domingo, 28 de março de 2021

Miguel de Cervantes (O Casamento enganoso)

 
Saía do Hospital da Ressurreição, que fica em Valladolid, depois da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como cajado, pela magreza de suas pernas e pela palidez de seu rosto, demonstrava claramente - embora não estivesse fazendo muito calor - que deveria ter transpirado em vinte dias tudo o que, com toda certeza, adquirira numa hora. Caminhava cambaleando, tropeçando a todo momento, como um convalescente e, ao transpor a porta da cidade, percebeu vindo em sua direção um amigo que não via fazia mais de seis meses. Este, benzendo-se como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

- Que aconteceu, senhor alferes Campuzano? É possível que esteja nesta terra? Eu o imaginava em Flandres, empunhando a lança, e não por estes lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?

Campuzano respondeu:

- Se estou ou não nesta terra, senhor licenciado Peralta, minha presença pode lhe dizer. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder, a não ser que estou saindo do hospital, onde suportei quarenta suadouros, por causa de uma mulher que escolhi para esposa, coisa que jamais deveria ter feito.

- Vossa mercê se casou? - perguntou Peralta.

- Sim, senhor - respondeu Campuzano.

- Se foi por amor - disse Peralta, acrescentando - tais casamentos trazem sempre junto o arrependimento.

- Não saberei dizer se foi ou não por amor - respondeu o alferes -, embora possa garantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possa aliviá-las. Mas vossa mercê vai me perdoar: eu não posso manter conversas longas na rua. Em outro dia, mais comodamente, lhe contarei minhas aventuras, as mais diferentes e originais que vossa mercê já terá ouvido em todos seus longos dias.

- Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha até minha morada; ali comeremos à vontade. Além disso, tenho comida própria para convalescentes, preparada para dois. Meu criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto cordobês servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de boa vontade, agora e todas as vezes que vossa mercê desejar.

Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram ambos até San Llorente, onde assistiram à missa. Depois, Peralta levou o amigo até sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo ele acabado de comer, Peralta lhe pediu para narrar os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado e começou a falar:

- Vossa mercê deve se lembrar, senhor licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.

- Lembro bem - respondeu Peralta.

- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal terminávamos a refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de elegante aspecto, acompanhadas por duas criadas; uma delas logo se pôs a falar com o capitão, ambos encostados num canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora eu lhe solicitasse gentilmente que se descobrisse, nada consegui.

“Para completar a história, seja de propósito ou por acaso, ela exibiu uma mão muito branca, coberta de magníficas joias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que vossa mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões, com o traje de cores e a arrogância de um soldado, tão imponente diante de minha própria vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:

- Não seja importuno. Tenho minha casa. Faça com que um pajem me siga, pois, embora eu seja mais honrada do que faz achar esta resposta, quero ver se sua discrição corresponde a sua galhardia; permitirei que me veja.    

“Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em troca lhe prometi montes de ouro. O capitão concluiu a sua conversa e elas se foram seguidas por meu criado. O capitão me disse que a dama lhe pedira para levar cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia que eram para um primo, mas ele sabia que eram para seu amante. Eu fiquei abrasado pela mão de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. Assim, no dià seguinte, guiado por meu pajem, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, mas podia prender pelo trato, com conversa familiar, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante que chegava até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios; alardeei, garganteei, prometi; dei enfim todas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me querido, mas ela parecia ter sido feita para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvia, mas parecia não me acreditar. Para concluir, nossos colóquios passaram-se em banalidades durante quatro dias.

“Continuei a visitá-la, sem chegar, porém, a colher o fruto desejado.   Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamais notei traço de parentes fingidos ou amigos verdadeiros. Servia-a uma moça mais astuta do que ingênua.       

“Tratando meus amores como soldado em vésperas de partida, apressei, finalmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo - pois esse é o nome de quem me deixou assim -, que respondeu:

- Seria ingenuidade, alferes Campuzano, se eu quisesse vender-me a vossa mercê como santa; tenho sido pecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas apesar disso o que tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isso em coisas que, vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com essa fortuna, procuro marido para me entregar, para obedecer e a quem, juntamente com o vínculo de minha vida, entregarei uma enorme solicitude em agradar e servir. Príncipe nenhum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba acertar nos guisados.

"Sei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim mais quando é gasto sob minha orientação. A roupa branca que tenho, que é muita e da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou com vendedores ambulantes; foi feita com estes dedos e com os das minhas criadas e, se fosse possível tecê-la em casa, assim o teríamos feito. Digo essas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois me injurie. Se vossa mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe é oferecida, estou a sua disposição, sujeita a tudo quanto vossa mercê obrigar, e isso sem colocar-me à venda, que é a mesma coisa que andar na língua dos casamenteiros. Não há nada melhor para se chegar a um acordo do que uma conversa entre as próprias partes.

"Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas sim nos  calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava, e sendo-me oferecida tamanha quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava lugar a ventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi que me sentia muito alegre e afortunado por ter o céu me dado, quase que por milagre, tal companheira para fazê-ia senhora de minha vontade e dos meus bens, não tão poucos que não valessem junto com aquela corrente que usava no peito e outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de dois mil ducados, que com os 2500 dela, somavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía alguma terra; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o casamento e nos despedimos de nossas vidas de solteiros; nos três dias de festas que vieram na Páscoa fizeram-se as declarações e no quarto dia nos casamos, estando presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como o foram as que ele dirigira a minha nova esposa; mas ele falava com intenção tão falsa e hipócrita que eu prefiro calar, porque, embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.

"O criado levou meu baú da minha morada para a casa de minha mulher. Encerrei ali, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e os chapéus, entregando-lhe, para as despesas da casa, os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, feito genro pobre em casa de sogro rico. Pisei caros tapetes, dormi sobre colchas de holanda, estive à luz de candelabros de prata.

"Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo de novo às doze e fazendo a sesta às duas. Dona Estefânia e sua criada excediam-se em cuidados e agrados. Meu criado, que até então fora lerdo e preguiçoso, se transformou num cervo.

"Nos momentos em que dona Estefânia não estava ao meu lado, era fácil achá-la na cozinha, solícita em preparar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo jardim de Aranjuez, banhados como eram em água perfumada por flor de laranjeira.

"Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, se transformara em boa a má intenção com que iniciara aquela história. No fim deles, certa manhã, quando ainda estava no leito com dona Estefânia, bateram fortemente à porta. A criada surgiu à janela e disse:

- Oh! Seja bem-vinda! Veio antes do que esperávamos!

- Quem é que chegou, criatura? - perguntei.

- Quem? - ela respondeu.  - Minha senhora, dona Clementa Bueso, acompanhada pelo senhor Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a ama Hortigosa.

- Corra, mulher, abra a porta, que já vou! - disse dona Estefânia à criada. - E você, meu senhor, pelo amor que tem por mim, não se assuste e nem responda em meu lugar a coisa alguma que ouvir contra mim.

- Mas quem é que vai se atrever a ofendê-la em minha presença? Diga que gente é essa que lhe causa tanta perturbação!

- Não tenho tempo para lhe responder - disse dona Estefânia. - Saiba apenas que tudo o que acontecer é fingimento e visa a certo objetivo, o qual saberá depois.

"Eu quis replicar, mas a senhora dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava oculto por um leve véu. Em sua companhia entrou o senhor Lope Meléndez de Almendárez, não menos elegante nem menos ricamente vestido.

"Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou:

- Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa e além do mais com um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que dona Estefânia trocou os pés pelas mãos, abusando da amizade de minha senhora.

- Tem razão, dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que nunca mais eu me aborreça novamente por arranjar amigas que só sabem ser amigas quando precisam!

"A tudo isso, dona Estefânia respondeu:

- Não se aborreça, dona Clementa Bueso, e acredite que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei que serei desculpada e vossa mercê não terá motivo nenhum para queixa.

"A essa altura eu já havia vestido a calça e a camisa. Dona Estefânia, pegando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar o senhor Lope, com o qual pretendia se casar, e que precisava fazer com que ele acreditasse que aquela casa e tudo o que havia nela lhe pertencia, pois ela pretendia fazer disso o seu dote. Depois do casamento realizado, pouco importava que descobrissem a artimanha, pois dona Clementa confiava no grande amor que lhe tinha o senhor Lope.

- Logo ela vai me devolver tudo. Não se deve levá-la a mal e nem a qualquer outra mulher que procure marido honrado, ainda que por meio de um ardil.

"Eu lhe respondi que era prova de uma grande amizade o que desejava fazer e que primeiro pensasse bem, porque depois poderia precisar, sem ter necessidade, recorrer à justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir a dona Clementa, coisas de pouca importância na verdade, que, embora de má vontade e com remorso, concordei com seu desejo. Ela me garantiu que o plano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de dona Clementa Bueso e do senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse ao meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem me despedir de ninguém.

"Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, passou lá dentro um bom tempo falando com ela. Depois apareceu uma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Ela nos levou a um pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam ser uma só; não havia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali ficamos por seis dias e em todos eles não houve uma única hora em que não tivéssemos alguma discussão. Eu lhe falava da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus bens, ainda que fosse para sua própria mãe. Durante as discussões, eu ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, num dia em que dona Estefânia fora ver como andavam as coisas, quis saber qual era a razão que me levava a discutir tanto com ela e por que tanto a ofendia ao lhe dizer que o que fizera era mais idiotice do que amizade perfeita. Eu lhe contei toda a história, falei que havia me casado com dona Estefânia e falei do dote que ela trouxera.

"Quando lhe falei da grande bobagem de deixar a casa para dona Clementa, embora fosse com a intenção de conseguir um marido da importância do senhor Lope, ela começou a se benzer e a persignar-se com rapidez e com tantos "ai, Jesus!, que mulher!" que eu não pude deixar de ficar muito preocupado. Ela então me disse:   

- Senhor alferes, não sei se vou contra minha consciência ao lhe contar o que também me pesaria se ficasse calada. Mas, por Deus e pelo destino, seja lá o que for, que viva a verdade e morra a mentira! E a verdade é que dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deram como dote; e mentira foi tudo o que lhe contou dona Estefânia. Ela não possuía casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que carrega no corpo. E, para tornar viável tudo isso, dona Clementa resolveu visitar um parente em Plasencia e dali foi fazer uma novena para Nossa Senhora de Guadalupe. Nesse espaço de tempo deixou dona Estefânia cuidando de sua casa, pois elas são realmente boas amigas.

"Claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois afinal soube arranjar como marido uma pessoa como o senhor alferes.

"Aqui terminou a conversa dela e começou meu desespero. E, sem dúvida, ele teria se prolongado se meu anjo da guarda não acorresse dizendo-me para não esquecer que era cristão e que o maior pecado dos homens era o desespero, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração me confortou um pouco, mas não impediu que apanhasse a capa e a espada e saísse à procura de dona Estefânia, com intenção de lhe dar um exemplar castigo; mas o acaso, que não saberei dizer se piora ou melhora as coisas, quis que eu não a encontrasse em lugar nenhum onde pensava encontrá-la.

"Fui a San Llorente e encomendei-me à Nossa Senhora; sentei num banco e o desgosto me fez cair num sono tão pesado que não despertaria dele tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de dona Clementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa, e não ousei dizer-lhe nada porque o senhor Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, que me disse haver contado a dona Estefânia como eu já sabia de toda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara eu fizera com a notícia. A criada havia lhe respondido que uma cara muito má e que, ao que lhe parecia, eu saíra para procurá-la com péssimas intenções. Disse, finalmente, que dona Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.  

"Aí é que foram elas! Deus me tinha outra vez em suas mãos. Fui ver o baú e achei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderia muito bem ter sido o meu se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça.  

- Foi bem esperta - disse nesse momento o licenciado Peralta -, por ter levado tantos cintos e correntes, pois como se diz, todas as dores são dores... etc., etc.

- Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também poderei dizer: "Senhor Simueque pensou que me enganava com sua filha vesga, mas pela vontade de Deus eu sou coxo".

- Não sei por que vossa mercê está dizendo isso - respondeu Peralta.

- Acontece - disse o alferes - que aquele embrulho, aquele conjunto de correntes, cintos e brincos poderia valer quando muito dez ou doze escudos.  

- Isso não é possível - exclamou o licenciado -, só a corrente que o senhor usava no pescoço parecia valer mais de duzentos ducados.

- Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse à aparência; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as correntes, os cintos, os brincos e outras joias eram apenas imitações. Estavam tão bem-feitas que somente o toque ou o fogo poderiam revelar sua qualidade.

- Dessa forma - disse o licenciado -, houve empate nesse jogo entre vossa mercê e a senhora dona Estefânia?

- E de tal maneira - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as cartas. Mas o principal problema, senhor licenciado, é que ela poderá se desfazer de minhas joias e eu não poderei sair do laço em que cai, pois, embora me pese muito, ela é minha mulher.

- Dê graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela foi embora pela própria vontade e vossa mercê não tem a obrigação de ir buscá-la.

- Verdade - respondeu o alferes -, mas com tudo isso, embora não a procure, a tenho sempre no pensamento, e onde quer que eu vá, a afronta vai estar presente.

- Não sei o que responder - disse Peralta -, a não ser trazer a sua memória dois  versos de Petrarca, que dizem:

Che chi prende diletto di  far frode,
non s'ha di lamentar s'altro I'inganna.  

O que em nossa língua quer dizer: "Aquele que tem o costume e gosto de enganar os outros não deve se queixar quando é enganado".  

- Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois o culpado não deixa de sentir a pena do castigo somente por reconhecer a culpa. Tentei enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com minhas próprias armas, mas não posso evitar que esses sentimentos me assaltem. Finalmente, o que mais importa na minha história, se é que posso chamar assim as minhas aventuras, é ter sabido que dona Estefânia partiu com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento e que tempos atrás havia sido seu amigo para qualquer coisa. Eu não quis procurá-la para não completar minha desgraça. Mudei de casa e de cabelo em poucos dias, pois começaram a cair os pelos de minhas sobrancelhas, dos chios e pouco a pouco eles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: tive uma doença chamada alopecia, conhecida por outro nome mais claro, que é calvície. Encontrei-me verdadeiramente liso: não possuía cabelos para pentear nem dinheiro para gastar. A doença caminhou ao lado da minha miséria e, como a pobreza atropela a honra e leva uns à forca, outros ao hospital e ainda faz outros bater às portas dos inimigos com súplicas e submissões, o que é uma das maiores desgraças que podem acontecer a um infeliz, e por não ter podido garantir as roupas que me haveriam de proteger e assegurar a saúde, ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, me dirigi para lá e tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar; espada ainda possuo, o resto ficará nas mãos de Deus.


Fonte:
Contos Universais (coleção Para gostar de ler vol. 11). 2005. 
(Tradução de Mustafa Yazbek)

sábado, 27 de março de 2021

Adega de Versos – 7: Nemésio Prata

Imagens obtidas na internet, autoria desconhecida.

 

Marcelo Henrique Marques de Souza (No fundo da estante)

Conheciam-se numa banca de jornal qualquer. Ela, com um Nietzsche nas mãos; ele pensando Ela gosta de Nietzsche... E ela, Quanta consoante...

O dono da banca olhava a cena, lamentando menos uma venda. Ninguém compra essa m...

Lá fora, o barulho do avião. Propaganda de um filme. Quer assistir? Por que não?, enquanto esconde o alemão no fundo da pilha. Não falei?...

Na fila do cinema, a mulher de meia-idade, cachoeira de recordações e ressentimentos febris, sugere a si mesma Mais um coração partido, coitada...

No filme, certa cena, o ritmo da música a diminuir e ele sentiu que era o momento. Depois do beijo, o abraço e mais outro, filme desfeito pela metade. Tudo escuro, trechos, acordes, sonatas, ausência. Chega! Ofegar das narinas a salvarem os corpos da omissão das bocas. Cuidado! E os cabelos, tão lisos...

Ao passar pela banca, na saída do filme, a mulher de meia idade compra um Nietzsche. Não dá pra ver daqui, mas parece A origem da tragédia.

O homem da banca, com o olhar perdido no meio das nádegas da mulher, não percebeu a m… que vendeu. Pensou na ex-mulher, que morrera, ao menos para ele, no meio de um filme, já nem se lembra qual. Confessou-lhe o adultério. Trailer da solidão futura.

Os outros dois, depois do filme, tiveram uma filha. Casaram, sem a comédia dos papeis. E depois de algum tempo, foram engolidos pelo apetite da monotonia.

Enquanto isso, a mulher de meia-idade divagava com os braços do homem da banca, que saíam de dentro de um livro que ela carregava não se lembra qual para tentar atenuar a tristeza momentânea. Sem lamentar, entendeu que fora sonho.

O livro jamais seria removido da estante. Apenas uma capa atraente, numa tarde vazia.

Sentados na mesma noite deserta, o casal colhia as poucas vogais que caíam do passado. Final da vela, os créditos a subirem enquanto a música anunciava a última curva. Novo trailer, novo filme, origem de mais um drama sem culpa.

No dia seguinte, pela manhã, o dono da banca recebe mais um Nietzsche da editora. Mais um traste pra ocupar espaço, ruminava enquanto acompanhava o rebolar da filha do casal, relativamente crescida, mocinha, Que ninguém me veja...

A menina não viu o livro. Não sabia quem era Nietzsche. E sonhava sem culpa com a próxima sessão.

Fonte:
II Prêmio UFES de Literatura. Coletânea de contos & crônicas. 
Vitória/ES: Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (EDUFES), 2015.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) – 7 –

 
 Ah, se o outono
Fosse só o cair de folhas!
Meus olhos
Outonam por você.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Com a porta entreaberta
Deixei que entrasses
No meu céu.
E no céu da tua boca
A lua procurei.
Mas pra surpresa minha,
Quando estava de olhos fechados,
Estrelas
Tu me fizestes ver.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Das barras
Dos lençóis do céu
Pingam estrelas
Enfeitando o meu quintal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

De anjo
Me chamavas.
E a chama do amor
Em nós ardia.
Que pena,
Que era só um apelido!
Se estivesses em Paris
Eu estaria feliz.
Mas hoje,
De que me servem as asas
Se estás além
Do meu alcance?
As lágrimas
Emboloram minhas penas
Ao gotejar constante.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

De azul infinito
O anjo dizia:
Escreva, Maria!
Mas ela não sabia
Que na morenice dos seus olhos
O anjo era ela
Pra quem a sua poesia lia.

* Homenagem à amiga Rocio Vaz
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ela dizia
Não ser poeta.
Mas quando sorria,
Ah!!!
A poesia já estava completa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Lágrimas

Na "maré cheia"
Emocionada,
A alma nada ligeira
Esborrifando gotinhas salgadas
Que até poderiam ser chamadas
De pedacinhos de mar interior.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O(remos)
     remos
Que impulsionam
O barco da vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O segredo do sol
É que ele nasce
Todos os dias
Sem nunca ter morrido.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Você nem sabe
Mas às vezes
Pego carona no seu sorriso
E vou tão longe...
É...
Você nem imagina
Mas às vezes
Me escondo no cantinho dos seus olhos
E espero a dor passar.

