quinta-feira, 17 de abril de 2014

Gabriel García Márquez (Olhos de cão azul)

Então olhou para mim. Pensava que olhava para mim pela primeira vez. Mas então, quando se virou por trás do abajur, e eu continuava sentindo sobre o ombro, nas minhas costas, seu escorregadio e oleoso olhar, compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas posteriores. Depois disso a vi ali, como havia estado todas as noites, de pé junto ao abajur, me olhando. Durante breves minutos não fizemos nada mais que isto: olhar-nos. Eu, olhando-a da cadeira, equilibrando-me numa das pernas traseiras. Ela, em pé, me olhando, com uma das mãos, comprida e quieta, sobre o abajur. Via as pálpebras iluminadas como todas as noites. Foi então que lembrei o de sempre, quando lhe disse: "Olhos de cão azul". Ela me disse, sem tirar a mão do abajur: "Isso. Já não o esqueceremos nunca". Saiu da órbita suspirando: "Olhos de cão azul. Escrevi isso por todas as partes”.

Vi-a caminhar em direção à cômoda. Vi-a aparecer na lua circular do espelho, olhando-me agora no final duma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar me olhando com seus grandes olhos de cinza acesa: olhando-me enquanto abria uma caixinha revestida de nácar rosado. Vi-a passar pó-de-arroz no nariz. Quando acabou de fazer isso, fechou a caixinha e voltou a ficar em pé e andou novamente em direção ao abajur, dizendo: "Temo que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas"; e estendeu sobre a chama a mão comprida e trêmula, a mesma que estivera esquentando antes de sentar-se em frente ao espelho. E me disse: "Você não sente o frio". E eu lhe disse: "Às vezes". E ela me disse: "Você deve senti-lo agora". E então compreendi por que não tinha podido ficar sozinho na cadeira. Era o frio o que me dava certeza da minha solidão. "Agora o sinto", disse. "E é raro, porque a noite está quieta. Talvez o lençol tenha rodado". Ela não respondeu. Começou a se mexer em direção ao espelho e voltei a girar sobre a cadeira para ficar de costas para ela. Embora sem vê-Ia, sabia o que estava fazendo. Sabia que estava outra vez sentada diante do espelho, vendo minhas costas, que haviam tido tempo para chegar até o fundo do espelho, e serem encontradas pelo seu olhar, que também havia tido o tempo justo para chegar até o fundo e regressar antes que a mão tivesse tempo de iniciar a segunda virada — até os lábios que estavam agora pintados de carmim, da primeira virada da mão em frente ao espelho. Eu via, à minha frente, a parede lisa, que era como outro espelho cego, onde eu não a via sentada às minhas costas, mas imaginando onde estaria, se no lugar da parede tivesse sido colocado um espelho. "Estou vendo você", disse-lhe. E vi, na parede, como se ela tivesse levantado os olhos e me visto de costas na cadeira, ao fundo do espelho, com o rosto voltado para a parede. Depois vi-a abaixar as pálpebras, outra vez, e ficar com os olhos quietos no seu sutiã, sem falar. E voltei a lhe dizer: "Estou vendo você." E ela voltou a levantar os olhos do sutiã. "É impossível", disse. Eu perguntei por quê. E ela, com os olhos outra vez quietos no sutiã: "Porque você tem o rosto voltado para a parede". Então eu fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado na boca. Quando fiquei de frente para o espelho, ela estava outra vez junto do abajur. Agora tinha as mãos abertas sobre a chama, como duas asas abertas de galinha, sendo assada, e com o rosto sombreado pelos próprios dedos. "Acho que vou me resfriar", disse. "Esta deve ser uma cidade gelada”. Voltou o rosto de perfil e sua pele de cobre vermelho se tornou repentinamente triste. "Faça alguma coisa contra isso", disse. E ela começou a tirar a roupa, peça por peça, começando por cima; pelo sutiã. Disse-lhe: "Vou me virar para a parede". Ela disse: "Não. De todas as maneiras você vai me ver, como me viu quando estava de costas". Mal tinha acabado de dizer isso e já estava despida quase por completo, com a chama lambendo-lhe a comprida pele de cobre. "Sempre tinha querido ver você assim, com o couro da barriga cheio de buracos fundos, como se houvessem feito você a pauladas". E antes que eu me desse conta de que minhas palavras se tinham tornado torpes diante da sua nudez, ela ficou imóvel, esquentando-se na órbita do abajur, e disse: "Às vezes creio que sou metálica". Manteve o silêncio por um instante. A posição das mãos sobre a chama mudou levemente. Eu disse: "Às vezes, em outros sonhos, pensei que você é apenas uma estatueta de bronze num canto de algum museu. Talvez por isso sinta frio". E ela disse: "Às vezes, quando durmo sobre o coração, sinto que o corpo fica como um ovo, e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me bate por dentro, é como se alguém me estivesse chamando com os nós dos dedos na barriga, e sinto meu próprio som de cobre na cama. É como se fosse assim como você diz: de metal laminado". Aproximou-se mais do abajur. "Teria gostado de ouvir você", disse. E ela disse: "Se alguma vez nos encontrarmos ponha o ouvido nas minhas costelas, quando eu dormir sobre o lado esquerdo, e me ouvirá ressonar. Sempre desejei que você alguma vez fizesse isso”. Ouvi-a respirar fundo enquanto falava. E disse que durante anos não tinha feito nada diferente disso. Sua vida estava dedicada a me encontrar na realidade, por meio dessa frase identificadora. "Olhos de cão azul." E na rua ia dizendo em voz alta, que era uma maneira de dizer à única pessoa que teria podido compreendê-la:

