiam como aconteceu e como não acontecerá

percorri o caminho para construir uma cidade
mas projetei torres em subterrâneos

no quadro o mestre-escola escrevia futuro amor e deus
salve a nossa pátria, e eu todo lábios e olhos
imitava-o na lousa
mas lá fora dançava a rapariga tangível
flutuando como se não houvesse leis da gravidade

percorri o caminho para encontrar o caminho
mas atrás do pudim havia um prato vazio
= = = = = = 

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Poemas
são pássaros
livres,
que de vez
em quando
pousam
em nossos 
corações.
= = = = = =

Hino de 
Macaíba/RN

Foi nas margens do Rio Jundiaí
Onde o sonho de um povo começou
E nas sombras de uma palmeira
Que Fabrício seu nome elegeu
Foi na luta de gente que ama
Sua terra, seu povo, seu porto torrão;

Em batalhas e lutas ferozes
A aurora de grandes vitórias
No cultivo do chão da esperança
No horizonte queremos chegar
E agora queremos saudar
A uma terra que luta
Mas glórias terá;

Refrão
Eu te saúdo, óh Macaíba
Eu te saúdo, antiga Coité
Esperança é uma semente
Que nasce, que brota
Neste lugar;

É uma terra de gente de glórias
De Severo e o Pax seu balão
Defensores da nossa cultura
Aliados da educação
São poetas, são homens da Lei
Que viveram sonhando
Buscando ideais;

As riquezas do povo potiguar
Pelas águas do nosso rio passou
Pelas mãos desse povo valente
Que tirou o sustento do chão
E tão valioso ouro branco
De nossos engenhos da cana tirou;

Refrão
Eu te saúdo, óh Macaíba
Eu te saúdo, antiga Coité
Esperança é uma semente
Que nasce, que brota
Neste lugar.
= = = = = = 

Poema de 
ALVES COELHO
(José Adalberto Alves Coelho)
Lisboa/Portugal

Olhos Castanhos

Teus olhos castanhos
de encantos tamanhos
são pecados meus,
são estrelas fulgentes,
brilhantes, luzentes,
caídas dos céus,
Teus olhos risonhos
são mundos, são sonhos,
são a minha cruz,
teus olhos castanhos
de encantos tamanhos
são raios de luz.

Olhos azuis são ciúme
e nada valem para mim,
Olhos negros são queixume
de uma tristeza sem fim,
olhos verdes são traição
são cruéis como punhais,
olhos bons com coração
os teus, castanhos leais.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

Os dois homens e a Fortuna

Dois amigos numa aldeia
Viviam; um a cantar;
O segundo, volta e meia,
Descontente, a suspirar.

«Aqui, amigo, a abastança
Nos nega a sorte importuna;
Mas de lugar a mudança
Faz que se encontre a Fortuna.

— Não te quero dissuadir,
Vai ver mundo, vê se a apanhas,
Que eu ficarei a dormir,
À espera de que tu venhas.»

O ambicioso, neste intuito,
Lembrou-lhe a corte; partiu,
Chegou lá, procurou muito,
Mas a Fortuna não viu.

Busca monção oportuna,
Vai ao Mogol, mas em vão;
Dizem-lhe lá que a Fortuna
Se encontrava no Japão.

De novo ele sulca os mares,
E, não vendo a deusa amada,
Volta aos seus antigos lares,
Dando ao diabo a cartada.

E a Fortuna, seu castigo,
Veio encontrá-la a sorrir,
Sentada à porta do amigo,
Que dormia a bom dormir.
= = = = = = = = = 

José Luíz Boromelo (O trem da vida)

Na infância, brincávamos por horas sobre os trilhos do “trem de ferro”. E lá vinha ele, apitando freneticamente como um monstro portentoso e enraivecido, fazendo tremer o solo e os corações pueris. Os garotos maiores colocavam galhos de árvores para que o gigante de aço os destruísse, mas o “limpa-trilhos” da locomotiva fazia sua parte, empurrando para os lados qualquer coisa que estivesse em sua frente. A animação era maior quando o comboio fazia manobras para acoplar mais vagões, movimentação barulhenta que durava um dia inteiro. Dias felizes aqueles, que não voltam mais. Acabaram-se de vez as brincadeiras inocentes, as amizades sinceras. Restaram vagas lembranças, guardadas em algum lugar na memória, de uma época em que qualquer coisa servia como diversão sadia, diante da simplicidade desconcertante de uma criança pobre.