Nilto Maciel (A Bicicleta)

Sorveu Nivaldo a cerveja do copo e olhou para a pracinha. Meninos corriam, brincavam. Homens e mulheres, sentados às mesas do bar, falavam alto. Nas paredes, jovens seminus e esbeltos sorriam e mostravam garrafas coloridas. Mocinhas seminuas posavam em praia. Estirou as pernas debaixo da mesinha e virou a cabeça para a rua. Vendedor de picolés empurrava carrinho e gritava. Garotos atenderam o chamado. No tempo de milho verde o melhor talvez não fosse comer pamonha ou canjica. Às vezes a mãe cozinhava e assava espigas. Das palhas fazia petecas. Nivaldo e outros meninos jogavam nas calçadas e dentro de casa. Nas tardes quentes, irmãs e primas se balançavam em redes, cantavam e comiam batata doce. “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” “Meu primeiro amor foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”. Dia de festa quando a mãe decidia assar castanhas de caju. Ora no próprio fogão, ora em braseiros no quintal. Das cascas das castanhas manava um líquido quente. Tostadas, eram retiradas do fogo e descascadas. Nivaldo sorria para os meninos na praça. Eles também riam, mas para eles mesmos. O vendedor de picolés gritava de vez em quando e se abanava com chapéu de palha. Nivaldo lambuzava os beiços de cerveja. Carros passavam entre a calçada e a praça. Na Palma do tempo das irmãs e primas a balançarem-se em redes apenas dois carros assustavam meninos, cachorros, jumentos: um jipe e um caminhão. O trem apitava longe e sumia detrás das matas. Nivaldo corria à janela e só avistava a fumaça. No dia da morte de Vargas (ou terá sido de outro personagem?) a cidade parecia silenciosa. Não, não havia silêncio. Rádios tocavam desde cedo música fúnebre. Nenhum menino na rua, nas calçadas. O sol se escondia atrás das nuvens. Mandaram-no à casa de um vizinho. Um velho, sentado numa cadeira de balanço, escarrava e cuspia numa bacia, a todo instante. A música inundava o ar de melancolia, morte. O chão frio, o silêncio, tudo cinzento. O mundo parecia próximo do fim. As portas da igreja-matriz fechadas. Pombos e passarinhos voavam para lá e para cá. À música fúnebre sucedia-se outra.

Nivaldo bebeu mais e mais. Na praça a vida fervilhava. A vida fervilhou ou fervilhava? E o cheiro de batata doce? Ia à janela, espiava a rua, queria sair, brincar. O sol, entretanto, de tão quente, o impelia a zanzar dentro de casa, descalço, nu da cintura para cima. E ouvir irmãs e primas no balanço das redes: “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” Por onde andava a mãe naquelas tardes? Talvez dormisse, sofrida. E os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.

Homem de cabelos brancos arrastou cadeira e se sentou. Garçom dele se aproximou com lepidez. Uma cerveja bem gelada. Sorriram, como se conhecessem há muito. Uma agora, outra depois. Nivaldo sorriu também. E levou aos lábios o copo. Nas paredes, mulheres e homens jovens, bonitos, seminus abriam sorrisos de dentes alvos e perfeitos e mostravam bebidas de variados nomes e marcas. Pela rua passavam carros em disparada. No horizonte, luzes e luzes brilhavam em postes, prédios, casas, em infindável tabuleiro de cores. Nivaldo mirou o perfil do homem de cabelos grisalhos. Talvez o conhecesse. De onde? Desde quando? Colega de faculdade, trinta anos atrás? E o nome? Arnaldo. Não. Cesário. Não. Fagundes. Também não. Mas o conhecia, sim, senhor. O outro o viu a observá-lo e franziu o cenho. Ora, ora! Sair para beber cerveja e ter de aturar um estranho a analisá-lo! Era pedir a conta e se retirar. Nivaldo chamou o garçom, em voz alta, e dirigiu-se ao vizinho: Você é de Palma? O homem quis se fazer de desentendido e virou a cabeça para um lado, a olhar para o interior do bar. Nivaldo insistiu na pergunta e só então o outro fitou os olhos nele. No entanto, Nivaldo queria contemplar a praça e ver os meninos. E quase se assustou ao avistar ao longe, como uma aparição, um corpo estranho em movimento. Vinha de longe para perto, no meio da praça. E era somente uma bicicleta e um garoto a se locomoverem lentamente.
                                                           ***

Nivaldo deu três passos, parou ao lado de Venâncio e encheu de cerveja o copo do conterrâneo. Puxasse cadeira. Agradeceu o convite. Não ia perguntar a idade do outro, mas, pelas aparências, seria uns dez anos mais velho que ele. Venâncio se pôs a falar de Palma e do passado. Quando o pai lhe comprou uma bicicleta, sentiu-se muito importante. Nivaldo sondava os olhos do outro. Semelhantes aos de um rapazinho que um dia apareceu montado numa bicicleta. E nela se deu o seu primeiro passeio na garupa.

Nivaldo pediu licença para se sentar em outra cadeira. Gostava de olhar para a pracinha. Venâncio riu. Também gostava de praças. Sua família o queria padre. A ideia lhe parecia excelente, porque nascido e criado católico, ao lado de uma igreja. Lembrava-se dela? Nivaldo examinava ora a rua, ora os olhos daquele homem que não podia ser outro senão o rapaz de quase meio século atrás. Daquela bicicleta enorme, quase do tamanho de um burro. Coisa nunca vista na cidade. Cheia de adereços, fitinhas, buzina, farol.  Quando crescesse, queria ter uma bicicleta como aquela.

Uma noite avistou de longe o rapaz na calçada, agarrado à bicicleta. Depois o viu montar nela e pedalar até a calçada de sua casa. Queria passear de bicicleta? Talvez estivesse caçoando dele. Queria ou não queria? Num minuto subiu à garupa e saíram pela praça. O jovem pedalava com suavidade, como se flutuasse. E conversava. Não falava da bicicleta. Fez a volta na praça, passou diante da igreja e se dirigiu a uma rua pobre. Acendeu o farol. Meninos corriam. Mulheres sentadas às calçadas. A bicicleta entrava em becos e vielas escuras ou semi-escuras. Com lentidão, como se nunca mais fosse parar. Tomasse cuidado para não aproximar os pés das rodas.
                                                           ***

Venâncio pediu mais cerveja, beberam, conversaram. Nivaldo também chamou o garçom outras vezes. Na pracinha já não se viam os meninos a correr. Casais se agarravam nos bancos. Carros passavam diante do bar em disparada. Venâncio falava sem parar. Após alguns anos no seminário, decidiu seguir outro caminho. Viajou para São Paulo, onde viveu alguns anos. A bicicleta passou aos irmãos mais novos e nunca mais a viu. Os pais morreram velhos. Chamava o garçom, queria beber. Em dado momento, Nivaldo voltou ao sanitário e, ao regressar, não mais viu o outro. Chamou o garçom: Onde andava Venâncio? O rapaz sorriu: Seu Venâncio era assim mesmo; quando se embriagava, saía sem pagar e noutro dia saldava a dívida. Nivaldo permaneceu no bar. Talvez o outro voltasse para completar a história. Se não voltasse, beberia sozinho. Talvez surgisse outro cidadão de Palma. Trouxesse outra cerveja.

Nivaldo olhava para a pracinha. Aonde andavam os meninos? E a bicicleta com o garoto? Talvez dormissem. Sorveu mais uns goles da bebida. Por que Venâncio se tinha retirado, sem uma despedida? Teria se lembrado do passeio de bicicleta? Sentiu no estômago um peso. Não aguentava mais cerveja. Precisava ir para casa. Quis levantar-se, não conseguiu. Uma bicicleta parecia girar ao redor de sua cabeça, ora com sofreguidão, ora muito lentamente.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Figueiredo Pimentel (A Casa de maribondo)


Xisto e Tomás eram conterrâneos filhos da mesma aldeia, uma aldeiazinha de Trás-os-Montes, em Portugal. Desde crianças, sendo quase da mesma idade, eram íntimos amigos, e continuaram sempre na mesma intimidade, depois de grandes, casados e pais de filhos, vindo até a serem compadres.

Tão amigos eram, que resolveram embarcar para o Brasil já que na aldeia não tinham esperanças de melhorar de estado, ao passo que ouviam dizer que nos Brasis, floria a Árvore das Patacas*. Era só a gente subir aos galhos, e recolher moedas.

Assim um belo dia embarcaram no mesmo navio. Sofreram iguais privações, juntos compartilharam as mesmas mágoas, as mesmas saudades da Santa Terrinha, que deixaram, e das esposas, os filhos, os amigos, o burro, mais a vaca, dois bezerrinhos, quatro leitões, e mais de dúzia e meia de cabeças de criação.

Aqui, porém, a sorte mudou. Xisto enriqueceu no comércio de escravos, e numa porção de negócios do mesmo gênero. Tomás, no entanto, continuava pobre, e mais pobre se viu, depois que, à imitação do compadre, mandara vir a mulher. A sua vida, por último, era um horror, e vendo que não podia viver mais na cidade, onde tudo estava caríssimo, por preços exorbitantes, resolveu-se a ir pedir ao comendador Xisto, que possuía léguas e léguas de terras abandonadas, de todo incultas, alguns palmos de terreno, onde pudesse construir uma casinha de morada, e cultivar alguns produtos de pequena lavoura, que o sustentassem, mais a família, e que pudesse ir vender à vila.

Xisto, dessa vez mostrou-se compassivo e generoso: cedeu ao seu compadre pobre, a terra que necessitava, e Tomás ali se aboletou, numa choupana coberta de sapé, que edificou por suas próprias mãos.

As duas moradas eram vizinhas. De um lado, via-se a miserável cabana de Tomás da Abadia, e do outro, a soberba e luxuosa vivenda do “honrado comendador Xisto Manuel de Souza e Silva.

Certa vez, Tomás estava cavando a terra, e Xisto se achava perto, gozando o prazer de não trabalhar, e ver o seu íntimo amigo a mourejar como um escravo. De repente, a enxada de Tomás bateu num corpo estranho, duro, resistente. Cavou mais, afundou o buraco, e eis que descobriu uma panela cheia de moedas de ouro.

Como as terras lhe pertenciam, Xisto apressou-se em levar o pote a casa, muito agitado, e não consentiu mais que o compadre pobre trabalhasse em suas terras.

Despediu o pobre Tomás, e chamou a mulher para verem as riquezas que existiam em sua propriedade.

Abriram então a panela, mas encontraram apenas uma casa de maribondos.

Julgando que aquilo era caçoada de Tomás, o milionário ficou possesso de raiva, e protestou que havia de lhe pregar uma peça.

Apanhou a casa, colocou-se com muito jeito num saco, para não alvoroçar os bichos, e dirigiu-se à casa de Tomás.

Assim que o avistou, foi logo gritando:

– Compadre, fecha as portas e deixa somente um lado da janela aberto...

