sexta-feira, 5 de maio de 2023

Coelho Neto (O Milagre)

Indo um homem à floresta lenhar, descobriu na broca de um tronco um ídolo grosseiro e logo, acendido em zelo devoto, tomou-o nos braços e regressou contente à vila.

Rapidamente espalhou-se pelo lugarejo a notícia do achado e não faltaram presságios felizes, atribuindo o aparecimento da imagem a intuitos de mercês com que Deus queria premiar as pessoas.

Na tarde do mesmo dia, que foi de alegre alvoroço, encheu-se a cabana do lenhador, onde o «santo», entre luzes e flores, sobre uma mesa forrada de linho alvo, avultava como uma tora apenas falquejada (desbastada). Choveram esmolas, multiplicaram-se promessas e, como eram indistintas as feições do ídolo, cada qual o apelidou conforme a sua devoção, e foi assim que o santo teve vários nomes, prevalecendo, porém, o de “Senhor Aparecido”.

A nova propalou-se ás povoações vizinhas. Começaram as romarias e, com elas — porque a cabana não podia comportar a turba de devotos — veio a ideia de levantar-se uma capela, onde a imagem tivesse agasalho digno e todos a pudessem contemplar à vontade, pedindo-lhe o que pretendessem.

Não faltaram materiais nem obreiros e, pouco a pouco, ao som de cânticos, foram subindo os muros da capela.

Contavam-se os enfermos por centenas, vindos de várias partes — cegos, febrentos, lázaros e paralíticos, todos pedindo a cura e fazendo promessas generosas. 

O santo, sempre entre flores e luzes, parecia indiferente aos rogos dos infelizes.

Uma manhã, porém, certa velha que chegara, entrevada, pôde deixar o estrame (esteira de palha) em que jazia e, por seu pé, sem auxilio, dirigiu-se, entoando louvores, à cabana do lenhador, prostrando-se ante o santo a proclamar e a agradecer o milagre.

Tanto bastou para que se divulgasse, com maravilhosos detalhes, a notícia da cura espantosa. Cresceu a fé entre os enfermos, debalde, porém, rezaram e prometiam, nunca mais houve quem saísse do seu grabato (catre), vendo, se era cego; ouvindo, se era surdo; caminhando, se era entrevado; livre da febre ou sem dores. 

Queixavam-se os miserandos, mas sempre havia quem lhes respondesse “que a razão estava em eles não terem fé” e com isso os desgraçados resignavam-se, sempre louvando o santo, cuja fama crescia.

Com a afluência dos devotos, o povoado desenvolvia-se, o seu comércio, que era mesquinho, tornou-se considerável, e à volta da capela, ergueram-se tendas de trabalho: o oleiro apolejando (amassando) o barro, o ferreiro malhando a bigorna, o carpinteiro acepilhando (aplainando) a tábua, o imaginário esculpindo cópias do “santo” que os devotos traziam ao pescoço, a rendeira com a sua almofada de crivo e, como sempre chegavam famílias, iam os pedreiros edificando e as oficinas todas laboravam.

Apesar de não se ter realizado outro milagre depois do desentrave da velha, a romaria não cessava e se alguém, por desânimo, mostrava-se descrente, logo lhe citavam o caso da paralítica, descreviam os seus passos, diziam como chegara à cabana, que fizera, e ainda mostravam os castiçais de prata que ela mandara ao santo com um quadro em que estava miudamente referido o milagre sublime.

E assim, os mesmos que regressavam aos lares sem melhoras, faziam o louvor do santo “que curara a velha de uma paralisia de longos anos”. Outra cura não fez a imagem do santo que da cabana, passou ao altar-mor da capela, mas só com haver andado uma entrevada — benefício para o qual, talvez, não concorrera — ganhou tão grande faina, que se alguém, nas terras de longe, aludia á sua bondade, logo em coro se murmurava, em tom maravilhado:

— “Não há santo mais milagroso!” E lá vinha a referência à paralítica.

Para milhares de desiludidos só havia aquele consolo, e esse bastava para manter a crença o prestigiar o santo. Como esse ídolo da floresta — a que se atribuiu milagre — quantos há de carne e osso que são potentados por terem tido a sorte de achar uma velha entrevada e de fé... que se levantou do estrame e proclamou a sua virtude.

Ídolos e homens... tudo está em criarem fama.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXI


A CARTA
(Lendo o Soneto A Carta Interrompida, de COLOMBINA - 1882-1963)

A carta interrompi. Ninguém resiste
que tanto amor acabe desprezado.
Meu mundo colorido ficou triste,
quando escrevi: está tudo acabado.

O trauma deste amor inda persiste,
— por que viver assim amargurado?
A minha mão se agita e ainda insiste
em terminar o show já começado...

Basta postar a carta já escrita,
tudo acabou, a vida é só desdita,
vou aprender viver no meu limite...

No envelope lacrado — quanto medo,
o correio há de levar o meu segredo,
mas o meu coração já não permite!
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AMOR SUPREMO

Meu coração recorda, emocionado,
o amor que norteou a minha vida,
e continua presente e bem guardado
na inspiração dos versos meus, querida.

Envolto nas lembranças do passado
preservo o que vivi, de fronte erguida.
Vou galopando pelo verde prado
onde a Esperança mora e faz guarida.

E enquanto o coração bater, sedento
vou prosseguir buscando o meu intento:
— continuar feliz por onde eu for.