Os tempos são outros, os amigos se dispersaram, a maioria vive cercada pelos filhos e netos. Os que continuam por perto já não ousam sequer comentar sobre aquela fase mágica da vida, em que se desfrutava da descompromissada felicidade. Outros já cumpriram sua missão e partiram para a última empreitada. É quando vez ou outra se recebe com pesar a notícia do desaparecimento de algum amigo de infância ou de um familiar e a melancolia teima em permanecer ao nosso lado por um tempo. Mesmo sabendo que a morte faz parte do ciclo natural da vida, temos dificuldades para aceitar a separação definitiva.

 Isso só acontece porque estamos embarcados no trem da vida. Assim como aquele gigante de aço, esse também faz estremecer o coração e a alma das pessoas. Durante o percurso passamos por imensas dificuldades, mudando para o próximo vagão a cada novo recomeço. Poderemos até pensar que os amigos e familiares estarão sempre embarcados conosco, mas alguns descerão repentinamente na próxima estação. Encontraremos passageiros que se encarregarão de transformar a viagem num passeio extremamente feliz, outros se farão acompanhar de permanente e inexplicável tristeza e os que estarão circulando pelo trem da vida sempre prontos a auxiliar alguém que necessite de seus cuidados. Alguns descerão deixando muitas saudades. Outros, nem sequer serão notados.

 Então aproveitemos a viagem agora, procurando aceitar o outro com todos os seus defeitos e limitações, relevando suas falhas. Vamos nos deleitar com as belezas da paisagem, deixando para trás todas as dificuldades, as queixas e as tristezas dessa vida. Que possamos com nossa alegria, iluminar a vida daqueles que não têm brilho próprio e vagueiam na escuridão do sofrimento.  Lembremo-nos sempre da lição maior daquele que ofereceu sua própria vida para nos salvar: ”Em verdade eu te digo, ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23, 43). Esse é o maior exemplo de amor incondicional ao próximo. Que possamos receber a graça de viver sem a preocupação do inevitável e derradeiro desembarque. Que assim como o trem de ferro, ainda provoca uma avalanche de emoções, como naqueles longínquos bons tempos de criança.
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José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

Fontes:
Recanto das Letras. 15.07.2015
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5312243
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Beatrix Potter (O conto dos coelhinhos Flopsy)

Dizem que o efeito de comer muita alface é "soporífero".

Nunca senti sono depois de comer alface; mas eu não sou um coelho.

Elas certamente tiveram um efeito muito soporífero sobre os Coelhinhos Flopsy!

Quando Benjamin Bunny cresceu, casou-se com sua prima Flopsy. Eles tinham uma família grande e eram muito previdentes e alegres.

Não me lembro dos nomes separados de seus filhos; eles eram geralmente chamados de "Coelhinhos Flopsy".

Como nem sempre havia o suficiente para comer, Benjamin costumava pegar repolhos emprestados do irmão de Flopsy, Pedro Coelho, que cuidava de uma horta.

Às vezes, Pedro Coelho não tinha repolhos sobrando.

Quando isso aconteceu, os Coelhinhos Flopsy atravessaram o campo até um monte de lixo, na vala em frente ao jardim do Sr. McGregor.

O monte de lixo do Sr. McGregor era uma mistura. Havia potes de geleia e sacos de papel, montanhas de grama cortada da máquina de cortar grama (que sempre tinha gosto de óleo), algumas abobrinhas podres e uma ou duas botas velhas.

Um dia — que alegria! — havia uma quantidade enorme de alfaces que tinham "brotado" em flor.

Os Coelhinhos Flopsy simplesmente encheram as alfaces. Aos poucos, um após o outro, foram tomados pelo sono e se deitaram na grama cortada.

Benjamin não estava tão tomado quanto seus filhos. Antes de dormir, ele estava suficientemente acordado para colocar um saco de papel sobre a cabeça e se proteger das moscas.

Os Coelhinhos Flopsy dormiam deliciosamente sob o sol quente. Do gramado além do jardim, vinha o som distante e metálico da máquina de cortar grama. As varejeiras-azuis zumbiam perto do muro, e um ratinho velho catava o lixo entre os potes de geleia.

(Posso dizer o nome dela: chamava-se Thomasina Tittlemouse, uma ratazana com uma cauda longa.)

Ela farfalhou sobre o saco de papel e acordou Benjamin Bunny.

O rato se desculpou profusamente e disse que conhecia Peter Rabbit.

Enquanto ela e Benjamin conversavam, perto do muro, ouviram passos pesados acima de suas cabeças; e de repente o Sr. McGregor esvaziou um saco cheio de grama cortada bem em cima dos Coelhinhos Flopsy adormecidos! Benjamin se encolheu sob seu saco de papel. O rato se escondeu em um pote de geleia.

Os coelhinhos sorriram docemente durante o sono sob a chuva de grama; eles não acordaram porque as alfaces estavam muito sonolentas.