Tomás fez o que lhe dizia o outro.

Xisto chegando perto da janela, jogou para dentro a casa de maribondos, dizendo:

– Fecha agora tudo, compadre, e toma este presente que te trago.

Mas os maribondos assim que bateram no chão, transformaram-se em moedinhas de ouro, e o pobre Tomás chamou a mulher e os filhos para ajuntá-las.

Xisto gritava:

– Ó compadre, abre a porta!

– Deixa-me compadre Xisto, já não posso mais com estes malditos bichos, que me matam de ferroadas, respondia o outro, que compreendeu imediatamente o que havia sucedido, satisfeito por ver que Xisto não conseguira fazer o mal que pretendera.

E o rico ria-se da boa peça que havia pregado ao pobre.

Ficou assim o pobre rico, e o rico pobre, por querer fazer maldade que não conseguiu.
=======================================
* Antiga moeda de prata, que valia 320 réis.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. 
Publicado em 1896.

Caldeirão Poético XLI

Darly O. Barros

São Paulo/SP

ESTRELA CADENTE


O palco é o céu que a vista descortina
em seu passeio, quando, de repente,
depara-se com bela bailarina,
a deslizar, esguia, reluzente…

A lua, por um palmo de cortina,
também a espia e então, infelizmente,
desaparece a etérea peregrina
que já não baila mais, à minha frente…

Para onde foi? Que fim levou a estrela?
indago de mim mesmo, sem revê-la,
frustrado e, além de tudo, arrependido

por não lhe ter de todo deslumbrado
com ela e a perfeição do seu bailado
feito, naquele instante, o meu pedido…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Francisco Neves de Macedo
Natal/RN, 1948 – 2012

…E O AMOR SE FEZ SONETO


Sono esquecido, a acolho, nos meus braços,
ouço o teu respirar, lindo, ofegante,
nos seus carinhos, mil beijos e amassos,
instante lindo, não mais que um instante!

Tomo-te, assim, vasculho teus espaços,
orgasmos loucos, sonhos fascinantes!
Por tudo que fizemos, os cansaços,
se fazem adrenalina nos amantes.

Respiração… A voz que enleva a gente,
agora se faz terna, mas, ardente.
Voz que em louco prazer se faz dueto.

Onde estiver, é certo estar presente,
cada suspiro, que trará na mente,
este momento, que se fez soneto!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Hegel Pontes
Juiz de Fora/MG, 1932 – 2012

A ALMA DA PEDRA


Longa pesquisa. E o mestre hindu descobre
que existe uma fadiga nos metais;
que o descanso renova, do ouro ao cobre,
o reino singular dos minerais.

Eu também sinto que a matéria encobre
estranhas vibrações emocionais.
É que a pedra tem alma, simples, nobre,
sonhando evoluções espirituais.

E a alma da pedra imóvel é a energia
que evolui, na ilusória letargia,
entre seres gigantes e pigmeus.

E sonha, nos milênios que a consomem,
ser um cacto que sonha ser um homem,
ser um homem que sonha ser um Deus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

DOAÇÃO INFELIZ


Não me censures se não te procuro,
nem tentes entender meu desamor…
Mataram cedo o sentimento puro
que havia no meu peito sonhador!

Este meu jeito indiferente e duro
somente esconde um natural temor,
porque sofri demais; e, te asseguro:
morre a ternura em quem sofreu de amor…

Doei-me inteiro para alguém, um dia;
acreditei nas juras que fazia,
e em paga só colhi desilusão…

Hoje, ferido por tão rude espinho,
acostumei-me tanto a ser sozinho
que até me sinto bem na solidão!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Judas Isgorogota
(Agnelo Rodrigues de Melo)
Traipu/AL, 1901 – 1979, São Paulo/SP

O HERÓI

"— Papai, o que é um herói?
Eu pergunto porque tenho grande vontade
De ser herói também ...

Será que posso ser herói sem entrar numa guerra?
Será que posso ser herói sem odiar os homens
E sem matar alguém?"

O homem que já sofrera as mais fundas angústias
E as mais feias misérias
Trabalhando a aridez de uma terra infecunda
Para que não faltasse o pão no pequenino lar;
O homem que as mais humildes ilusões perdera
No seu cotidiano e ingrato labutar;
Aquele homem, ao ouvir a pergunta do filho:
— "Papai, o que é um herói?"
Nada soube dizer, nada pôde explicar...

Tomou de uma peneira
E cantando saiu, outra vez, a semear!

Fontes:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas.

Mercia Gama (Êta cafezinho bão)


No corre-corre da vida e em meio a esta pandemia, os passos devem ser um pouco lentos, senão, há necessidade parar, respirar e seguir, pois o uso de máscara é essencial.

O dia amanhece com temperatura morna e ir ao centro da cidade resolver cositas com tempo determinado é importante, e resolvidas com um proseio aqui, ali e o que não dizer de se dar ao luxo de tomar um delicioso cafezinho, num espaço conhecido na esquina da Rua Visconde com a Rua Jacques Félix, cujo proprietário, e funcionárias tomam o devido cuidado na distância das mesas e suas higienizações, é bom demais.

Ao chegar, como sempre, os cumprimentos matinais, sorrisos e a funcionária já pergunta se é o cafezinho de sempre, que com sorriso retribuído e positivo com a mão, ela já vai providenciar com capricho o feitio, e com luvas nas mãos componho o prato com quitutes deliciosos e vou até a mesa aguardá-la.

O tempo do feitio do café foi rápido. Ela chega à mesa com a xícara e pergunta se gostei e quando olhei o designer fiquei emocionada, e me pergunta se acertou o meu nome, pois ela tinha escrito o meu nome e desenhado um pequeno coração e respondi um sim repleto de alegria e gratidão.

Agradeci a ela todo o seu carinho, atenção, gentileza para comigo como também com outros clientes quando terminei meu deguste me dirigi ao caixa para efetuar pagamento e depois me despedi de todos principalmente dela com cumprimentos à moda pandemia.

Há momentos em nossa vida que são assim com pequenas e maravilhosas surpresas que nos fortalece e reafirmar a importância do viver com alegria, amizades, respeito, simplicidade, gentilezas, amor, gratidão muita gratidão. Êta cafezinho bão!

quinta-feira, 25 de março de 2021

Arquivo Spina 33: Newber Macieira

 


Alex Xela Lima (Será o Benedito?!)


Nunca imaginei uma coisa daquelas. Foi uma situação bem bizarra. Eu olhava e permanecia incrédulo mesmo testemunhando o fato, justamente, no momento mais especial da noite.

A festa transcorria tranquilamente convidado a convidado, tia a tia, primo a primo, amigo a amigo até chegarmos ao momento do aniversariante soprar a velinha e podermos experimentar o bolo que chamava tanta atenção.

O pequeno Thomas, agora com dois anos, estava nos braços de sua mãe, ladeado por seu pai e sua irmã mais velha. Todos em volta celebravam aquele momento e ficaram intrigados com aquela insistência injustificada e com o desfecho bizarro que gerou vários cochichos entre os presentes.

Calma, já vou lhe contar.

Enquanto os parabéns eram cantados alegremente, uma tia robusta gritou: – Thomas, faça um pedido e apague a velinha! O pequenino olhou para o bolo, mirou a vela, soprou forte e pôs fim à chama. Todos comemoram.

Parecia ter sido um sopro suficiente, mas a chama reacendeu. Com a ajuda da mãe, novo sopro e nova comemoração dos convidados. – Corta o bolo! – gritou a tia robusta. Mas, a danada da vela ressuscitou pela segunda vez. Os convidados sorriram e nova investida contra a chama da vela foi realizada, sem sucesso.

Por uma quarta vez a chama da vela foi alvo de Thomas, agora com a ajuda de seus pais e sua irmã. Dessa vez não houve celebração. Apreensivos e em silêncio, todos fitaram a vela, que relutava em se despedir.

– Que vela teimosa! – exclamou outra tia.

– Deve ser um fantasma – comentou uma criança.

Fato foi que a vela chamou atenção mais do que deveria.

A tia robusta, irritada com a teimosia da vela e farta de esperar pela fatia tão almejada, possessa, despejou refrigerante no alto do bolo, afogando a vela e sua insistente chama que não tornou a brilhar. Um silêncio indagador tomou conta dos olhares dos convidados.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Menção honrosa no 1º Concurso de Crônicas da Academia Internacional da União Cultural

Fonte:
Facebook da Academia

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 6 –

XXI


De um ramo desta faia pendurado
Veja o instrumento estar do pastor Fido;
Daquele, que entre os mais era aplaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.

Ser eternamente consagrado
Um ai saudoso, um fúnebre gemido;
Enquanto for no monte repetido
O seu nome, o seu canto levantado.

Se chegas a este sítio, e te persuade
A algum pesar a sua desventura,
Corresponde em afetos de piedade;

Lembra te, caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obséquio dedica à sepultura.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

XXII

Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;

Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.

As lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida:

A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

XXIII

Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata Almena
Contra o meu rendimento se conjura:

Aqui me manda estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da filomena,  
E bem que este martírio hoje me ordena,
Jamais espero ter melhor ventura.

Veio a dar me somente uma esperança
Nova ideia do ódio; pois sabia,
Que o rigor não me assusta, nem me cansa:

Vendo a tanto crescer minha porfia,
Quis mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirania.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

XXIV

Sonha em torrentes d'água, o que abrasado
Na sede ardente está; sonha em riqueza
Aquele, que no horror de uma pobreza
Anda sempre infeliz, sempre vexado:

Assim na agitação de meu cuidado
De um contínuo delírio esta alma presa,
Quando é tudo rigor, tudo aspereza,
Me finjo no prazer de um doce estado.

Ao despertar a louca fantasia
Do enfermo, do mendigo, se descobre
Do torpe engano seu a imagem fria:

Que importa pois, que a ideia alívios cobre,
Se apesar desta ingrata aleivosia,
Quanto mais rico estou, estou mais pobre.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

XXV

Não de tigres as testas descarnadas,
Não de hircanos leões a pele dura,
Por sacrifício à tua formosura,
Aqui te deixo, ó Lise, penduradas:

Ânsias ardentes, lágrimas cansadas,        
Com que meu rosto enfim se desfigura,          
São, bela ninfa, a vítima mais pura,            
Que as tuas aras guardarão sagradas.   