"Eu sou a que chega em seus sonhos todas as noites e lhe diz isto: olhos de cão azul". E ela disse que ia aos restaurantes e dizia para os garçons, antes de fazer o pedido: "Olhos de cão azul". Mas os garçons lhe faziam uma respeitosa reverência, sem que houvessem lembrado nunca ter dito isso nos seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e riscava com a faca o verniz das mesas: "Olhos de cão azul". E nos cristais embaçados dos hotéis, das estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador: "Olhos de cão azul". Disse que uma vez chegou a uma drogaria e percebeu o mesmo cheiro que tinha sentido no seu quarto uma noite, depois de ter sonhado comigo: "Deve estar perto", pensou, vendo a cerâmica limpa e nova da drogaria. Então se aproximou do vendedor e lhe disse: "Sempre sonho com um homem que me disse: "Olhos de cão azul". E disse que o vendedor a havia olhado nos olhos e dito: "Na verdade, moça, a senhora tem os olhos assim". E ela disse: "Preciso encontrar o homem que me diz isso nos sonhos". E o vendedor começou a rir e foi para o outro lado do balcão. Ela permaneceu olhando o ladrilho limpo do chão e sentindo o cheiro. E abriu a bolsa e se ajoelhou e escreveu com o batom sobre o ladrilho, com grandes letras vermelhas: "Olhos de cão azul". O vendedor regressou de onde se encontrava. Disse-lhe: "Moça, a senhora sujou o ladrilho". Deu-­lhe um pano úmido, dizendo: "Limpe-o". E ela disse, ainda junto ao abajur, que passou a tarde toda agachada, lavando o ladrilho e dizendo: "Olhos de cão azul", até que as pessoas se aglomeraram na porta e disseram que estava louca.

Agora, quando acabou de falar, eu continuava no canto, sentado, equilibrando-me na cadeira. "Tento me lembrar todos os dias da frase com que preciso encontrar você", disse. "Agora creio que amanhã não a esquecerei. Mas sempre esqueço ao acordar quais são as palavras com que posso encontrar você". E ela disse: "Você mesmo as inventou desde o primeiro dia". E eu lhe disse: "Inventei-as porque vi seus olhos cor de cinza. Mas nunca me lembro delas na manhã seguinte." E ela, com os punhos fechados junto ao abajur, respirou fundo: "Se pelo menos pudesse recordar agora em que cidade estive escrevendo isso".

Seus dentes apertados resplandeceram sobre a chama. "Eu gostaria de tocar em você agora", disse. Ela levantou o rosto que estivera olhando a luz: levantou o olhar ardente, assando-se também do mesmo jeito que ela, do mesmo jeito que suas mãos: e eu senti que me viu, no canto, onde continuava sentado, me balançando na cadeira. "Você nunca me tinha dito isso", disse. "Agora digo, e é verdade", disse. Do outro lado do abajur ela me pediu um cigarro. O toco tinha desaparecido dos meus dedos. Esquecera que estava fumando. Disse: "Não sei por quê, não posso lembrar onde o escrevi". E eu lhe disse: "Pela mesma razão pela qual eu não poderei lembrar as palavras amanhã". E ela disse, triste: "Não. É que às vezes creio que também sonhei isso". Fiquei em pé e andei até o abajur. Ela estava um pouco mais para lá, e eu continuava andando, com os cigarros e os fósforos na mão, e não passaria o abajur. Aproximei dela o cigarro. Ela o apertou entre os lábios e se inclinou para atingir a chama, antes que eu tivesse tempo de acender o fósforo. "Em alguma cidade do mundo, em todas as paredes, têm que estar escritas estas palavras: 'Olhos de cão azul", disse. "Se amanhã me lembrasse delas iria buscar você". Ela levantou outra vez a cabeça e já tinha a brasa acesa nos lábios. "Olhos de cão azul", suspirou, recordando, com o cigarro jogado sobre o queixo e um olho semifechado. Aspirou a fumaça, com o cigarro entre os dedos, e exclamou: "Já isto é outra coisa. Estou me sentindo mais quente". E disse-o com a voz um pouco morna e fugidia, como se não o tivesse dito realmente, mas como se houvesse aproximado o papel à chama enquanto eu lia: "Estou entrando — e ela tivesse continuado com o papelzinho entre o polegar e o indicador, virando-o, enquanto ia se consumindo e eu acabava de ler — ­... mais quente", antes que o papelzinho se consumisse por completo e caísse ao chão amassado, diminuído, convertido num leve pó de cinza. "Assim, é melhor", disse. "Às vezes me dá medo ver você assim. Tremendo junto ao abajur".