Eles sonharam que sua mãe Flopsy os estava aconchegando em uma cama de feno.

O Sr. McGregor olhou para baixo depois de esvaziar seu saco. Ele viu algumas pequenas pontas marrons engraçadas de orelhas se projetando através da grama cortada. Ele as encarou por algum tempo.

Nesse momento, uma mosca pousou em uma delas e ela se moveu.

O Sr. McGregor desceu para o monte de lixo.

"Um, dois, três, quatro! Cinco! Seis coelhinhos!", disse ele enquanto os jogava no saco. Os Coelhinhos Flopsy sonharam que a mãe os estava virando na cama. Eles se mexeram um pouco durante o sono, mas ainda assim não acordaram.

O Sr. McGregor amarrou o saco e o deixou na parede.

Ele foi guardar a máquina de cortar grama.

Enquanto ele estava fora, a Sra. Flopsy Bunny (que havia permanecido em casa) cruzou o campo.

Ela olhou desconfiada para o saco e se perguntou onde estavam todos?

Então o rato saiu do pote de geleia, Benjamin tirou o saco de papel da cabeça e eles contaram a triste história.

Benjamin e Flopsy estavam desesperados, não conseguiam desfazer o barbante.

Mas a Sra. Tittlemouse era uma pessoa engenhosa. Ela mordiscou um buraco no canto inferior do saco.

Os coelhinhos foram puxados para fora e beliscados para acordá-los.

Seus pais encheram o saco vazio com três abobrinhas podres, um velho pincel de graxa e dois nabos podres.

Então todos se esconderam debaixo de um arbusto e ficaram à espera do Sr. McGregor.

O Sr. McGregor voltou, pegou o saco e o levou embora.

Ele o carregou pendurado, como se fosse bastante pesado.

Os Coelhinhos Flopsy o seguiram a uma distância segura.

Eles o observaram entrar em casa.

E então se aproximaram sorrateiramente da janela para ouvir.

O Sr. McGregor jogou o saco no chão de pedra de uma forma que teria sido extremamente dolorosa para os Coelhinhos Flopsy, se por acaso estivessem lá dentro.

Eles o ouviam arrastar a cadeira nas lajes e dar risadinhas...

"Um, dois, três, quatro, cinco, seis coelhinhos!" disse o Sr. McGregor.

"Hã? O que é isso? O que eles estavam estragando agora?" perguntou a Sra. McGregor.

"Um, dois, três, quatro, cinco, seis coelhinhos gordos!" repetiu o Sr. McGregor, contando nos dedos - "um, dois, três..."

"Não seja bobo; o que você quer dizer, seu velho bobo?"

"No saco! Um, dois, três, quatro, cinco, seis!" respondeu o Sr. McGregor.

(O Coelhinho Flopsy mais novo subiu no parapeito da janela.)

A Sra. McGregor pegou o saco e o apalpou. Disse que conseguia sentir seis, mas deviam ser coelhos  velhos, porque eram muito duros e tinham formatos diferentes.

"Não servem para comer; mas as peles servem para forrar minha velha capa."

"Forrar sua velha capa?" gritou o Sr. McGregor. "Vou vendê-las e comprar tabaco para mim!"

"Tubo de coelho! Vou esfolá-las e cortar suas cabeças."

A Sra. McGregor desamarrou o saco e colocou a mão dentro.

Quando apalpou os vegetais, ficou muito, muito brava. Disse que o Sr. McGregor tinha "feito aquilo de propósito".

E o Sr. McGregor também ficou muito bravo. Uma das abóboras podres entrou voando pela janela da cozinha e atingiu o mais novo Coelhinho Flopsy.

Ficou bastante magoado.

Benjamin e Flopsy acharam que era hora de ir para casa.

Então o Sr. McGregor não recebeu seu tabaco, e a Sra. McGregor não recebeu suas peles de coelho.