Outro as flores, e frutos, que te envia,        
Corte nos montes, corte nas florestas;         
Que eu rendo as mágoas, que por ti sentia:   

Mas entre flores, frutos, peles, testas,
Para adornar o altar da tirania,
Que outra vítima queres mais, do que estas?

Fonte:
Álvares de Azevedo. Poesias. Livro publicado em 1853.

Rachel de Queiroz (O jogador de sinuca)


Quem não tem fascinação por Minas Gerais, suas cidades históricas, o mistério de suas velhas igrejas, os milagres do Bom Jesus de Congonhas?

Mas aqui se vai falar acerca de alguém que nem é santo de pedra-sabão nem querubim banhado a ouro, mas criatura como nós, jogador de sinuca na cidade de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais.

E entre parênteses façamos um pequeno louvor ao nobre jogo de sinuca, que justamente me foi revelado pelo jogador herói desta história, num meio-dia de sol quente, à sombra do salão do Bar Campestre, na dita cidade de Lafaiete.

Vínhamos nós comendo légua e paisagem desde Juiz de Fora e paramos à porta do bar de nome tão convidativo em busca de um refrigerante. Na rua ficara o jipe (então novidade), empoeirado e de ar diligente, sofrendo uma vistoria minuciosa por parte de uma dúzia de moleques. O bar tinha tudo, ou quase tudo: cerveja gelada e telefone para o Rio, pastéis de carne de porco e duas mesas de sinuca novas em folha, com todos os seus acessórios.

Ao chegarmos estavam ambas as mesas vazias. Porém, mal nos sentáramos diante da cerveja e dos pastéis, entram salão adentro dois aficionados, combinando uma partida.

O primeiro deles era um moço alto, cara de menino, fala baixa e terno tropical cinza à moda do tempo, as calças à altura do estômago. Apesar dessas demasias de janota, dava uma impressão de timidez, quase de gaucherie, que fazia a gente sentir vontade de lhe rogar que não se atirasse com tanta inocência às goelas do leão.

E o leão era o outro: de pequeno só tinha o tamanho, as mãos e os pés. No mais era gigante — nos passos, na prosápia, na cabeleira negra ondulada, no perfil de índio americano, na voz grave e arrogante, nos sapatos cor de abóbora com solas de borracha.

Já da porta, desabotoava o jaquetão azul-marinho, como um magarefe ansioso de dar serviço à musculatura, embora musculatura não tivesse, malgrado a sugestão de Hércules que passava aos outros — Hércules magro e miúdo.

Tirando o casaco todo, exibiu a camisa de seda amarela, os suspensórios transparentes de matéria plástica, o cinturão idem; e não só essas utilidades brilhantes e inofensivas exibia, como também um revólver de verdade, metido num coldre de couro estampado, e de cano tão comprido que lhe descia quadril abaixo, quase até a coxa.

Posto em mangas de camisa, atravessou a sala, desafivelou o cinturão, retirou a arma e a depositou na caixa. Nesse gesto, como em tudo, nunca vi ninguém produzir tal impressão de eficiência. E então o cerimonial com que iniciou o jogo — a carteira de cigarros e os fósforos equilibrados à borda da mesa; as mangas da camisa magistralmente arregaçadas; o primeiro cigarro aceso com lentidão e os anéis regulares de fumaça que subiram para o forro; depois a escolha dos tacos: media-os, apalpava-os, tateava-lhes as pontas com a polpa dos dedos — só os faltava lamber. Em tudo traía o profissional ou, no mínimo, um campeão de amadores. Chegava a ser um massacre premeditado a escolha do parceiro, que, do outro lado da mesa, parecia encolher-se, depois de apanhar ao acaso um taco qualquer e o esfregar automaticamente no giz, sem tirar os olhos dos preparativos infernais do contendor.

Bem, claro que já se adivinhou o desenlace do caso: o campeão, o famanaz, acabou apanhando como um judas de capim. Apanhou de tal jeito que, na primeira partida, não fez um ponto, na segunda nenhum também, e a terceira, abandonou-a no meio, quando o escore já estava em 49 a 0.

Contudo, esta história não mereceria ser contada se não fora a atitude da criatura no decorrer daquelas três partidas. Era um fenômeno, era um teatro, era o príncipe Hamlet da Dinamarca exibindo paixões e desdéns.

Do começo jogava a bem-dizer com severidade, disposto a dar uma lição de sinuca clássica ao atrevido rapazelho que, embora o ultrapassasse quase meio metro em altura — tal a força moral do adversário —, parecia por isso mesmo ainda mais fedelho e desamparado. E toda vez em que o garoto, prudente, encestava a sua bola vermelha, marcando um triste ponto, ele dizia alto: “Sorte, hein, menino!”

Que ele só se passava para as bolas de cinco pontos para cima — a azul, a cor-de-rosa, a preta. E falhava, infalivelmente. Parecia um sortilégio: o homem ensaiava as jogadas mais sensacionais; fazia cálculos, dormindo na pontaria, punha o taco vertical, horizontal e oblíquo; punha-o às costas, jogando com os braços para trás; dava a tacada com a mão esquerda, com os olhos fechados, com os olhos abertos. E, fosse de que jeito fosse, o resultado era sempre este: zero. Aliás, não só zero, porque era também menos que zero — sete, cinco, três pontos a menos, inúmeras vezes. Nem também lhe valia o jogar normal — o escore não variava nunca a seu favor.

E pelo meio da primeira partida, já a mais dos 40 a 0, o herói começou a se enfezar. Fumava incendiariamente e uma nuvem de fumo o envolvia como a Jeová no alto do monte. Xingava o taco, o pano e as bolas, explicava ao público assistente que na véspera surrara em cinco partidas consecutivas um sujeito que tinha a fama de campeão em Barbacena — nem empate tinha havido. Agora era aquela sorte mesquinha...

Pegou então do taco, que lhe chegara a vez, apontou modestamente para a bola marrom (só quatro pontos) e o que conseguiu foi meter a própria bola branca no buraco.

Aí, não só nós, por trás dos nossos óculos escuros, como inclusive o homem da caixa, atrás da registradora, soltamos um risinho irreprimível. O grande jogador nos encarou de fito, como se fosse reagir; mas decerto leu nos nossos olhos a covardia e o arrependimento e resolveu nos desprezar, como nos desprezou efetivamente.

E continuou sem dar uma dentro, enquanto o menino das calças altas ia encestando de uma em uma, até que engoliu a preta, a última.

Da segunda partida em diante a gente só sentia uma vontade: levantar, chegar à mesa de sinuca e convidar o herói para ser nosso inimigo, figadal e por toda a vida.

Desvairado, de orgulho ferido, o homem parecia um vulcão querendo explodir, papocando as crostas de lama seca, ploc-ploc, e deitando fumaça venenosa. Que miséria esta fraca pena ser incapaz de descrever espetáculo tão singular, embora repulsivo!

De repente, parece que o atacou um acesso de masoquismo, porque ele arrancou o giz do parceiro, que até então vinha fazendo as marcações no quadro, e passou a registrar as próprias derrotas. Menos dez para si, mais quatorze para o outro, era de mal a pior, só variava para aumentar. Se arranjava um pontinho, logo o perdia numa jogada atrevida e o outro, como sempre, de grão em grão ia encestando.

Começada a terceira partida, o ambiente já ficara dramático. Da porta, um moleque de “sereno” arriscou um assobio. O homem do bar pôs-se a abrir e a fechar as gavetas da registradora, assanhando campainhas nervosas. E até o mocinho, parceiro do herói, começava a descontrolar-se — tanto que, em vez de jogar na bola amarela, que era a da vez, jogou na azul — e acertou. Acertou em seguida a saltada amarela, depois a verde, e só foi errar na marrom.

Então o herói pegou do taco como se empunhasse uma lança de guerra; afiou-o no giz, cuspiu no dedo, fechou um olho, fez pontaria na bola preta, que era a sua favorita e, pela segunda vez, suicidou-se, atirando a bola branca no buraco.

Um silêncio de mau agouro nos envolveu; ele cuspiu no ladrilho e correu o olhar desvairado pela assistência. Depois, no seu passo forte, encaminhou-se à caixa e pediu o revólver.

O adversário, muito branco, apagava no quadro-negro os últimos sete pontos que o parceiro perdera, como se quisesse considerar o dito por não dito.

Mas o herói dava-lhe as costas. Lentamente enfiou o coldre com a arma no seu cinturão de plástico. Depois se dirigiu ao cabide, de olhar sombrio, enfiou a manga da mão direita, errou a esquerda, enquanto todos o contemplávamos fascinados; por fim, saiu para o sol da rua, pisando duro, sem se despedir de ninguém, como um conquistador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do morro branco. RJ: José Olympio, 2012.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Contos e Lendas do Mundo (A pérola)


Ela havia nascido no fundo do mar, a partir de um alegre e doloroso encontro entre um grão de areia e uma pequena ostra.

Quando ela apareceu, as suas companheiras ficaram muito felizes. Até mesmo a rainha do mar ficou admirada com aquela pérola rara e maravilhosa, e a circundou de cuidados particulares.

Todos os dias, ao amanhecer, a ostra, já crescida, se abria e a pérola se deixava acariciar pelo Sol, refletindo seus raios ao redor, para a alegria de todos.

Mas o inverno chegou. Os dias passavam e o Sol não aparecia mais. Ficava escondido atrás das nuvens.

A pérola esperava que a luz do Sol voltasse, mas enquanto isso não acontecia, o seu brilho diminuía cada vez mais. Mesmo assim, incrustada no banco de corais no fundo do mar, ela procurava alegrar os peixes que vagueavam ao seu redor. Porém, quanto mais o tempo passava, mais ela se sentia invadida pela escuridão.

