sábado, 19 de abril de 2014

Marcelo Spalding (Tipos de crônica)

   
A crônica é um gênero híbrido do jornalismo e da literatura. Tal qual os gêneros retóricos, seu objetivo principal é convencer, argumentar, mas a forma aproxima-se da literatura. Uma crônica bem escrita é aquele com literariedade, gostosa de ler, com ritmo figuras de linguagem, cuidado com cada palavra, cada construção.

    Claro que há crônicas mais próximas da retórica, do jornalismo, cujo tipo textual predominante é a dissertação. Por vezes confunde-se com o artigo de opinião, tal a proximidade desse. Vejamos um caso:

    A obra do meu pai
    Paulo Sant` Ana


    Vou abordar este tema com alguns tons desagradáveis pela única intenção de inspirar os pais a serem cada vez mais amorosos com seus filhos. E também por que esta abordagem vai me servir de útil autoterapia. Ocorre que, jantando com um amigo na semana passada, ele insistiu em relatar as violências de seu pai, na época e que meu amigo tinha entre 10 e 15 anos.

    Um dia, com 11 anos, achou uma faca na rua. Levou-a para casa e a pôs na gaveta de seu pixixê. Seu pai achou a faca e interrogou-o. Ele disse ao pai que tinha achado a faca nas imediações de uma praça. O pai não se conformou e passou a afirmar que o filho tinha furtado a faca. O pai, então, surrou-o impiedosamente, surrou-o com um porrete, deixou lanhos e hematomas em seus braços e pernas.

    Era de se ver o olhar de meu amigo contando-me essa surra que levou de seu pai, apenas uma por entre tantas outras que sofreu durante toda a infância. Eu ouvia meu amigo e ia configurando a minha mesma dor. Meu pai, quando eu era criança, só parava de desferir fortes bofetadas em meu rosto quando meu nariz sangrava.

    Eu amava meu pai, eu ainda amo meu pai, mas ele foi mau e sádico comigo. E, a exemplo do pai do meu amigo, surrava-me na maioria das vezes injustamente. Ele me surrava por prazer de me espancar. Ele se realizava tendo-me, menininho, à mercê de sua tara sádica.

    Eu morava num quarto dos fundos e ali vivia todos os dias o papel de um detento que invariavelmente era espancado pelo seu carcereiro. Todos os dias. Isso é o que meu pai poi pra mim na minha infância: meu carcereiro implacável.

    Foi tão grande o trauma que meu pai me causou com essas tremendas agressões, que por vezes, já agora na minha idade, talvez no fim da minha vida, por vezes sonho com meu pai me espancando ou então com cenas do meu medo,à espera de que dali a pouco meu pai chegasse e desse início àquelas sessões intermináveis de tortura.

    O que meu pai conseguiu com sua sanha, tenho em nítido: tornou-me inseguro e pessimista, dano monumental que se encravou na minha conduta em toda minha vida.

    Não tenho como absolvê-lo, embora estranhamente eu ainda o ame.

    Ele foi meu carrasco e eu fui sua vítima e um herói, porque consegui ainda reunir forças, depois que ele me estraçalhou, para enfrentar as duras lidas da vida.

    Estou escrevendo sobre uma grave queixa minha. Apenas pela esperança de que isso possa evitar que pais repitam tal massacre com seus filhos. E o interessante é que meu pai nos contava que meu avô, o pai dele, chamava a ele e seus irmãos e dizia para que fossem buscar o relho dependurado na parede da sala para serem espancados.

    Deve ser grande a dor e o medo de um filho que vai noutra peça da casa buscar o relho e alcançá-lo para o pai espancá-lo. E interessante também é que talvez por isso nunca, em toda minha vida, espanquei ou sequer dei um tapa num dos meus três filhos.



    Você deve ter reparado que há um longo trecho narrativo, inclusive com a particularização e a construção de cenas, próprias da criação literária. A narrativa, porém, está em função da argumentação do texto, da tese de que não se deve dar sequer uma palmada nos filhos. Por isso não sabemos o que aconteceu depois com pai e filho, não é esse o objetivo da crônica.

    Em outros casos, a crônica é narrativa, tal qual um conto. `A bola`, Luis Fernando Verissimo, aparentemente é apenas a descrição de uma situação cotidiana, mastem por trás uma visão de mundo do autor, fica subjacente à singela narrativa o saudosismo, a crítica ao excesso tecnológico e um certo lamento pelo distanciamento das gerações decorrente desse avanço da tecnologia.

    Outra é a tipologia de `Eu sei, mas não devia`, bela crônica de Marina Colasanti. O tipo textual predominante é a descrição, ficando toda a carga retórica da crônica na expressão "mas não devia". A repetição sintática e o ritmo do texto o aproximam de um poema, observe.

Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Fontes:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4039/tipos-de-cronica
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia.RJ: Editora Rocco, 1996.

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