Mas no Natal seguinte, Thomasina Tittlemouse ganhou de presente lã de coelho suficiente para fazer uma capa e um capuz, um lindo regalo e um par de luvas quentinhas.
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HELEN BEATRIX POTTER (Londres, 1866 — Lakeland/Inglaterra, 1943) foi uma escritora, ilustradora, micologista e conservacionista inglesa, célebre por seus livros infantis de grande originalidade e valor intemporal. Sua obra mais famosa é A História do Pedro Coelho. Ela estudou em casa e recebeu das governantas uma educação vitoriana.  O Coelho Benjamim foi uma das primeiras personagens que Beatrix Potter vendeu a uma editora. Beatrix começou por ilustrar contos tradicionais como "Cinderela", "A Bela Adormecida", "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", "O Gato das Botas" etc, mas muitas das suas ilustrações incluíam os seus animais de estimação. Beatrix Potter teve bastantes dificuldades em encontrar uma editora que publicasse as suas histórias. Depois de receber várias cartas de rejeição, ela decidiu tratar do assunto sozinha e criou um livro pequeno a preto e branco com a histórias dos quatro coelhinhos e publicou 250 cópias do mesmo que pagou com o seu próprio dinheiro. Frederick Warne & Co, que já tinha rejeitado as histórias de Beatrix, decidiu publicar o que apelidou de "livro dos coelhinhos". A mudança de posição deveu-se ao fato de a editora querer entrar no mercado dos livros infantis de formato pequeno. A História do Pedro Coelho foi publicado em 1902 e foi um enorme sucesso, vendendo 20 000 cópias até ao Natal desse ano. No ano seguinte, foram publicados A História do Esquilo Trinca-Nozes e O Alfaiate de Gloucester. Nos anos seguintes, Beatrix trabalhou com o editor Norman Warne e publicou entre dois e três livros de formato pequeno todos anos, atingindo um total de 23 obras publicadas na sua carreira. Em 1905, Beatrix e Norman Warne, o seu editor, ficaram noivos. O noivado foi mantido em segredo pois a família de Beatrix desaprovava um noivo que vivia de sua profissão de editor, por considerá-lo de classe inferior. Tragicamente, em 25 de agosto de 1905, um mês depois do pedido, Norman morreu de leucemia, quando tinha 37 anos. Isso deixou Beatrix devastada, mas ela fez o máximo para superar esse momento difícil, trabalhando ainda mais do que o costume. Em 1913, aos quarenta e sete anos, Beatrix casou-se com William Heelis, um procurador local, e foi morar em Sawrey. Ela passou a desenhar e a escrever menos, dedicando-se às atividades da fazenda, à criação de carneiros e a comprar muitas terras em Lakeland, para preservá-las. Quando Beatrix Potter morreu, em 1943, deixou mais de 4 000 acres e 15 fazendas para o National Trust, uma organização destinada a preservar lugares de interesse histórico ou de grande beleza cênica, na Inglaterra. Beatrix e William tiveram um casamento feliz que durou trinta anos. Apesar de não terem filhos, Beatrix era um elemento importante da família de William e teve uma relação muito próxima com as suas sobrinhas, que ajudou a educar. Beatrix faleceu em 1943, devido a uma pneumonia e complicações cardíacas em sua residência, chamada Castle Cottage, localizada em Lake District. Os seus restos mortais foram cremados. O seu marido continuou cuidando das propriedades e do trabalho literário e artístico da esposa até à sua morte, em agosto de 1945. Em 2006, a vida de Beatrix Potter foi transformada em um filme, Miss Potter, com Renée Zellweger e Ewan McGregor como protagonistas. 

Fontes:
Beatrix Potter. The Tale of the Flopsy Bunnie. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.  
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Beatrix_Potter
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Chafariz de Trovas * 25 *

 

Fernando Pessoa (A pintura do automóvel)

Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi...

Quando tenho um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não ficar sujo.

O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficávamos azuis. Não riam... A camurça ficava realmente azul: o meu carro ia passando para a camurça. Por fim, pensei: «Não estou a limpar este carro. Estou a desfaze-lo!» E antes de acabar um ano, o meu carro estava em metal puro. Já não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul. Vi que tinha que pintar o carro de novo.

Foi então que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cabelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.

Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis, com uma Caneças de duas portas nas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.

Procurei-o e disse-lhe:

«Bastos amigo, quero pintar o meu carro. Quero pintá-lo com um esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e inseparável. Com que esmalte é que o hei de pintar?»

«Com Barryloid (espécie de tinta)», respondeu o Bastos, «e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui maçar com uma pergunta a que responderia do mesmo modo o primeiro chofer que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas».

«Perfeitamente...», respondi eu.

«Como quer você pintar um carro...», continuou o Bastos sem me ligar importância, «...senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E, ainda por cima fácil de aplicar... Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma virtude, e as virtudes citam-se... Vá-se embora!...»

«Bom...», disse eu.

«Isto de esmaltes de nitrocelulose», prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão, não é um assunto de marcenaria a retalho. Há uma coisa importuna a que se chama ciência. Sabe o que é? Mas é importuna para quem prepara as coisas; para nós, que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegria. Este Barryloid é o produto de longos cuidados feitos no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu? Não é o primeiro produto do gênero que apareceu; porque o ser primeiro está bem se se trata de estar numa fila, mas não se trata de tintas ou de coisas que metam estudo e provas. Não! Nas tintas e na prática, a última palavra é que é a primeira.»