A rainha do mar sabia de tudo o que estava acontecendo e lhe mandou um mensageiro.

A pérola, que já sentia a morte chegando, foi colocada em uma baía de águas baixas e límpidas, onde dezenas de pequenas pérolas estavam crescendo. O Sol resplandecia naquelas águas, mas a pérola rara não conseguia mais vê-lo.

Era como se os longos meses sem o Sol lhe tivessem tirado a visão.

Mesmo assim ela estava feliz por estar naquela baía, porque soubera que havia sido a rainha do mar a mandá-la para aquelas águas.

Embora não conseguindo ver a luz do Sol, ela não era insensível ao calor dos reflexos - se bem que ainda fracos - que as pequenas pérolas lhe mandavam.

Para ela, que havia irradiado os raios de Sol, não era nenhum sacrifício retribuir a atenção das perolazinhas, refletindo os pequenos raios de luz que recebia.

Essa troca era como um bálsamo para ela e lhe dava um pouco de paz.

As pequenas pérolas, que a viam como predileta entre todas, queriam aprender a refletir os raios de Sol como ela fazia.

A pérola amava as perolazinhas e não queria decepcioná-las, confidenciando-lhes que estava cega.

Por isso não disse nada e fez por elas o que sempre tinham feito quando a ostra se abria.

E as perolazinhas viam luz... Luz... Luz... mesmo se a pérola só sentia escuridão... Escuridão... Escuridão.

Só à noite, quando ninguém a via, a pérola rara derramava uma lágrima no segredo da ostra.

Uma noite, o mensageiro, enviado pela rainha do mar, chegou àquela baía e foi bater na porta da ostra. Quando ela se abriu, grande foi a surpresa de todos.

Do centro da ostra, onde a pérola repousava, brotava uma luz intensa, semelhante àquela do Sol.

O amor lhe tinha ensinado a transformar a escuridão em luz.

Cecília Meireles (Antologia Poética) IV

A ÚLTIMA CANTIGA


Num dia que não se adivinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-me: «Era a expressão
que ela ultimamente tinha.»

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça,
— toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito: “Não”.

E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.
=========================

CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CONVENIÊNCIA

Convém que o sonho tenha margens de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio

Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais...
E por esse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados, tontamente...

Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei: “Que bom! nem é preciso respirar!...”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SERENATA

Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Isaac Asimov (O Sorriso roubado)


Recentemente, disse para o meu amigo George, que estava comigo no bar tomando uma cerveja (ele estava tomando uma cerveja; eu estava tomando um refrigerante):

- Como vai o seu diabinho?

George se gaba de ter um demônio de dois centímetros de altura que faz tudo que ele pede. Jamais consigo fazê-lo admitir que está mentindo. Nem eu nem mais ninguém,

Ele olhou para mim e disse, em tom conspiratório:

- Ah, sim, você é aquele que sabe a respeito! Espero que não tenha contado a mais ninguém!

- Claro que não! Já basta eu achar que você é maluco. Não quero que pensem o mesmo de mim!

(Na verdade, ele já falou sobre o demônio, na minha frente, com pelo menos uma dúzia de pessoas, de modo que não haveria nenhuma razão para eu guardar segredo, mas achei melhor não dizer isso a ele.)

- Eu não aceitaria essa sua triste incapacidade de acreditar no que não pode compreender (e você não compreende tantas coisas assim), mesmo que me oferecessem em troca um quilo de plutônio. E o que vai restar de você, se o meu demônio um dia descobrir que você o chamou de diabinho, não valerá ura átomo de plutônio.

- Já sabe qual é o seu nome verdadeiro? – perguntei, sem me deixar abalar.

- O nome dele não pode ser pronunciado por lábios humanos. A tradução, pelo que ele me deu a entender, é alguma coisa como: “Sou o Rei dos Reis; admirem minha obra e fiquem de queixo caído…”. Na verdade, acho que ele está mentindo – acrescentou George, olhando pensativamente para o copo de cerveja. – Ele é um fichinha no seu mundo. É por isso que se mostra tão ansioso para fazer as minhas vontades. Em nosso mundo, com nossa tecnologia primitiva, ele pode se mostrar.

- Ele tem se mostrado ultimamente?

- Na verdade, sim – disse George, dando um profundo suspiro e levantando os olhos azuis e tristes que se fixaram nos meus. O bigode grisalho levou algum tempo para voltar ao lugar depois daquela exalação forçada.

Tudo começou com Rosie O’Donnell [disse George], que, além de ser amiga de uma das minhas sobrinhas, é uma coisinha adorável.

Ela tem olhos azuis, quase tão vivos quanto os meus; cabelos ruivos, longos e brilhantes; um narizinho delicioso, semeado de sardas da forma aprovada por todos que escrevem romances; um pescoço gracioso, ura corpo esbelto que não é opulento de forma desproporcional, mas simplesmente delicioso em suas promessas de êxtase.

Naturalmente, tudo isso tinha para mim um interesse apenas intelectual, já que cheguei à idade da discrição faz muitos anos, e hoje me entrego aos prazeres da carne apenas quando as mulheres insistem, o que, para dizer a verdade, não ocorre com muita frequência.

Além do mais, Rosie havia desposado recentemente (e, por alguma razão, adorava de forma irritante) um irlandês corpulento que não fazia nenhum esforço para esconder o fato de que era uma pessoa muito forte e possivelmente mal-humorada. Embora eu não tivesse dúvida de que poderia enfrentá-lo em minha mocidade, a triste realidade é que a minha mocidade já havia ficado para trás… um pouquinho para trás.

Assim, foi com uma certa relutância que aceitei a tendência de Rosie de me confundir com uma amiga intima do mesmo sexo e faixa etária e me fazer objeto de suas confidencias infantis.

Não que eu a culpe, compreenda. Minha dignidade natural, e o fato de que minha figura altiva faz as pessoas se lembrarem de um imperador romano, automaticamente atraem as jovens mais belas para minha pessoa. Entretanto, eu nunca havia permitido que as coisas fossem longe demais. Sempre me conservava a uma distância respeitável de Rosie, pois não queria que alguma intriga chegasse aos ouvidos do indubitavelmente forte e possivelmente mal-humorado Kevin O’Donnell.

- Oh, George – disse Rosie um dia, batendo palmas com aquelas lindas mãozinhas -o meu Kevin é mesmo um amor… sabe o que ele faz?

- Acho que você não devia… – comecei, cautelosamente, sem saber que tipo de revelação indiscreta ela estava para me fazer.

Rosie não estava nem me ouvindo.

- Ele franze o nariz, pisca o olho e sorri de um jeito tão gostoso… é como se o mundo inteiro se iluminasse. Oh, se ao menos eu tivesse um retrato dele quando faz isso! Já tentei tirar um, mas não saiu direito.

- Por que não se contenta com o original, minha cara?

A moça hesitou por um momento e depois disse, com um rubor cativante nas faces:

- Acontece que ele não é sempre assim. Kevin tem um emprego muito duro no aeroporto e às vezes chega em casa exausto. Nesses dias, se aborrece com qualquer coisa. Chega a implicar comigo. Se pelo menos eu tivesse uma fotografia dele, como realmente é, isso me serviria de consolo. Seria tão bom… – lamentou-se, com os olhos úmidos.

Devo admitir que senti vontade de lhe contar a respeito de Azazel (é assim que eu o chamo, porque me recuso a usar aquela que, segundo ele, é a tradução do seu nome verdadeiro) e lhe explicar o que ele poderia fazer por Rosie.

Entretanto, como sabe muito bem, sou uma pessoa extremamente discreta. Até agora, não consigo entender como foi que você descobriu que sou amigo de um demônio.

Além disso, foi fácil para mim resistir ao impulso, pois sou um homem prático, realista, avesso a sentimentalismos piegas. Admito que meu coração tem um fraco por mocinhas indefesas, contanto que sejam radiantemente belas (no bom sentido, é claro… quase sempre). E me ocorreu que, na verdade, eu podia muito bem ajudá-la sem mencionar Azazel. Não que ela fosse duvidar de mim, é claro, porque sou um homem cujas palavras merecem crédito, a não ser de tipos psicóticos como você.

Levei o problema a Azazel, que não se mostrou nem um pouco satisfeito.

- Você só me pede coisas abstratas – queixou-se.

- Nada disso! – protestei. – O que estou lhe pedindo é uma simples fotografia. Tudo que tem a fazer é materializá-la.

- Oh, isso é tudo que tenho a fazer? Se é tão simples assim, por que você não faz? Imagino que conheça o princípio de equivalência entre massa e energia.

- Só uma fotografia!

- É, mas com uma expressão que você é incapaz de definir ou descrever.

- Nunca o vi olhar para mim do jeito como olha para a esposa, é claro. Mas tenho uma fé infinita na sua capacidade.

Eu estava certo de que conseguiria dobrá-lo com um pouco de adulação. Azazel disse, de cara feia:

- Você vai ter de tirar a fotografia.

- Mas eu não vou conseguir a expressão…

- Não será necessário. Posso cuidar disso, mas será muito mais fácil se dispuser de um objeto material para focalizar a abstração. Uma fotografia, em suma. Uma fotografia, ainda que muito mal tirada, como provavelmente a que você vai me dar. E só me comprometo a fazer uma cópia. Não vou me arriscar a sofrer uma distensão do músculo subjuntivo só para atender a você ou a qualquer outro cabeça de alfinete deste planeta.

Sabe como é… acho que Azazel diz essas coisas para se sentir importante e valorizar o que faz por mim.

Encontrei-me com os O’Donnell no domingo seguinte, quando voltavam da missa. (Na verdade, estava à espera deles.) Não se incomodaram que eu tirasse um retrato deles em seus trajes dominicais. Rosie parecia muito alegre; Kevin, um pouco taciturno. Depois, da maneira mais casual possível, tirei uma fotografia do rosto do rapaz. Ele não estava sorrindo, nem franzindo o nariz, ou fazendo o que quer que fazia que Rosie achava tão atraente, mas achei que não tinha importância. Eu não sabia nem mesmo se a câmera estava focalizada corretamente. Afinal, não tenho muita experiência como fotógrafo.