Quero rever a Luz da madrugada
e despertar ao som da passarada
para viver, contrito, o nosso amor!
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BARRA DO MENDES

Barra do Mendes no Sertão Baiano,
és bela, culta, forte e hospitaleira,
povo trabalhador, feliz e humano
em busca da amizade verdadeira.

A vitória de um povo veterano
na construção da paz alvissareira
garante que o progresso, soberano,
já chegou na cidade brasileira.

E quando chega alegre, o viajante,
ela oferece abrigo ao visitante
e as belezas do nosso Chapadão.

Eu quero te saudar, Barra do Mendes,
pelo denodo, fé e luz que acendes
nas glórias imortais de Militão*!
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* Coronel Militão Rodrigues Coelho (1859 – 1919) obteve a emancipação de Barra do Mendes.
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CONSEQUÊNCIA

Brigamos sem motivo. Era Setembro,
o campo estava verde e havia flores.
O céu cheio de estrelas, eu me lembro,
e recordo também dos dissabores.

Bem alto ela me disse; "não sou membro
desta família que me trouxe dores.
Quero partir, não fico outro dezembro,
quero ter, pelo mundo, outros amores".

E partiu... Nada fiz, fiquei calado,
o silêncio, por certo, dá um jeito
e não carece de nenhum cuidado...

O tempo vai passando e quando a vejo,
ela disfarça a dor que vai no peito,
e eu finjo que não sinto mais desejo.
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ETERNA BUSCA

Nunca quis navegar por outros mares
que a vida, por acaso, me levou,
nem quis rezar também noutros altares,
pois tua imagem nunca me deixou.

Mas parti procurando outros pilares
para atracar do barco, o que sobrou,
porque no temporal dos meus azares
só saudade, no mundo, me restou.

E agora, já no fim desta procura,
confesso que não tive essa ventura
de esquecer, para sempre, a minha dor.

E tudo que busquei nesta jornada
se resumiu, talvez, num quase nada:
— felicidade, eu sei, só com amor.

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça V

Que cabeça! Que cabeça! Nunca me vi tão farto. Tudo andava untado. Se os piolhos tivessem ocupação, eu não tomava outra. E até mesmo para trazer a consciência desembaraçada. Ali não há que arranhar, é vender medida por medida. Compro uma canada. Vendo uma canada. E ainda às vezes se põem linhas de casa, pois todos sabem que nas medidas pequenas sempre há quebras. E então, que homem tão escrupuloso com que eu dei! Eu conto, para pintar e conhecerem a sua boa alma, um caso sucedido na sua loja.

Tinha um caixeirinho que era um ladronete (ladrão). E que fez para furtar ao povo? Na balança oposta à dos pesos, pos-lhe, pela banda de baixo, uma bolinha de cera no fundo e, como da outra banda ia o gênero, já se sabe que, quanto a bola pesava, tanto ele furtava em cada peso que vendia. Vai o tendeirinho da minha alma dar com o furto. Ora que lhe parecem que ele faria? Pois eu lhes digo: salta-me no caixeiro e fez-lhe confessar que tempo havia que ele fazia aquele furto. O mesmo confessa que havia cinco meses. Diz o patrão: — Pois não importa. Eu quero pagar o furto que tu fizeste ao público. Passa-me já essa bola de cera para a banda dos pesos e outro tanto tempo quero dar o de César a César. E, no mesmo instante, fez mudar a bola. Mas também mudou os pesos e continuou a pesar como dantes.

Numa cabeça destas é que é estar! Então que caridade de homem! Ensinava o público a ser econômico, tirava nos molhos de carqueja ramos para fazer mais e dizia: — Quanto mais grandes são, mais gastam. Os queijos, para serem mais frescos, punha-os em parte onde houvesse água para receberem aquela humidade; e ainda que entravam mais no peso eram menos salgados. Manteiga sempre a pesou em papel grosso e sujo. Tinha uma receita para disfarçar o vinagre que ninguém diria senão que era água. Medida de azeite era como alcatruz, sempre tinha buraco no fundo. Medida de pau, toda tinha dois fundos, o natural e outro pela banda de dentro. Cebolas, era um pasmo! Ninguém fazia molhos com mais elegância. Tinha a habilidade de transformar o sebo em manteiga. Também se aquele não está no céu, mal por nós. Tinha a pachorra, só para fazer bem, de andar procurando ovos que estivessem chocos. Comprava-os a trinta réis a dúzia e vendia cada um por um vintém, quando muito por vinte e cinco, um ovo e um pinto.

Ouviu dizer uma vez a um médico que a aguardente secava e mirrava a gente por ser um espírito muito forte. Olhe lá, não a tornasse ele a vender sem lhe botar primeiro uma terça parte de água! Está na neve: Sabem o que ele fazia ao arroz para lhe tirar a pedra e não entrar no peso? Lavava-o, esfregava-o e botava-lhe areia e desta forma unia o asseio ao benefício. Nos feijões, seguia aquele ditado: Uma verde com uma madura. Comprava, por exemplo, os novos a oito tostões, os velhos a cruzado, misturava uns com os outros e vendia-os pelo mesmo que lhe tinham custado, isto é, a oito tostões. Não queria ganhar nada com o próximo e dava a razão, dizendo: — É alimento que só comem pobres.