«Meu caro Bastos...», quis eu interromper.

«Só Barryloid», respondeu o Bastos, virando-me as costas.

«Eu queria agradecer...», prossegui.

«Traga o carro», disse o Bastos.

Levei-lhe o carro e ele pintou-o com Barryloid. E não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar esse esmalte de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não há nada como o Barryloid.

... Tanto assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele vinha já pintado com Barryloid. Ele aí está na base da página e no fim da minha história. Passa-se a camurça, mas é preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará, porque dura.

A minha camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os elogios dos amigos que veem os meus carros pintados com Barryloid.
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Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas e escritores da língua portuguesa e uma figura central do modernismo em Portugal. Sua obra é notável pela criação de heterônimos — personalidades literárias distintas com biografias, estilos e filosofias próprias — que assinaram grande parte de sua produção. Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, Portugal, em 13 de junho de 1888. Após a morte de seu pai e o novo casamento de sua mãe, a família mudou-se para Durban, na África do Sul, em 1896. Ele viveu lá até 1905, onde recebeu uma educação em inglês e começou a escrever seus primeiros poemas nesse idioma. Ao voltar a Portugal, ele se matriculou no curso de Letras, mas logo o abandonou, dedicando-se à literatura e trabalhando em várias empresas como correspondente comercial. Pessoa estreou como crítico literário em 1912, na revista Águia. Introduziu o modernismo em Portugal e tornou-se um símbolo da cultura portuguesa. Apesar de sua importância, Pessoa publicou poucas obras em vida. Seu reconhecimento pleno veio após sua morte, com a descoberta de um grande número de textos inéditos em um baú. 
A criação de diferentes identidades literárias é a característica mais marcante de sua obra. Os mais conhecidos são: Alberto Caeiro: O "mestre" dos outros heterônimos, poeta bucólico e simples, que valorizava a natureza e o empirismo, com uma filosofia antirreflexiva; Ricardo Reis: Poeta clássico e neoclássico, com referências à mitologia greco-romana e uma busca pela tranquilidade interior; Álvaro de Campos: Engenheiro naval, poeta vanguardista e futurista, caracterizado pela exaltação da vida moderna e da velocidade, mas também pelo tédio e pessimismo; Bernardo Soares: Considerado um "semi-heterônimo", autor do Livro do Desassossego, que reflete sobre a vida, o existencialismo e a solidão. 
Embora tenha tido uma vida amorosa intensa, Fernando Pessoa nunca se casou ou teve filhos. Declarava-se um cristão gnóstico, mas não se filiou a nenhuma instituição religiosa, explorando a temática religiosa em seus escritos. Faleceu em Lisboa, em 30 de novembro de 1935, aos 47 anos, devido a uma cólica hepática. 
Fontes:
Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista e outros contos filosofais. Disponível em Domínio Público.  
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Contos e Lendas de Portugal (Lenda da Praga de Fogo)

Há muitos, muitos anos, vivia em Mourilhe, na região de Montalegre, Aben Ahmid, filho do chefe dessa aldeia moura. A sua tribo estava proscrita em relação aos outros muçulmanos, que a abandonaram quando do avanço cristão.

Um dia, Aben decidiu sair do reduto mouro de Mourilhe e cavalgou até ao Minho. Aí, conheceu uma bela jovem cristã chamada Leonor. Foi amor à primeira vista e, como a jovem também o amava, Aben pediu-lhe que partisse com ele para Mourilhe.

Depois de recusas e hesitações, pois era cristã, Leonor cedeu aos impulsos do coração e foi com Aben. Contudo, a aldeia e o pai de Aben não receberam bem os jovens apaixonados, e em especial Leonor, que por isso logo quis regressar à sua terra.

Expulsos da casa do chefe, foram recolhidos por Almina, a mulher que criara Aben desde pequeno, pois era órfão de mãe. Almina acolheu muito bem Leonor, o que irritou Mohamed, pai de Aben.

Como gostava muito de Aben, Almina foi falar com Mohamed e pediu-lhe para se reconciliar com o filho e aceitar Leonor. Mohamed lembrou-lhe, então, que Aben estava prometido a Zoleima, uma moura da aldeia.

Foi então que a ama lhe recordou que, na sua juventude, também ele se apaixonara por Anália, uma jovem cristã, abandonando Zuraida em vésperas de ser mãe de Aben. Só voltara porque Anália caíra doente e morrera pouco tempo depois.

Zuraida recebeu-o e perdoou-lhe, mas foi maltratada por Mohamed e acabou por morrer também, deixando o pequeno Aben sem mãe.