Em seguida, visitei um amigo que adora fotografia. Ele revelou as duas fotos e fez uma ampliação do rosto de Kevin,

Na verdade, ele me atendeu de má vontade, resmungando que estava muito ocupado, mas não lhe dei atenção. Afinal, que importância poderiam ter suas tolas atividades em comparação com as questões transcendentais que me afligiam? Sempre fico surpreso com o número de pessoas que não compreendem esta simples verdade.

Depois de fazer a ampliação, porém, meu amigo mudou inteiramente de atitude. Ficou olhando para ela e disse, em um tom que só posso caracterizar como ofensivo;

- Não me diga que você conseguiu tirar uma foto como esta!

- Por que não? – disse eu, estendendo a mão para pegá-la.

Ele, porém, não parecia disposto a entregar a fotografia.

- Você vai querer mais cópias – declarou.

- Não, não vou – disse, olhando por cima do ombro.

Era uma fotografia extremamente nítida, em cores vivas.

Kevin O’Donnell estava sorrindo, embora eu não me lembrasse daquele sorriso no momento em que tirara a foto. Parecia alegre e simpático, mas para mim não fazia a menor diferença. Talvez uma mulher, ou um fotógrafo como o meu amigo (que, para ser franco, não era nenhum modelo de masculinidade) pudesse ver mais alguma coisa na foto.

- Então só mais uma… para mim – disse ele.

- Não – repeti, com firmeza, ao mesmo tempo que lhe arrancava o retrato das mãos. – £ o negativo, por favor. Pode ficar com a outra fotografia… a do casal.

- Essa não me interessa – disse, em tom petulante.

Quando saí, ele parecia muito desapontado.

Coloquei a fotografia em um porta-retratos, coloquei o porta-retratos sobre a lareira e recuei para apreciar. O rosto do rapaz tinha, realmente, uma expressão bastante jovial. Azazel tinha feito um bom trabalho.

                Fiquei imaginando qual seria a reação de Rosie. Telefonei para ela e pedi-lhe para passar na minha casa. Acontece que ela tinha algumas compras a fazer, mas se eu pudesse esperá-la mais ou menos uma hora… uma hora…

Eu podia e esperei. Eu havia embrulhado a foto para presente e entreguei-a a ela sem dizer uma palavra.

- Ei! – exclamou, enquanto abria o embrulho. – Que ideia foi essa? Não é meu aniversário nem… – Mas nessa hora ela viu o que era e interrompeu o que estava dizendo. Arregalou os olhos e começou a respirar mais depressa. Afinal, murmurou: – Minha nossa! – Olhou para mim – Você tirou esse retrato no domingo?

Fiz que sim com a cabeça.

- Está simplesmente perfeito. Oh, Kevin saiu tão bem! Era essa a expressão que eu queria captar! Por favor, posso ficar com ele?

- Claro. É todo seu – disse, com simplicidade.

Ela se pendurou no meu pescoço e me beijou nos lábios. Para uma pessoa como eu, que detesta sentimentalismos, é claro que foi constrangedor; além disso, mais tarde tive de enxugar o bigode. Mas eu sabia que era a maneira que Rosie encontrara para demonstrar sua gratidão, de modo que nada fiz para impedi-la.

Depois disso, passei uma semana sem vê-la.

Uma semana depois, encontrei-me com Rosie na porta do açougue. Teria sido uma indelicadeza de minha parte não me oferecer para carregar suas compras. Naturalmente, imaginei se isso significaria outro beijo de agradecimento e tomei a decisão de não recusar para não ofender a pobrezinha. Entretanto, ela parecia um pouco triste.

- Como vai a fotografia? – perguntei, com medo de haver desbotado.

Ela imediatamente se animou.

- Perfeita! Coloquei-a em cima da cômoda, em um ângulo tal que posso vê-la quando estou sentada à mesa para jantar. Seus olhos me veem de soslaio, de um jeito maroto,  o nariz está franzido com aquele jeitinho que só o Kevin é capaz de fazer. Parece que está vivo! Minhas amigas não tiram os olhos dele. Acho que vou escondê-la quando elas me visitarem, antes que alguma delas a roube.

- Você deve tomar cuidado é para que não roubem o seu marido – disse eu, brincando.

A expressão de tristeza voltou aos olhos de Rosie. Ela sacudiu a cabeça e disse:

- Acho que não há perigo. Resolvi tentar outra abordagem.

- O que Kevin achou da foto?

- Ele não disse uma palavra. Nem uma palavra. Nem mesmo sei se a viu.

- Por que não lhe mostra o retrato e pergunta o que acha?

Ela se manteve em silêncio enquanto eu me arrastava a seu lado por meio quarteirão, carregando aquela enorme sacola de compras e imaginando se, além de pegar no pesado, ela também estava esperando que eu lhe desse um beijo.

- Na verdade – disse Rosie, de repente -, ele está passando por uma fase de muita tensão no trabalho, por isso, acho que não seria uma boa ideia. Ele chega em casa tarde e mal fala comigo. Mas não tem importância. Você sabe como são os homens – acrescentou, tentando sorrir sem muito sucesso.

Tínhamos chegado ao edifício onde ela morava e passei-lhe a sacola. Ela me disse, ao se despedir:

- Mais uma vez, muito obrigada pela fotografia! É linda!

Entrou no edifício. Não havia pedido um beijo, e eu estava tão distraído que só me dei conta do fato quando estava a meio caminho de casa e me pareceu tolice voltar lá simplesmente para não desapontá-la.

Mais dez dias se passaram. Uma manhã, ela me telefonou. Será que eu podia ir almoçar na sua casa? Eu disse para ela que não ficaria bem. O que os vizinhos iriam pensar?

- Ora, que bobagem! Você é tão velho que… quero dizer, você é um velho amigo. Ninguém jamais pensaria… além do mais, preciso dos seus conselhos.

Quando ela disse isso, tive a impressão de que estava soluçando.

Bem, você sabe que sou um cavalheiro, de modo que na hora do almoço lá estava eu naquele pequeno e aprazível apartamento. Rosie havia preparado sanduíches de queijo e presunto e fatias de torta de maçã, e a fotografia estava em cima da cômoda, exatamente como ela dissera.

Rosie me apertou a mão e não fez nenhuma menção de me beijar, o que teria me deixado aliviado se não estivesse tão preocupado com sua aparência. Ela estava positivamente transtornada. Comi metade de um sanduíche esperando que dissesse alguma coisa. Quando vi que não eslava disposta a falar, decidi perguntar-lhe diretamente o que a deixara tão aborrecida.

- Foi Kevin? – perguntei, só para confirmar.

Ela fez que sim com a cabeça e começou a chorar sem parar. Dei-lhe um tapinha na mão e perguntei-me se isso seria suficiente para consolá-la. Abracei-a com carinho, e ela finalmente disse:

- Acho que ele vai perder o emprego.

- Não diga bobagens. Por quê?

- Ele anda tão nervoso! Não só aqui em casa, mas no trabalho também, ao que parece. Há séculos que não o vejo sorrir. Não me lembro da última vez que me beijou ou me disse uma palavra gentil. Está sempre brigando com todo mundo, o tempo todo. Não quer me dizer o que há de errado e fica danado quando pergunto. Um amigo nosso, que trabalha no aeroporto com Kevin, telefonou ontem para mim. Disse que Kevin está se comportando de uma forma tão estranha no trabalho que seus superiores já começaram a notar. Tenho certeza de que se continuar assim vai ser despedido, mas que posso fazer!

Eu estava esperando alguma coisa parecida desde o nosso último encontro, e sabia que era melhor dizer a verdade… Azazel que se danasse. Pigarreei.

- Rosie… a fotografia…

- Eu sei, eu sei – disse ela, pegando a fotografia e apertando-a contra os seios. – É ela que me dá ânimo para continuar a viver. Este é o verdadeiro Kevin, e sempre o terei, sempre, independente do que acontecer. – Ela começou a soluçar.

Foi muito difícil para mim dizer o que tinha de ser dito, mas não havia outra saída.

- Você não entende, Rosie – comecei. – O problema é justamente a fotografia. Tenho certeza. Toda essa simpatia, toda essa alegria de viver, tinham de vir de algum lugar. Foram tiradas do próprio Kevin. Você não entende?

Rosie parou de chorar.

- Do que é que você está falando! Uma fotografia é apenas a impressão que a luz deixa num filme!

- Claro, claro, mas no caso desta fotografia… – Desisti. Eu conhecia as limitações de Azazel. Ele não podia ter criado a mágica da fotografia a partir do nada, mas seria difícil explicar a Rosie a lei da conservação da alegria.

- Vamos colocar a coisa deste jeito. Enquanto essa fotografia continuar aqui, Kevin continuará infeliz, nervoso e mal-humorado.

- Mas é claro que ela vai continuar aqui – disse Rosie, colocando a foto de volta no lugar. – Não entendo como você pode dizer coisas desagradáveis de um objeto tão lindo… Sabe de uma coisa? Vou fazer um café para nós.

Ela foi para a cozinha, e dei-me conta de que jamais a convenceria a desfazer-se do retrato. Fiz a única coisa que, nas circunstâncias, me restava. Afinal de contas, a fotografia tinha sido tirada por mim. Sentia-me responsável pelas suas propriedades maléficas. Peguei o porta-retratos, removi rapidamente a fotografia, rasguei-a em dois pedaços… quatro… oito… dezesseis, e guardei no bolso os pedaços de papel.

Nesse momento, o telefone tocou e Rosie entrou na sala para atender. Coloquei o porta-retratos de volta no lugar. Sentei-me e esperei.

Ouvi a voz de Rosie, radiante.

- Oh, Kevin, que maravilha! Estou tão contente! Mas por que você não me disse? Nunca mais faça isso comigo!

Aproximou-se de mim, com um sorriso de felicidade no rostinho bonito.