Também dava crédito a alguns oficiais mecânicos. Mas não lhes vendia os gêneros por mais que os vendia aos outros. Só apenas no rebate das férias é que levava sessenta por cento. Sim, senhor, é nesta cabeça que eu passei uma vida regalada. Chupava-lhe o sangue e ele nada sentia. Suponho que era por ser alheio. Não tinha tempo nem para se coçar. Mas que desgraça! Uma noite, pela volta das três horas, deu-lhe um estupor, não disse nem guarde Deus a vossa mercê. Eu apenas o senti frio, quis-me safar. Mas neste tempo chega um boticário vizinho que chamaram com muita pressa e pos-lhe o ouvido ao pé da boca para ver se o sentia respirar. Eu, sem perder tempo, me passei para a cabeça do dito, na qual ponho a minha Carapuça VI.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 4

 

A. A. de Assis (Por que “Vós”?)

“Por que vós, tão gravata-e-colarinho? O você comunica muito mais”
. Quem disse isso foi Carlos Drummond de Andrade, o megapoeta.

Os portugueses são muito bons em pronomes e lidam sem dificuldade com essa coisa de “tu” e “vós”, mas na maior parte do Brasil o tratamento habitual é “você”. Tanto que, nas regiões onde o “tu” é mais usado como indicativo de intimidade, é comum o falante escorregar em discordâncias como “tu gosta”, “tu viu”. Nesse caso, por que não eliminar de vez o “tu” e o “vós”? A gente ficaria com o “você”, que é menos complicado e “comunica muito mais”.

Veja como seria fácil conjugar verbos: Eu estou, você está, ele está, nós estamos, vocês estão, eles estão.... Se for preciso usar tratamento cerimonioso, bastará substituir “você” por “o senhor”, “a senhora”. E se, por exigência de algum ultrarrigoroso protocolo, não for possível simplificar as coisas, o “você” se transformará em “vossa senhoria”, “vossa excelência”, mas sempre com o verbo na terceira pessoa.

Os políticos, que por ofício precisam se aproximar do povo, poderiam ser os primeiros a arquivar o tal de “vós”, até pelo perigo de misturar “vós” com “vossa excelência” e formar aquela salada: “Saúdo vossa excelência e vossa luzidia comitiva nesta honrosa visita que fazeis ao nosso próspero município...” Ora, “vossa excelência” concorda com “seu/sua” e pede o verbo na terceira pessoa do singular; “vós” concorda com “vosso/vossa” e pede o verbo na segunda do plural. “Vossa excelência” é apenas a roupa de gala do “você” (forma reduzida do antigo “vossa mercê”).

Dessa trapalhada no uso das expressões de tratamento não escapam nem mesmo pessoas mais cultas, igualmente sujeitas a ocasionais cochilos na concordância. 

“Tu” e “vós” são pronomes realmente complexos para uma população habituada a conversar usando o familiaríssimo “você”. Seria, portanto, sábio e prático aposentar logo os dois tropeços que só servem para aumentar os desarranjos gramaticais. Diríamos simplesmente assim: “Eu quero, você quer, ele quer, nós queremos, vocês querem, eles querem”. E nenhum estudante precisaria mais dizer o que de um deles certa vez ouvi: que “o verbo se fez problema e habitou entre nós”...

Ninguém, na fala real, diz “vós gostais”; dizemos “vocês gostam”. Até a Bíblia, para comunicar mais, tem aparecido hoje em versões populares, onde o “vós” cede lugar ao “você”: “Amem-se uns aos outros como eu amo vocês”.

Esquecer o “tu” e o “vós” seria um bom passo em benefício da descomplicação da língua. Acabaria a vexação de dizer “tu vai”, “vossa excelência quereis...” E o discurso ficaria mais leve: “Saúdo o senhor e sua luzidia comitiva nesta honrosa visita que fazem ao nosso próspero município”. 

Penso até que a comitiva ficaria mais luzidia e bem mais próspero o município... 
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 02-11 -2022)

Fonte:
Texto obtido no facebook do autor.

Jaqueline Machado (Poemas Avulsos)


DIAS NUBLADOS 

Às vezes, o céu da nossa vida fica nublado. 
A névoa toma conta 
de todas as paisagens. 
Da paisagem 
das coisas de dentro 
e das coisas de fora. 
A beleza do mundo 
fica destorcida 
e a gente chora... 
E é preciso chorar 
para desabafar e limpar 
o que parece 
não ter cura. 
Precisamos 
nos permitir a isso, 
pois nem tudo 
é nossa culpa. 
Às vezes viver dói, 
arde, queima. 
Acontece... 
Em dias assim, 
é preciso ter paciência. 
Deixar os olhos chover... 
Mais cedo ou mais tarde 
o céu torna a ficar azul. 
O sol volta a brilhar! 
E a gente volta a sorrir. 
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TUAS CAMADAS 

Durante teu sono, 
sem aviso, 
visitei o teu coração. 
E nele, avistei temporais. 
Benzi teus ventos 
e a tua tempestade cessou. 

Depois, visitei tua mente, 
e enfrentei teus temores. 
Recitei palavras de amor. 
E na minha canção 
te fiz repousar. 

Mais tarde, passeei 
por tuas entranhas. 
Nelas, me deparei 
com os teus abismos, 
fontes e montanhas. 
E assim, 
desvendei teus véus. 
Me revesti de tuas luzes 
E nos teus breus 
me perdi. 