Perante estas lembranças, era cada vez maior a ira do chefe mouro que, intransigente, correu com Almina. Aben decidiu então abandonar a aldeia, com a ama e Leonor.

Ainda na aldeia, e em conversa com Leonor, Almina lembrou-se de um último estratagema para alterar a situação: tinha de falar com Zoleida, que amava Aben desde criança, ainda que este nunca tivesse correspondido a tal paixão.

Zoleida, contudo, não se encontrava em casa quando Almina a procurou.

Ao saber da vinda de Aben para a aldeia com uma cristã, louca de dor e raiva, tinha corrido para a casa do jovem. Silenciosa e esquiva, Zoleida acercou-se de Leonor pelas costas e apunhalou-a, fugindo de imediato.

Pouco depois, surgiram Aben e Almina, que depararam já com a pobre Leonor morta. Aben e Almina ficaram aterrados e inconsoláveis.

Aben decidiu então cobrir com um manto o corpo sem vida de Leonor e levá-lo consigo para bem longe dali. Almina ainda o tentou demover, mas nada conseguia vencer o desespero de Aben.

Almina, chamando insistentemente por Aben, voltou-se para a aldeia atrás de si e rogou-lhe uma praga de fogo: para que Mourilhe se purificasse teria de ser destruída pelo fogo três vezes.

E Mourilhe foi, de fato, três vezes devastada pelo fogo - na Reconquista Cristã, em 1854 e em 1875.

Fontes:
Porto Editora. in Infopédia https://www.infopedia.pt/recursos/lendas-portuguesas/$lenda-da-praga-de-fogo
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Estante de Livros (“Contos Exemplares”, de Sophia de Mello Breyner Andresen)


Sophia de Mello Breyner Andresen, conhecida por sua poesia, também explorou a prosa em seu livro Contos Exemplares, publicado em 1962. As histórias, permeadas por uma profunda reflexão ética e poética, exploram temas como a justiça, a liberdade, a opressão e a busca pela dignidade humana. O contexto em que a obra foi escrita, por exemplo, é importante para entender as motivações e as intenções de Sophia. O livro foi publicado durante a ditadura Salazarista, o que pode explicar a temática da justiça e da liberdade presente em alguns contos.

O título da obra, com a palavra "exemplares", sugere que os contos não são meramente narrativas, mas sim fábulas morais que convidam o leitor a uma reflexão mais profunda sobre a condição humana e a sociedade. A escritora usa a prosa para expressar o mesmo discurso de justiça e liberdade presente em sua poesia. A prosa escrita por uma poeta, possui características específicas, como a busca pela tensão poética e o uso de símbolos.

Contos

O Jantar do Bispo
Este conto aborda o tema da justiça social e da hipocrisia das elites. A narrativa apresenta um bispo que, ao se deparar com a miséria, confronta a sua própria consciência e as suas responsabilidades para com os mais desfavorecidos. O conto explora a dualidade entre o discurso religioso e a prática social, expondo a falência moral de uma classe que prega a caridade, mas vive no luxo, alheia ao sofrimento do povo. 

Retrato de Mônica
Neste conto, a autora apresenta uma reflexão sobre a busca pela santidade e a renúncia do mundo material. Mônica, a personagem central, é um ser complexo, que lida com o conflito entre a sua vocação espiritual e a vida mundana. Através de Mônica, Sophia convida o leitor a questionar o significado da santidade, mostrando que a renúncia é um processo diário e que a negação da espiritualidade é um fardo repetido todos os dias. 

A Viagem
Este conto alegórico aborda a ideia de irreversibilidade e perda. A viagem, que pode ser interpretada como a jornada da vida, é um percurso de perdas constantes, de coisas que não podem ser recuperadas. A narrativa, construída com uma atmosfera de melancolia, explora a fragilidade da existência humana e a necessidade de aceitar a passagem do tempo e as inevitáveis perdas que ela traz. 

A Casa do Mar
Neste conto, a casa é descrita em profunda sintonia com o mar, funcionando como uma extensão da natureza. A história, cheia de simbolismo, evoca a serenidade, a paz e a comunhão com o mundo natural. O mar é uma metáfora recorrente na obra de Sophia e aqui, mais uma vez, representa a liberdade, a profundidade e a constante transformação da vida. 

O Homem
Este conto, com um tom mais tenso e urbano, explora a desumanização e a injustiça na sociedade moderna. A narrativa se concentra na degradação da sociabilidade nas cidades, mostrando como as pessoas podem se tornar insensíveis diante do sofrimento alheio. O conto questiona o resgate da humanidade em um mundo dominado pela indiferença e pela repressão. 

Outros contos notáveis

O Silêncio: 
A narrativa explora o peso do silêncio e as consequências da negação ou omissão, mostrando como um grito sufocado pode reverberar e distorcer a realidade.

