quarta-feira, 18 de abril de 2012

Carlos Drummond de Andrade (Esparadrapo)

Aquele restaurante de bairro é do tipo simpatia/classe média. Fica em rua sossegada, é pequeno, limpo, cores repousantes, comida razoável, preços idem, não tem música de triturar os ouvidos. O dono senta-se à mesa da gente, para bater um papo leve, sem intimidades.

Meu relógio parou. Pergunto-lhe quantas horas são.

- Estou sem relógio.

- Então vou perguntar ao garçom.

Ele também está sem relógio.

- E o colega dele, que serve aquela mesa?

- Ninguém está com relógio nesta casa.

- Curioso. É moda nova?

- Antes de responder, e se o senhor permite, vou lhe fazer, não propriamente um pedido, mas uma sugestão.

- Pois não.

- Não precisa trazer relógio, quando vier jantar.

- Não entendo.

- Estamos sugerindo aos nossos fregueses que façam este pequeno sacrifício.
- Mas o senhor podia explicar…

- Sem querer meter o nariz no que não é da minha conta, gostaria também que trouxesse pouco dinheiro, ou antes, nenhum.

- Agora é que não estou pegando mesmo nada.

- Coma o que quiser, depois mandamos receber em sua casa.

- Bem, eu moro ali adiante, mas e outros, os que nem se sabe onde moram, ou estão de passagem na cidade?

- Dá-se um jeito.

- Quer dizer que nem relógio nem dinheiro?

- Nem jóias. Estamos pedindo às senhoras que nao venham de jóia. É o mais difícil, mas algumas estão atendendo.

- Hum, agora já sei.

- Pois é. Isso mesmo. O amigo compreende...

- Compreendo perfeitamente. Desculpa ter custado um pouco a entrar na jogada. Sou meio obtuso quando estou com fome.

- Absolutamente. Até que o amigo compreendeu sem que eu precisasse dizer tudo. Muito bem.

- Mas me diga uma coisa. Quando foi isso?

- Quarta-feira passada.

- E como foi, pode-se saber?

- Como podia ser? Como nos outros lugares, no mesmo figurino. Só que em ponto menor.

- Lógico, sua casa é pequena. Mas levaram o quê?

- O que havia na caixa, pouquinha coisa. Eram 9 da noite, dia meio parado.

- Que mais?

- Umas coisinhas, liquidificador, relógio de pulso, meu, dos empregados e dos fregueses.

- An. (Passei a mão no pulso, instintivamente.)

- O pior foi o cofre.

- Abriram o cofre?

- Reviraram tudo, à procura do cofre. Ameaçaram, pintaram e bordaram. Foi muito desagradável.

- E afinal?

- Cansei de explicar a eles que não havia cofre, nunca houve, como é que eu podia inventar cofre naquela hora?

- Ficaram decepcionados, imagino.

- Não senhor. Disseram que tinha de haver cofre. Eram cinco, inclusive a moça de bota e revólver, querendo me convencer que tinha cofre escondido na parede, no teto, embaixo do piso, sei lá.

- E o resultado?

- Este - e baixou a cabeça, onde, no cocuruto, alvejava a estrela de esparadrapo.

- Oh! Sinto muito. Não tinha notado. Felizmente escapou, é o que vale. Dê graças a Deus por estar vivo.

- Já sei. Sabe que mais? Na polícia me perguntaram se eu tinha seguro contra roubo. E eu pensando que meu seguro fosse a polícia. Agora estou me segurando à minha maneira, deixando as coisas lá em casa e convidando os fregueses a fazer o mesmo. E vou comprar um cofre. Cofre pequeno, mas cofre.
- Para que, se não vai guardar dinheiro nele?

- Para mostrar minha boa-fé, se eles voltarem. Abro imediatamente o cofre, e verão que não estou escondendo nada. Que lhe parece?

- Que talvez o senhor precise manter um estoque de esparadrapo em seu restaurante.

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 3. SP: Ed. Ática, 1978.

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