Busquei sair de volta 
pela porta de saída 
do teu coração. 
Repousei em tua superfície 
E as tuas cicatrizes, beijei 
com emoção. 

Depois 
de todos os beijos, 
acordaste de repente. 
Para mim 
sorriste lindamente. 
Banhou-me em teu amor 
de paraíso 
até me fazer adormecer em teus braços. 
Ao despertar, constatei: 
Amo-te de forma plena. 
E como adorei 
repousar em cada uma 
das camadas 
do teu ser…

Fonte:
Versos enviados pela autora.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça IV

Não foi das melhores cabeças em que caí. Tive meus incômodos. O tal barbeirinho já endireitava o olho à coifa e tinha o maior cuidado na cabeça, quando, na verdade, era um traste que lhe não devia dar nenhum. Ele, ora em pente de bichos, ora em azeite para sacar as lêndeas, ora em pós e banha de cheiro, gastava quantos vinténs tinha. Chamavam-lhe por alcunha o Amola do que ele se picava tanto que esteve cinco vezes preso por bulhas que teve por amor deste ditério (troça). Mas ultimamente, quando lhe chamavam o Amola, já amolava, fazia que não entendia. Era um falador eterno. Sabia quanto se passava duzentos passos em redor da loja, de forma que só pelas novidades tinha mais gente na loja que o resto dos barbeiros do bairro. Não posso deixar de contar um ópio que lhe sucedeu com um freguês dos avulsos e que achei lindo, principalmente por se julgar ele tão esperto.

Entra-lhe um dia um homem pela porta dentro, que teria os seus quarenta anos, com umas barbas de quarenta dias. Contou-lhe quarenta histórias. Disse-lhe que as suas barbas sempre as pagava a quarenta réis. Que a causa de as ter grandes era por ter prometido uma quarentena não as fazer mas que, quarenta dias a fio, as havia de barbear. Depois de o ter aquarentado por todas as formas, vira-se para ele e diz-lhe muito admirado: — Vossemecê bota as barbas que rapa no pano? — Pois onde as hei-de botar?, lhe respondeu o mestre. — Dessa me rio eu, ainda tinha mais esta para ver! Vossemecê certamente está doido? Esses cabelos têm uma grande serventia e se vossemecê quer guardar, eu lhes pago depois de enxutos, e bem secos, à moeda de ouro o celamim (1).

O barbeiro, que o único peso que tinha na cabeça era eu e o cabelo, ficou tão admirado como contente. Protestou pela conserva e o freguês pelo ajuste. Mas nestes dares e tomares acabou-se a barba e safou-se, com muitas cortesias, sem pagar nada, no que o mestre não reparou, na esperança do futuro ganho. Três meses levou o bom do homem a ajuntar cabelo e a pô-lo ao sol. E ainda que a barba fosse de graça, sempre a escanhoava duas vezes. Já tinha quase meio alqueire, apareceu o maroto do freguês. Muita festa para a festa. Então ajuntou? — Sim, senhor, não me ficou barba em claro, tenho bastante quantidade. E eu muita precisão. Vamos a isto. Logo. Primeiro vamos à barba.

Aparelha-se a cara, bota-se-lhe a barba abaixo e, depois de feita, vai o papalvo buscar meio alqueire de barbas muito limpas e enxutas. Ainda agora o tratante se entra a esconjurar: Está tudo perdido! — Pois que tem? replica o mestre, — eu fiz tudo o que vossemecê me disse. — Não senhor, faltou o principal. — Pois que é? — Era preciso que vossemecê tivesse todos estes cabelos apartados; os loiros a uma banda, os negros à outra, os ruivos, os brancos, etc. O mestre arde, vira a buscar o chuço [2] e o magarefe safa-se com duas barbas de graça e duas horas de mangação que encaixou ao barbeiro, o qual entrou num frenesi que o julguei doido. E ficou tão zangado com homem de barbas grandes, que barba que passasse de uma semana era como confissão de um ano: jamais a fazia ainda que lhe dessem um tostão. De forma que a alcunha que tinha do Amola mudaram-lha e lhe chamavam o Barba-curta. Mas sempre sou obrigado a dizer que era um dos homens mais regulares que tenho conhecido na minha vida.

Ele erguia-se pela manhã, bebia um copo de aguardente e comia o seu dente de alho. Assoava-se, lavava o rosto, tocava o seu bocado de viola. Se aparecia algum amigo, punha a viola aos outros. Era um bocadinho de língua que fazia molho de tudo. Depois afiava as suas navalhas e, se era dia de fregueses, dava-lhe uma volta, e sempre pedia a algum amigo que lhe ficasse na loja, para demorar alguém que entrasse, no caso de ele ir perto. O seu comer era sopa, vaca e arroz [3] e não se fartava de dizer aos amigos que era a sua diária. De tarde, quando não tinha que fazer, lia Carlos Magno* ou dizia mal da vizinhança. De forma que estava já tão senhor destes autores que citava as folhas e conhecia os vizinhos pelos seus nomes, ocupações e costumes. Umas inquiriçõezinhas tiradas por ele, não havia nada que lhe chegasse. Era um dos melhores genealogistas e tinha feito a árvore de geração de Judas. E dava razão por que se não comiam as maçãs de Arcipreste e não deixou de lucrar com isso.