A Árvore: 
Aborda temas como a passagem do tempo e o ciclo da vida, destacando a conexão entre o ser humano e a natureza.

Praia: 
O conto apresenta a fusão do mundo real com o mundo onírico, explorando a simbologia e a significação profunda do ser humano.

Homero: 
Assim como em Praia, este conto também funde o real e o sonho, apelando para uma interpretação mais profunda da vida e da religiosidade. 
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Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) foi uma das mais importantes e celebradas poetisas portuguesas do século XX. Sua obra, que abrange poesia, contos, livros infantis, ensaios e traduções, é marcada por um profundo amor pela natureza, pela busca da justiça e pela defesa da liberdade.  Nasceu na cidade do Porto em 6 de novembro de 1919, em uma família aristocrática. O sobrenome Andresen, de origem dinamarquesa, vem do seu avô paterno. Passou a infância entre o Porto e a Granja, onde a família possuía uma casa de praia, o que lhe proporcionou um contato próximo e duradouro com o mar. Estudou Letras Clássicas na Universidade de Lisboa, onde se envolveu em círculos culturais e políticos. Aderiu ao movimento estudantil que se opunha à ditadura do Estado Novo. Em 1975, no pós-Revolução dos Cravos, foi eleita deputada pelo Partido Socialista para a Assembleia Constituinte.  
Sua escrita, embora lírica e ligada à tradição clássica, é também profundamente moderna e engajada. Entre seus temas mais recorrentes estão:
O mar e a natureza: A paisagem litorânea e o mar são elementos centrais de sua poesia, servindo como metáforas para a liberdade, a verdade e a pureza.
Justiça e liberdade: Com uma forte consciência social, Sophia abordou a resistência à ditadura, a busca pela justiça e a luta pela liberdade em seus versos.
A arte e a palavra: A poeta explorou a arte de escrever como um ato de criação e de busca pela perfeição e clareza, características que lhe renderam reconhecimento nacional e internacional. 
Principais obras
Poesia: Poesia (1944), Livro Sexto (1962), O Nome das Coisas (1977).
Contos e ficção: Contos Exemplares (1962).
Literatura infantil: A Fada Oriana (1958), O Cavaleiro da Dinamarca (1964). 
Em 1999, tornou-se a primeira mulher portuguesa a receber o prestigiado Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Faleceu em Lisboa, aos 84 anos, em 2 de julho de 2004, sendo sepultada no Panteão Nacional em 2014, um reconhecimento inédito para uma mulher.

Fontes:

terça-feira, 7 de outubro de 2025

José Feldman (Carta a Najla e Yasmin)

Carta que nunca será enviada, em continuação ao texto “Amor e tragédia nas sombras da intolerância” (https://pergola-de-textos.blogspot.com/2024/12/amor-e-tragedia-nas-sombras-da.html) . Yasmin foi morta por ladrões e Najla se suicidou.
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Queridas Najla e Yasmin,  

Há cinquenta anos eu carrego esta dor, um peso que não se alivia, que me acompanha como uma sombra em todos os momentos do dia e em cada instante da noite. São quase cinco décadas que se passaram, mas é como se tudo tivesse acontecido ontem, como se o tempo tivesse congelado naquele momento em que vocês partiram e eu fiquei aqui, sozinho, rasgado por dentro, tentando juntar os pedaços de um coração que nunca mais foi o mesmo.  

Najla, minha amada, você era o meu mundo, o meu norte, a razão de cada suspiro. Eu me lembro do brilho dos seus olhos, olhos que falavam mais do que qualquer palavra, que diziam tudo o que havia em sua alma. Lembro do seu sorriso, tão delicado, tão cheio de vida, da forma como você tocava as coisas, como se cada gesto fosse uma dança. Você era a minha paz, mas também o meu fogo, e eu nunca soube como um só coração podia conter tanto amor.  

E Yasmin, nossa pequena Yasmin, tão frágil, tão cheia de promessas. Eu me lembro de como ela era pequenina, como cabia inteira nos meus braços, como eu olhava para ela e via o futuro, um futuro que parecia tão brilhante, tão cheio de possibilidades. O cheiro dela, seu chorinho suave, a forma como seus olhos começavam a se abrir para o mundo... Tudo nela era um milagre, e eu me pergunto, todos os dias, por que Deus me deu esse milagre apenas para arrancá-lo de mim tão cedo?  

Eu não consigo parar de pensar naquele dia. Eu me pergunto, ainda hoje, o que você sentiu, Najla, nos momentos finais. Você estava com medo? Estava com raiva? Ou será que sentiu que não havia outra saída? Eu nunca vou entender plenamente o que te levou a isso, mas eu sei que o mundo te feriu. Eu sei que as barreiras que nos separavam — essas malditas barreiras impostas por crenças, por tradições, por um Deus que deveria unir, mas decidiu nos dividir — te esmagaram.  