Há vários anos nos víamos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém deixava cair lá fora uma colherinha e acordávamos. Pouco a pouco íamos compreendendo que nossa amizade estava subordinada às coisas, aos acontecimentos mais simples. Nossos encontros terminavam sempre assim, com o cair de uma colherzinha na madrugada.

Agora, junto ao abajur, estava me olhando. Eu lembrava que antes também me havia olhado assim, desde aquele remoto sonho em que fiz a cadeira girar sobre as pernas traseiras e fiquei diante de uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi nesse sonho que perguntei a ela pela primeira vez:"Quem é a senhora?" E ela me disse: "Não lembro". Eu lhe disse: "Mas acredito que nos vimos antes". E ela disse, indiferente: "Creio que alguma vez sonhei com o senhor, com este mesmo quarto". E eu lhe disse: "É isso. Já começo a lembrar". E ela disse: "Que curioso. É verdade que temos nos encontrado em outros sonhos".

Deu duas chupadas no cigarro. Eu estava ainda em pé em frente ao abajur, quando fiquei olhando para ela de repente. Olhei-a de cima a baixo e ainda era de cobre; mas já não de metal duro e frio, senão de cobre amarelo, macio, maleável. "Gostaria de tocar em você", voltei a dizer. E ela disse: "Você jogaria tudo por água abaixo", voltou a dizer, antes que eu pudesse tocá-la. "Talvez, se você se virar por trás do abajur, acordaríamos sobressaltados quem sabe em que parte do mundo". Mas eu insisti: "Não importa". E ela disse: "Se virássemos o travesseiro, voltaríamos a nos encontrar. Mas você, quando acordar, terá esquecido tudo". Comecei a me mexer em direção ao canto. Ela ficou por trás, esquentando as mãos sobre a chama. E eu ainda não estava junto da cadeira quando a ouvi falar às minhas costas: "Quando acordo à meia-noite, fico revirando-me na cama, com os fios do travesseiro ardendo no joelho e repetindo até o amanhecer: 'Olhos de cão azul'".

Então fiquei com o rosto na parede. "Já está amanhecendo", disse sem olhar para ela. "Quando deram duas da manhã, estava acordado, já fazia bastante tempo." Dirigi-me até a porta. Quando tinha pegado a maçaneta, ouvi outra vez sua voz igual, invariável: "Não abra essa porta", disse. "O corredor está cheio de sonhos difíceis". E eu lhe disse: "Como você sabe disso?" E ela me disse: "Porque há pouco estive ali e tive que voltar quando descobri que estava dormindo sobre o coração". Eu mantinha a porta entreaberta. Movi um pouco o batente, e um ar frio e tênue me trouxe um cheiro fresco de terra vegetal, de campo úmido. Ela falou outra vez, virei-me, mexendo ainda o batente montado em gonzos silenciosos, e lhe disse: "Creio que não há nenhum corredor aqui fora. Sinto o cheiro do campo". E ela, já um pouco longe, me disse: "Conheço isso mais do que você. O que acontece é que lá fora há uma mulher sonhando com o campo". Cruzou os braços sobre a chama. Continuou falando: "É essa mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca pôde sair da cidade". Eu lembrava ter visto a mulher num outro sonho anterior, mas sabia, já com a porta entreaberta, que dentro de meia hora tinha que descer para o café da manhã. E lhe disse: "De todas maneiras, tenho que sair daqui para acordar".

Lá fora o vento bateu um instante, ficou quieto depois, e ouviu-se a respiração de alguém adormecido que acabava de virar-se na cama. O vento do campo suspendeu-se. Já não houve mais odores. "Amanhã vou reconhecer você por isso", disse. "Vou reconhecê-la quando vir na rua uma mulher que escreva nas paredes: 'Olhos de cão azul'". E ela, com um sorriso triste — que já era um sorriso de entrega ao impossível, ao inatingível —, disse: "Não obstante, você não lembrará nada durante o dia". E voltou a pôr as mãos sobre o abajur, com a expressão obscurecida por uma névoa amarga: "Você é o único homem que, ao acordar, não se lembra nada do que sonhou".

Fonte:
RAMAL, Alícia (organizadora). Contos Latino Americanos Eternos. RJ: Bom Texto, 2005.

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