Defronte dele moravam umas raparigas de quem ele compôs a vida. E, antes de a dar ao prelo, deram-lhe uma navalhada na cara que não deixava de lhe dar sua graça. Mas deixou de compor. Ultimamente descompunha qualquer pessoa por dá cá aquela palha. Numa dessas descomposturas que teve com um tendeiro, agarrou-se-lhe este aos cabelos com tanta ânsia que lhe trouxe uma mão-cheia deles, nos quais eu vim pegado por casualidade. E foi felicidade e esperteza minha passar-lhe para a mão antes que os botasse fora. A poucos passos estava na cabeça onde lhe encaixei a Carapuça V.
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Notas
(1) O celamim ou selamim é uma antiga unidade de medida de capacidade para secos, usada em Portugal e no Brasil, correspondendo à décima sexta parte de um alqueire. Hoje em dia, o celamim é usado no Brasil para medidas agrárias. (wikipedia)
(2) Chuço: Zagaia, na língua piolha. [N. do A.]
(3) Almoçava a sopa, jantava a vaca e ceava o arroz. [N. do A.]

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

George Abrão (Recarregando as baterias)

Nossos veículos, nossos aparelhos eletrônicos, nossos telefones celulares periodicamente necessitam de recargas em suas baterias para o seu perfeito funcionamento.

Nós, seres humanos, cujos corpos são movidos pela energia produzida por nossos metabolismos, sendo que cada batida dos nossos corações produz corrente de eletricidade, que varia a sua potência de um para outro indivíduo, dependendo da constituição orgânica das células e da condutibilidade de cada corpo, somos também máquinas elétricas. Sendo assim, é indispensável que cada ser humano mantenha o equilíbrio elétrico do seu corpo, sendo que ele depende da saúde física, mental e emocional de cada indivíduo.

Então, quando muitas vezes nos sentimos indispostos, sem muito ânimo e não achando muita graça no nosso habitat, é sinal evidente de que a nossa bateria - nosso coração - precisa ser recarregada para voltar às suas funções normais. E para isso se faz necessário se faz que diversifiquemos as nossas atividades; que mudemos de ambiente fazendo uma viagem ou mesmo um passeio a lugares agradáveis ao cinema, ao teatro ou até mesmo a um shopping e, principalmente, que reencontremos os nossos amigos em uma reunião, onde o bate-papo corra descontraído e onde possamos rir e nos divertir de forma sadia e reconfortante.

Ontem tive uma experiência que comprova essa teoria: como eu sofro de moléstias consideradas incuráveis pela medicina (não por Deus), apesar das minhas atividades diárias, sentia necessidade de algo mais, de mudar um pouco a minha rotina. Então recebi um convite de dois grandes e queridos amigos para que fosse jantar com eles e com mais alguns outros também bons amigos. Relutei um pouco, pela minha dificuldade de locomoção, mas acabei aceitando e fui com uma querida amiga.

Lá chegando, percebi que já ocorria certa mudança em mim pelo carinho com o qual fui recebido, pela atenção que me dispensaram, pelo excelente bate-papo muito alegre e descontraído, pelo cardápio excelente que nos foi oferecido, mas principalmente pela amizade e pelo companheirismo que eram a tônica da reunião.

A noite, para mim, tornou-se muito curta, pois sentia, virtualmente, a minha bateria recarregar-se aos poucos, dando-me mais ânimo para prosseguir a minha jornada.

Uma coisa tão simples? Um simples jantar? Não! Um momento único, o qual por mais que tentemos jamais será repetido, mesmo que busquemos o mesmo espaço, com a mesma decoração, com as mesmas pessoas, com o mesmo cardápio, enfim, mesmo que procuremos fazer tudo igual!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLI

A estrela tem seu momento
de mostrar todo o fulgor,
pode assim o firmamento
se revestir de esplendor.
= = = = = = = = = 

A água pura e cristalina
abrindo valos nos montes,
talvez a grande obra prima
se espalhando desde as fontes.
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Água para o chimarrão
não precisa ser fervente,
tendo a cuia e tudo à mão
basta que ela seja quente.
= = = = = = = = = 

A humanidade se afasta
do seu rumo à paz geral.
Só criar as leis não basta,
mas cumpri-las é vital.
= = = = = = = = = 

A neve cobre a paisagem
fazendo descer seu manto,
mesmo sendo maquilagem
veste-a de fulgor e encanto.
= = = = = = = = =

Ante o drama do tropeço
não podemos fracassar,
se não for bom o começo
é a vez de recomeçar...
= = = = = = = = = 

Antes de cruzar os braços
vê o que resta pra alcançar,
talvez juntar os pedaços
dos que estão a balançar.
= = = = = = = = = 

Aos habitantes da terra
clama o céu paternalmente,
que deixem de lado a guerra
e vivam fraternalmente.
= = = = = = = = = 

Da inveja nasce o ciúme
e da vingança a traição,
o amor que os seres reúne
morre sem definição.
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Em nome do crescimento
hoje, perdeu-se a noção,
de haver desenvolvimento
junto com preservação.
= = = = = = = = = 

Existem alguns amigos
que não são muito leais,
quando surgem os perigos
somem pelas laterais.
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Jamais aja sem pensar,
pense sempre antes de agir
e depois de começar
não pare sem concluir.
= = = = = = = = = 

Muita gente pede esmola
sem entrar no educandário,
melhor se tornasse a escola
a luz para o itinerário.
= = = = = = = = = 