Eu amaldiçoei esse Deus tantas vezes, Najla. Eu gritei para o céu, questionei, xinguei, implorei por respostas que nunca vieram. Como pode um Deus criar algo tão belo quanto o amor entre duas pessoas e depois destruí-lo só porque elas nasceram em culturas diferentes, em crenças diferentes? Que crueldade é essa? O que fizemos de errado, Najla, além de nos amarmos? Que pecado cometemos além de querer construir uma vida juntos, uma vida onde Yasmin pudesse crescer cercada de amor?  

Mas o mundo não nos deixou. E eu nunca vou perdoar por isso. Eu nunca vou esquecer as palavras duras que ouvimos, os olhares de reprovação, as portas que se fecharam. Eu vi você se desgastando, Najla, sendo abandonada pelos seus próprios pais, que deveriam te apoiar, vi você tentando ser forte, tentando carregar o peso de tudo isso, até que não conseguiu mais. E eu me culpo todos os dias por não ter conseguido te proteger, por não ter sido suficiente para te manter junto.  

E Yasmin... Ah, minha pequena Yasmin. Você foi arrancada de mim antes mesmo que eu pudesse te ver crescer, antes que eu pudesse te ensinar sobre o mundo, antes que eu pudesse te mostrar que, apesar de tudo, a vida ainda pode ser bonita. Eu me pergunto, todos os dias, como você seria hoje. Será que teria os olhos da sua mãe? Será que teria o meu sorriso? Será que seria tão teimosa quanto nós dois? Mas essas perguntas nunca terão respostas, e isso é o que mais me dói.  

Minha pequena e querida Yasmin... Eu desejaria te pegar nos braços, mesmo que fosse só por um instante, e te diria o quanto te amo, o quanto sonhei com o seu futuro, o quanto lamento não ter podido te ver crescer. Eu te contaria sobre tudo o que planejei para nós, sobre os passeios que imaginei, as histórias que eu queria contar para você antes de dormir, as risadas que jamais pudemos compartilhar. Eu te diria que você foi a luz mais pura e breve que já passou pela minha vida, e que, mesmo tão pequenina, você mudou tudo em mim.

Eu também pediria perdão. Perdão por não ter sido capaz de impedir que a dor do mundo nos separasse. Perdão por não ter conseguido ser maior que os preconceitos e as barreiras que nos cercaram. Perdão por não ter podido te dar a infância que você merecia, cheia de amor e segurança.

Eu daria tudo, absolutamente tudo, para poder abraçar vocês mais uma vez. Para sentir o calor do seu corpo, Najla, para ouvir o som da sua voz dizendo que tudo vai ficar bem. Para segurar a pequena Yasmin nos braços, para sentir o cheiro dela, para ouvir seu riso. Mas tudo o que me resta são lembranças, memórias que, ao mesmo tempo em que são preciosas, são como facas que me cortam toda vez que as revisito.  

Najla, eu espero que, onde quer que você esteja, você tenha encontrado a paz que o mundo te negou. E Yasmin, minha pequenina, espero que você esteja nos braços da sua mãe, sentindo o amor que eu nunca tive a chance de te dar como gostaria. Eu espero que vocês estejam juntas, em um lugar onde a dor não existe, onde os preconceitos não separam as pessoas, onde o amor não é julgado.  

Quanto a mim, eu sigo aqui, sobrevivendo, dia após dia. Não vou mentir, há momentos em que tudo parece insuportável, momentos em que eu penso que talvez fosse melhor se eu estivesse aí, com vocês. Mas algo me mantém aqui, talvez a necessidade de carregar a memória de vocês, de lembrar ao mundo que vocês existiram, que vocês foram amadas, que vocês foram tudo para mim.  

Se eu pudesse falar com vocês agora, Najla e Yasmin, eu diria que vocês são a razão de eu ainda buscar algum sentido para essa vida, mesmo em meio à dor. E que um dia, espero, nos reencontremos. Até lá, vivam em meu coração — porque é o único lugar onde o amor que sinto por vocês jamais será tocado pelo tempo ou pela distância, ou pelo preconceito de um mundo ignorante.

Eu não sei se algum dia nos reencontraremos, mas eu me agarro a essa esperança. Porque, Najla e Yasmin, vocês são e sempre serão o amor da minha vida. E enquanto eu viver, vocês viverão em mim.  

Com toda a dor e todo o amor do mundo,  
De quem nunca deixou de amar vocês.