- Sabe o que meu marido fez? Ele estava com uma pedra no rim há quase três semanas. Consultou inclusive um médico. Estava sofrendo dores terríveis, talvez tivesse de ser operado, e não me contou nada! Disse que não queria me deixar preocupada. Que tolo! Não admira que estivesse tão nervoso e mal-humorado. Nem ocorreu a ele que procedendo assim me deixaria muito mais preocupada do que se me contasse tudo desde o início. Francamente! Os homens não têm jeito mesmo!

- Mas por que agora você está tão alegre?

- Porque ele eliminou a pedra. Isso aconteceu há alguns minutos e a primeira coisa que Kevin fez foi ligar para mim, o que foi muita gentileza da parte dele… já era tempo. Parecia tão feliz e animado! Era como se tivesse voltado a ser o velho Kevin. Era como se eu estivesse falando com o Kevin da fotografia, que… – Interrompeu o que estava dizendo e gritou: – Onde está a fotografia?

Eu estava de pé, preparando-me para ir embora. Antes de chegar à porta, disse para ela;

- Eu a rasguei. Foi por isso que ele expeliu a pedra. Caso contrário…

- Você rasgou aquele retrato? Seu…

Abri a porta e saí correndo antes que ela terminasse a frase. Não esperei o elevador, mas desci as escadas de dois em dois degraus, ouvindo ao longe o som dos seus gritos.

Quando cheguei em casa, queimei os pedaços da fotografia.

Nunca mais a vi. Pelo que me contaram, Kevin tem sido um marido exemplar e os dois são muito felizes juntos, mas a única carta que recebi de Rosie (sete páginas em letra miúda) deixou claro que ela achava que o cálculo renal era uma explicação mais do que suficiente para o mau humor de Kevin e que a sua chegada e partida em perfeito sincronismo com a fotografia não passava de simples coincidência.

Ela fazia algumas ameaças impensadas contra minha vida e, em particular, contra certas partes do meu corpo, fazendo uso de palavras e frases que eu jamais suspeitara de que fizessem parte do vocabulário dela.

E eu suponho que jamais me beijará de novo, o que me traz, por uma razão que não sei explicar bem, um certo sentimento de frustração.

Projeto Apparere (Coletânea Lendas Urbanas) Prazo: 12 de Abril


Queremos convidar você e seus amigos a participarem de nossa Coletânea Lendas Urbanas (Tema sugerido por: Rubens Teles de Faria e Vagner Luiz dos Santos Pereira).

As inscrições, que já estão abertas a algum tempo, podem ser feitas até o dia 12 de Abril. Veja mais informações abaixo!

Para esta Coletânea buscamos textos que falem de Lendas Urbanas que envolvam situações e personagens que habitam nossa imaginação e criam um mundo sobrenatural de fantasias, mistério, suspense, terror, etc.

Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Cordel, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/394ImFC

Importante lembrar que sua participação é Gratuita.

Após recebermos os Textos, faremos uma seleção/avaliação dos melhores e publicaremos um livro com eles. Essa Coletânea ficará à venda na Loja Online da PerSe, com impressão sob demanda, para quem quiser adquiri-la.

Como dissemos sua participação não terá nenhum custo!

Você encontra todos os detalhes para sua inscrição nos links abaixo:

1) Quero enviar meu texto: https://bit.ly/394ImFC​

Venha nos aterrorizar com sua Lenda Urbana. Inscreva-se já!

Forte abraço,
Equipe Apparere
===========================================

Regulamento Coletânea Lendas Urbanas

Para esta Coletânea buscamos textos de que falem de Lendas Urbanas que envolvam situações e personagens que habitam nossa imaginação e criam um mundo sobrenatural de fantasias, mistério, suspense, terror, etc.

Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Cordel, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

OBJETIVO:

Estimular a produção literária brasileira, valorizar novos talentos e dar visibilidade aos Escritores, Poetas, Contistas, Cronistas e etc.

Considerando que a participação é Gratuita, objetivamos ter uma grande quantidade de inscrições de modo a podermos fazer uma seleção de obras com altíssima qualidade.

INSCRIÇÕES:

- As inscrições deverão ser feitas única e exclusivamente através do preenchimento do formulário, na página https://bit.ly/394ImFC

- Veja no Cronograma abaixo a data limite para as inscrições.

REGULAMENTO DE PARTICIPAÇÃO (QUEM E COMO PARTICIPAR):

- Poderão participar Escritores, Poetas, Contistas e Cronistas maiores de 18 anos de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil ou no exterior com documentação brasileira, e seus trabalhos deverão ser obrigatoriamente escritos em língua portuguesa (o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto).

- Os participantes farão seus cadastrados no formulário de inscrição.

- Autor deverá usar seu nome legítimo (verdadeiro) no cadastro, entretanto, se desejar, poderá utilizar seu nome artístico ou pseudônimo na publicação da Coletânea, para isso deverá colocá-lo junto ao texto enviado.

- Cada participante poderá inscrever uma única Obra por Coletânea, podendo participar de outras Coletâneas.

- A temática da Obras deverá estar em linha com o tema da Coletânea com o objetivo acima definido, sendo que a criatividade e imaginação do escritor darão o toque e estilo ao trabalho.

- Não há exigência de que a Obra (poesia, conto, crônica, etc.) seja inédita, podendo já ter sido publicada, exceto em outra Coletânea do Projeto Apparere.

- É de inteira responsabilidade do Autor a correção ortográfica/revisão do texto ou textos enviados para esta Coletânea, sendo este inclusive um dos critérios de seleção. Desta forma não será feita nova revisão do texto.

- As Obras (poesia, conto, crônica, etc.) deverão conter título, sendo que a não observância dessa exigência excluirá a Obra da avaliação.

- As obras inscritas serão analisadas e selecionadas mediante avaliação de profissionais nomeados pelo Projeto Apparere, cujas decisões serão soberanas e irrecorríveis.

- O envio do texto será feito única e exclusivamente através formulário na página https://bit.ly/394ImFC

- A obra deverá estar em arquivo Word(.doc ou .docx) fonte Times New Roman ou Arial, tamanho 12, com espaçamento simples e ter no máximo 5 (cinco) páginas padrão do Word (A4).

CUSTOS DE PARTICIPAÇÃO:

- A participação nesta Coletânea não ensejará em nenhum custo aos participantes, portanto será Gratuita.

- Também não há nenhuma obrigatoriedade de aquisição nem de exemplares e nem de serviços oferecidos pela Apparere e/ou pela PerSe.

DIVULGAÇÃO E LANÇAMENTO DA COLETÂNEA:

- O Lançamento da Coletânea será Online, com uma data para início das vendas dos livros.

- Antes do Lançamento será feita campanha de divulgação, contendo:

    . E-mail Marketing para a Base de clientes da Apparere e da PerSe.
    . Banners e nosso site.
    . Divulgação através de nossas Redes Sociais.
    . Assessoria de Imprensa.
    . Envio de Material de Divulgação aos Participantes para que esses divulguem em suas Redes Sociais e através de e-mail aos conhecidos.

DIREITOS AUTORAIS:

- Não haverá cessão de Direitos Autorais, ou seja, os trabalhos continuarão pertencendo a seus autores, entretanto os Escritores/Autores/Poetas autorizam a comercialização de sua obra através da Coletânea, abdicando de qualquer remuneração sobre sua obra.

- Os Escritores/Autores/Poetas participantes responderão legalmente e individualmente sobre plágio, publicação não autorizada, calúnia, difamação e não autoria, isentando a PerSe e o Projeto Apparere de qualquer responsabilidade sobre o conteúdo enviado para a Coletânea.

- É de total responsabilidade dos participantes a veracidade dos dados fornecidos à organização.

- Todos os participantes de antemão ficam cientes e dão permissão e autorização para a publicação e comercialização de sua Obra (poesia, conto, crônica, etc.), e a veiculação na mídia de seus nomes, imagens e textos, em sites, pela PerSe e pela Apparere, desde que dentro do contexto das Coletâneas do Projeto Apparere e para benefício da maior visibilidade da obra e seu alcance junto ao leitor.

SOBRE AS CARACTERÍSTICAS E AS VENDAS DOS LIVROS:

- A Coletânea será composta dos textos selecionados e de minibiografia dos participantes.

- Para a Capa da Coletânea faremos um concurso com designers que desejarem participar, e quem escolherá a capa da Coletânea serão os Autores que estiverem participando.

- Esta será impressa em Livro com as seguintes características: Brochura Formato 14x21; Miolo em Papel Polem 80g, impresso em uma cor; Capa Cartão 250g com orelhas impressa a 4 cores e laminação brilho/fosco.

- A Comercialização do livro impresso da Coletânea se dará através da Loja Online da Perse.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online posteriormente divulgado.

- A Comercialização da Coletânea também será feita no formato eBook (PDF e ePub) através da Loja OnLine da PerSe e também através da Plataforma de Terceiros parceiros da PerSe

- O livro impresso da Coletânea poderá ser colocado em comercialização nas Feiras e Bienais, em estande da própria PerSe, quando esta vier a participar.

- O livro terá registro no ISBN.

CRONOGRAMA GERAL DA COLETÂNEA:

- Final das inscrições: 12/04/2021

- Divulgação aos selecionados: 29/04/2021

- Data de Lançamento e Início das Vendas: 14/05/2021

Observações Gerais:

- Dúvidas relacionadas a esta Coletânea e seu regulamento poderão ser enviados para o e-mail: apparere@perse.com.br

- Todos os contatos entre o Projeto Apparere e os Participantes serão realizados através de e-mail. Portanto os participantes devem ficar atentos.

- Todas as dúvidas e casos omissos neste regulamento serão analisados por uma equipe da PerSe e do Projeto Apparere, e sua decisão será irrecorrível.

- O Projeto Apparere, reserva-se o direito de alterar qualquer item desta Coletânea, bem como interrompê-la, se necessário for, fazendo a comunicação expressa para os participantes.

- Não é permitida a participação nas Coletâneas de funcionários da PerSe e do Projeto Apparere.

- A participação nesta Coletânea implica na aceitação total e irrestrita de todos os itens deste regulamento.

- As obras não selecionadas para a Coletânea serão destruídas e apagadas das bases de dados do Projeto Apparere, para fins de segurança.