Muitas vezes já parei
chorando na solidão,
noutras também já chorei
parado na imensidão.
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Nenhum casal seja omisso,
nem se jogue pelo abismo,
pois antes do compromisso
deve haver companheirismo.
= = = = = = = = = 

No buquê da natureza
admiramos tantas flores,
umas com rara beleza,
outras de raros olores.
= = = = = = = = = 

No mundo nunca devemos
temer quaisquer desafios,
pois quanto mais os tememos,
mais nos tornamos vazios.
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Num sorriso imaculado
sem respingos de maldade,
faz um semblante calado
se encher de felicidade.
= = = = = = = = = 

O mundo com sutileza
nos mostra tudo o que tem,
cabe a nós, sem avareza,
escolher o que convém.
= = = = = = = = = 

Os propósitos divinos
são de preservar a vida,
mormente a dos pequeninos
muitas vezes esquecida.
= = = = = = = = = 

Quem seca o pranto do irmão
não tem tempo pra chorar,
nunca está na contramão
quem a paz deixa aflorar.
= = = = = = = = = 

Se quiseres alcançar
o sol, distante no além,
saiba que deves passar
pelas estrelas também.
= = = = = = = = = 

Toda estrela cintilante
teve um caminho a trilhar.
Se a sua não for brilhante
deixe a dos outros brilhar,
= = = = = = = = = 

Tristeza e melancolia
não podem servir de alento,
mesmo pequena, a alegria,
é maior que o sofrimento.
= = = = = = = = = 

Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Nilto Maciel (Circuito)

“Entramos nos quarenta anos com a inexprimível ideia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa.”
Julio Cortázar, Casa tomada.

Cansados de vagar pelas ruas, famintos, Daniel e Irene pararam diante de um bar. Se não encontrassem comida, ao menos descansariam. Outra pousada talvez não houvesse por perto.

O garçom ofereceu-lhes vinho, cerveja, vodca, uísque. Aceitaram vinho com salame. Ela abaixou a cabeça, quase até a tábua da mesa. Ele olhava sutilmente para os outros bebedores. Um deles, exaltado, falava mal do governo. Outro cochilava diante do copo. Havia bigodes volumosos, barbas ralas, dentes luzidios, olhos faiscantes.

Daniel pediu mais vinho e salame. Irene queria chorar, sair dali, deitar-se, esquecer tudo. Tivesse calma. Precisavam ordenar as ideias. O vinho talvez os ajudasse. Ao redor dele o governo tombava. Bigodes se enchiam de dentes; barbas, de olhos. E a casa? Como estaria a casa deles àquela hora? Já teriam tomado conta da biblioteca, devorado os livros franceses? Ah! como guardava belas recordações de Balzac, Flaubert, Victor Hugo.

Por um instante Irene esqueceu de si mesma. Tivesse o irmão cuidado com aquele vinho. Não costumava beber e poderia se embriagar. E, então, como teriam boas ideias e sairiam dali? Ele se exaltou. Não precisava de ideias. A única ideia daquela noite deveria levá-los de volta à sua casa. Sim, a casa lhes pertencia. Não a deixariam para primos distantes e, muito menos, para intrusos, invasores estranhos. Ela se pôs a chorar baixinho. Nunca mais voltaria àquela casa. Como voltar, se estranhos a haviam tomado?

Um dos bigodes do recinto aproximou-se dos irmãos. Pediu licença para ajudá-los. Pôs seu copo junto ao de Daniel e puxou uma cadeira. Ouvira toda a conversa do casal. “Somos irmãos”. Os dentes do intruso brilharam, assim também os olhos. Se não podiam voltar para casa também não podiam passar a noite nos bares ou nas ruas. Daniel pediu mais vinho. Irene mirava o brilho dos dentes do outro.

Morava sozinho num casarão. Os pais mortos há muito. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas vidas. Casamento não quis nunca. Preferia a noite, os companheiros de bar. Mulheres surgiam e sumiam, feito fantasmas, sombras, inacessíveis. Em suma: muita solidão. Nem sequer um gato para miar-lhe o silêncio, um cão para ladrar-lhe a escuridão. Se ao menos ainda gostasse de livros! Atemorizava-se diante da amplitude de Balzac. Aborrecia-se com o infinito amargor dos personagens de Flaubert. Talvez devesse colecionar selos e revê-los aqui e ali. E, se fosse mulher, poderia tricotar e desfiar coletes, echarpes, cachenês.

O homem ora agarrava o braço de Daniel, ora apalpava o ombro de Irene. Os irmãos se entreolhavam. Ela mostrava uns olhos de medo e espanto. Ele simulava uns lábios de quietude e impassibilidade. “Precisamos ir embora, caminhar”. Sim e não. Pois como andar pelas ruas àquela hora? Já fechavam as portas do bar. Nenhum boêmio, nenhum bêbado mais. “Vamos à minha casa. Dormiremos e, quando for dia, tomaremos nossos rumos”. Irene amparou-se no irmão. Aquele sujeito talvez estivesse embriagado. “Iremos de carro”. Pior ainda. Não conseguiria dirigir. “Tenho motorista. Se não gostarem dele, chamarei o chauffer”.

O automóvel planava. As esquinas se sucediam. Vultos sonolentos andavam pelas calçadas. O condutor parecia um boneco. O dono do carro nada mais falava. Daniel olhava para um lado; Irene para outro.

Súbito o automóvel parou. E os irmãos, pasmados, se viram diante da casa que lhes fora tomada.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça III

Também não passei má vida e jamais passei pelo receio do pente de bichos, que foi traste que nunca lhe foi à cabeça. Mas vi-me ao princípio num perigo iminente. O pai da tal minha senhora contratava em pedras, e esmorecia pela filha, de forma que em ela lhe doendo um dedo, doía ao pobre homem o corpo todo. 

A rapariga entrou a queixar-se, uma vez dores de cabeça, outra vez do corpo moído, depois espinhela caída, constipação etc. Entraram a dizer que eram lombrigas, mas passados alguns tempos que a moléstia eram calos, e com efeito eram, que os pregou ao pai de maço e mona. Assentaram os peritos que eram necessários banhos. A menina, que estava com apetite na receita, quis logo ao outro dia tomá-los. O pai opôs-se, dizendo que era preciso preparar o corpo. Veio o mezinheiro e disse que o preparo do corpo para tomar os banhos era despir a camisa. A menina conveio nisso e, no outro dia, apresentou-se no mar. 

Depois de mil bichancros (gestos ridículos) e coisas ridículas do costume, como por exemplo: Está muito fria! Ai, que me mordeu um caranguejo! Meti uma ostra num pé! Não posso tomar o fôlego! Ai ...! Ai...! quem me acode! Perdi o fundo! etc., e outras coisas deste mesmo calibre, apresenta-me com a cabeça debaixo da água. 

Agora o verás: nunca me vi tão quente, apesar da água estar fria. O que me valeu foi uma coifa que a tal senhora levava, quando não, alguma barriga de linguado me esperava. Quando me vi fora da água não o podia crer. Mas, passado este primeiro susto, reconheci em mim mais agilidade, desembaraço de cabeça, apetite de chuchar e vim no conhecimento que muita gente melhora tomando os outros o remédio.

Enfim, botei o medo para trás das costas e continuei nos banhos e cheguei a estar tão gordo, que de gordo estava feio. Meus companheiros e amigos me desconheciam. Mas isto durou pouco tempo porque o pai entrou-se-lhe a meter na cabeça que os banhos da filha lhe haviam dar nele, proibindo-lhes, sendo o prelúdio desta proibição meia dúzia de bofetões bem puxados que a tal senhora recebeu com desgosto, apesar do pai lhes dar com a melhor vontade. Mas isto a mim não me importa, nem tem nada com a minha história.

Assim fui vivendo até que um dia meteu-lhe o diabo na cabeça o lavá-la com aguardente. Bagatela. Julguei que dava a casca. Fiquei tão atordoado que, quando tornei a mim, não sabia onde estava. Tremiam-me as pernas, andava-me a cabeça à roda, amargava-me a boca, não fazia senão espreguiçar-me e eu cuidei que tinha uma maligna às costas. Mas não foi nada. Melhorei e melhorei celebremente por uma casualidade. A moléstia, que me tinha ficado desta bebedeira, eram afrontamentos e uma espécie como de asma. Faltava-me o ar de forma que, estando na cama, julgava morrer de aflição. Mas pouco durou isto.

Um sujeito que tinha vindo de viajar agradou-se da menina. E, como o pai lhe fechava a janela logo à noite, ela tomou a mania de a abrir pela meia-noite e punha-se a falar até às duas e três horas com o tal suplicante. Isto foi o que me deu vida a mim, e a ela. Aquele fresco que tomava, inteiramente me restabeleceu. A fala, já se sabe, que era para bom fim. Ajustou-se o casamento. Concluiu-se e a noite do noivado jamais me esquecerá. Tive um trabalho incrível, em que lhes havia de dar a essas duas criaturinhas! Começa o marido, com o dedinho, a catar a cabeça da mulher. Eu que percebo isto, e o perigo em que estava, passo para a cabeça do marido. Passado um instante, larga o marido a catadela e salta a mulher a catá-lo. Torno para a cabeça da mulher e assim passaram toda a noite e eu aos saltos de cabeça em cabeça. Pela madrugada descansei alguma coisa, mas protestando de me safar apenas pudesse, o que concluí no dia imediato, deixando-me ficar na cabeça do marido que, indo fazer a barba, me passei para a cabeça do barbeiro e aí fiz a minha Carapuça IV.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Daniel Maurício (Poética) 51

 

Rita Mourão (Descompasso)

Outono. Gosto dessas noites cheias de um calor definido, misturado com o odor suave das folhas secas. As árvores estão se despindo das cores embaçadas para darem lugar à renovação.

Eu também estou me despindo da antiga roupagem verde musgo sem que haja promessa de renascimento. Minhas vestes de hoje são de um lilás conformado que procura se acomodar às mutações. Às vezes tenho algumas recaídas, no entanto, o tempo implacável se encarrega de reajustar a minha postura. Eu e o hoje nem sempre estamos afinados. Tudo se passou muito rápido. Rápido demais para quem chegou aos sessenta anos sem entender as metamorfoses da idade. Tenho pensado muito sobre isso e sinto uma dor aguda que atravessa minhas entranhas e se instala nas janelas dos meus olhos. Por isso meu olhar é triste, uma busca constante do ontem. Guardo lembranças e, com elas, um vestido vermelho que vestiu meus 18 anos para uma foto. Sempre gostei de vermelho, mas este vestido é especial. Fala-me de um tempo em que as pessoas olhavam-me com interesse e até certa inveja. Tempo de amor, sonhos, semeaduras. Guardo-o com cuidado, gosto de acariciá-lo. Ele é bonito e exala um perfume cansado. Cheiro de outro corpo, esguio e estreitinho. Agora as roupas não me caem bem. Um pouco mais gorda, tudo fica meio esquisito em contato com a minha nova imagem. Mesmo assim, tento valorizar o que sou, num esforço supremo para resgatar o que fui diante dos compromissos que me cercam.

Hoje vamos a um jantar. Eu e o meu marido. Abro o guarda-roupa e procuro algo que possa me fazer mais jovem. Opto por um vestido justo, tentando forçar uma silhueta esbelta. Olho-me no espelho e me acho meio ridícula. Meu marido também não aprova. Com delicadeza, sugere-me um vestido mais solto. Ainda assim insisto. Coloco um colar de pérolas, calço uma sandália de saltos bem altos, prendo o cabelo em forma de coque e dou um colorido no rosto. Quero imitar a outra, a da foto. Enfrento o espelho. Tudo inútil. O vestido não é vermelho, o corpo e o rosto já não têm 18 anos. A pele aveludada há muito se manchou e se agregou ao peso dos anos.

Na sala meu marido espera. Elegante, paciente, generoso. Troco de vestido. Não sinto o efeito desejado. Não são os vestidos, penso. São as sobras que se avultam em meu corpo, um insulto grave para uma pessoa vaidosa.

Desço os degraus dos anos e bebo o acre sabor do tempo presente.

O silêncio que transcorre é desesperador. Sinto passar por mim os finais de um outono sem acenos de outras primaveras. Com um sorriso acusador nos meus lábios, e num átimo de desespero arranco o vestido, descalço as sandálias e desfaço o coque. Volto ao quarto abro o guarda-roupa, escolho um terninho azul com gola de renda pura. Calço uns sapatos fechados e
prendo os meus cabelos com um prendedor antigo. Mais uma vez o espelho me denuncia e eu aceito.

Esta é a que restou da outra, digo a mim mesma, numa resignação assumida.

E o tempo e a realidade se cruzam diante da minha fragilidade. Mesmo que meu desejo seja evidente eu jamais conseguirei atar as duas pontas da vida. O fim está fragilizado demais para ser colado ao inicio.

Saio do quarto em direção à sala. Para trás, como se fosse um outro retrato, vou deixando a velha bagagem de um trem, que já partira.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Charles Baudelaire (Poesias Avulsas) 2

 A MUSA ENFERMA

Ó minha Musa, então! Que tens tu, meu amor?
Que descorada estás! No teu olhar sombrio
Passam fulgurações de loucura e terror;
Percorre-te a epiderme em fogo um suor frio.

Esverdeado gnomo, ou duende tentador,
Em teu corpo infiltrou, acaso, um amavio?
Foi algum sonho mau, visão cheia de horror,
Que assim te magoou o teu olhar macio?

Eu quisera que tu, saudável e contente,
Só nobres ideais abrigasses na mente,
E que o sangue cristão, ritmado, te pulsara

Como do silabário antigo os sons variados,
Onde reinam, a par, os deuses decantados:
Febo — pai das canções, e Pan —— senhor da seara!
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A MUSA VENAL

Musa do meu amor, ó principesca amante,
Quando o inverno chegar, com seus ventos irados,
Pelos longos serões, de frio tiritante,
Com que hás de acalentar os pezitos gelados?

Tencionas aquecer o colo deslumbrante
Com os raios de luz pelos vidros filtrados?
Tendo a casa vazia e a bolsa agonizante,
O ouro vais roubar aos céus iluminados?

Precisas, para obter o triste pão diário,
Fazer de sacristão e de turibulário,
Entoar um Te-Deum, sem crença nem fervor,

Ou, como um saltimbanco esfomeado, mostrar
As tuas perfeições, através d’um olhar
Onde ocultas, a rir, o natural pudor!
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CORRESPONDÊNCIAS

A Natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se.

Há perfumes sutis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
— E outros, de corrução, ricos e triunfais,

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d’um clarim.
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ELEVAÇÃO

Por cima dos pauís, das montanhas agrestes,
Dos rudes alcantis, das nuvens e do mar,
Muito acima do sol, muito acima do ar,
Para além do confim dos paramos celestes,

Paira o espírito meu com toda a agilidade,
Como um bom nadador que na água sente gozo,
As penas a agitar, gazil*, voluptuoso,
Através das regiões da etérea imensidade.

Eleva o voo teu longe das montureiras**,
Vai-te purificar no éter superior,
E bebe, como um puro e sagrado licor,
A alvinitente luz das límpidas clareiras!

Neste bisonho val de mágoas horrorosas,
Em que o fastio e a dor perseguem o mortal,
Feliz de quem puder, numa ascensão ideal,
Atingir as mansões ridentes, luminosas!

De quem, pela manhã, andorinha veloz,
Aos domínios do céu o pensamento erguer,
— Que paire sobre a vida, e saiba compreender
A linguagem da flor e das coisas sem voz!
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* Gazil = elegante, airoso
** Montureiras = esterqueiras, estrumeiras.
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O ALBATROZ

Às vezes, no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num voo triunfal, numa carreira audaz.

Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!

Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo grotesco verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.

O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Charles Baudelaire, Flores do Mal. Publicado em 1857.
Traduzido por Delfim Guimarães (1924). Atualização do português e notas por J. Feldman.