sábado, 26 de outubro de 2024

José Feldman (Os caçadores das compras perdidas)

Era uma manhã ensolarada quando Epitáfio de Carvalho Troncoso, um homem de meia-idade, decidiu que era hora de fazer compras no supermercado. Sua esposa, Dona Etelvina, uma mulher de coração grande e paciência infinita, concordou em acompanhá-lo. Afinal, a última vez que Epitáfio foi ao mercado sozinho, ele trouxe para casa uma caixa de chá de hibisco, um item que ninguém lembrava de ter pedido.

Assim, armados com uma lista de compras que, segundo Dona Etelvina, era "um pouco mais longa do que o habitual", eles adentraram no supermercado. A atmosfera estava cheia de aromas de pão fresco e frutas maduras, e Epitáfio, que por anos havia se considerado um expert em compras, estava confiante.

"Vamos começar pela seção de frutas", sugeriu Dona Etelvina, já mirando as maçãs. 

Epitáfio, no entanto, estava mais interessado em fazer uma competição com ele mesmo: quantas maçãs conseguiria pegar de uma vez? Ele se agachou, esticou os braços e, no meio da sua acrobacia, acabou derrubando uma maçã que rolou para longe.

"Uma já foi", ele disse, rindo. 

Mas a coisa não ficou por ali. Enquanto tentava pegar a maçã perdida, ele se distraiu e, sem querer, esbarrou em uma prateleira de latas de molho de tomate, que começou a desabar como uma cascata descontrolada. Latas rolavam para todos os lados, e Epitáfio ficou paralisado por um momento, tentando avaliar a situação.

"Querido, você não acha que está exagerando?", perguntou Dona Etelvina. "Isso é um supermercado, não um circo!"

Epitáfio, em sua defesa, apenas deu de ombros e continuou a coleta das latas caídas. Ao menos algumas delas estavam intactas.

Após o "incidente do molho de tomate", eles prosseguiram para a seção de cereais. Dona Etelvina sempre dizia que era a parte mais tranquila, mas Epitáfio, que não conseguia resistir a um bom desafio, decidiu que era hora de testar a resistência dos pacotes de cereal. Ele começou a empilhar os pacotes um sobre o outro, como se estivesse construindo uma torre de Babel.

"Se essa torre cair, vai ser um desastre", alertou Dona Etelvina. 

No entanto Epitáfio estava determinado. "Confie em mim, vai dar certo!" 

Naquele momento, tudo parecia tranquilo, até que, em uma fração de segundo, um pacote de cereal escorregou e, como um efeito dominó, derrubou todos os outros. Cereais voaram para todos os lados, e Epitáfio estava, mais uma vez, cercado por uma cena digna de comédia pastelão.

"Você é mesmo um talento para desorganizar tudo, Epitáfio!", comentou uma senhora que passava, rindo da situação. 

Epitáfio, com um sorriso amarelo, começou a juntar os pacotes, enquanto Dona Etelvina tentava ajudar. Mas na tentativa de recolher os cereais, Epitáfio começou a se irritar.

"Por que sempre eu?", ele resmungou, olhando ao redor, como se estivesse no centro de um espetáculo de teatro. "Todo mundo aqui é tão calmo, e eu sou o único que parece um maluco!"

Dona Etelvina, tentando aliviar a tensão, disse: "Querido, relaxe! Isso é só um dia de compras. Não vale a pena perder a paciência."

Finalmente, após o que parecia uma eternidade, Epitáfio e Dona Etelvina conseguiram completar a lista. Mas, ao se dirigirem para o caixa, a carrinho de compras, já cheio de itens, parecia um verdadeiro campo de batalha: frutas, cereais, e uma quantidade razoável de latas de molho de tomate estavam misturados, parecendo uma obra de arte moderna.

Assim que passaram pelo caixa, Epitáfio se distraiu novamente, olhando para uma promoção de biscoitos. E, claro, foi o suficiente para que o carrinho, que já estava em estado de colapso, cedesse. Tudo se espalhou pelo chão: biscoitos, frutas, e até um pacote de arroz que, por alguma razão, decidiu se juntar à festa.

"Não, não, não!" gritou Epitáfio, em um momento de desespero. Ele se agachou para pegar as coisas, enquanto outros clientes olhavam, divertidos. 

Algum tempo depois, ele se levantou, tentando manter a dignidade, mas a cena era insustentável.

"Eu não aguento mais!", ele exclamou, olhando ao redor. "O que eu fiz para merecer isso? Até o arroz está me olhando com desprezo!"

Dona Etelvina, rindo, colocou a mão no ombro dele. "Amor, acho que precisamos de mais do que apenas compras. Precisamos de uma boa dose de calma! Vamos para casa e esquecer isso tudo."

Epitáfio, ainda um pouco frustrado, concordou. 

"Ok, mas da próxima vez que você me acompanhar para o mercado, prometo não fazer mais malabarismos com as maçãs!"

E assim, com o recolhendo as compras espalhadas pelo chão, Epitáfio e Dona Etelvina deixaram o supermercado, prontos para enfrentar a próxima batalha da vida a dois: a cozinha.

Retornando para casa, foram organizar a cozinha.

Epitáfio: (segurando um pacote de arroz aberto) Olha, Etelvina, acho que esse arroz decidiu se rebelar contra nós. Está mais espalhado do que dentro da embalagem!

Dona Etelvina: (rindo) É, parece que ele queria ver o mundo. Ao menos, agora temos um "arroz à la chão".

Epitáfio: (suspirando) Se eu soubesse que ia ser assim, teria me limitado a comprar um pão e um queijo.

Dona Etelvina: Ah, vai! Você sabe que as compras nunca são só pão e queijo com você. Sempre tem uma aventura à vista!

Epitáfio: (brincando) Aventura é uma coisa. Mas eu não assinei para ser o protagonista de um filme de comédia!

Dona Etelvina: (com um sorriso) E você está se saindo muito bem na sua atuação. Olha só essa cena do arroz!

Epitáfio: (começando a rir) Verdade. Vou me candidatar ao Oscar de “Melhor Desastre em Supermercado”.

Dona Etelvina: (começando a juntar os biscoitos) A gente poderia fazer um filme sobre isso. “Os Caçadores de Compras Perdidas”!

Epitáfio: (fazendo pose) E eu seria o herói que sempre acaba se metendo em encrenca!

Dona Etelvina: (com um olhar divertido) E eu seria a heroína que tenta salvar o dia, mas acaba rindo da situação.

Epitáfio: (abrindo um armário para guardar as coisas) E o vilão? Quem seria o vilão da nossa história?

Dona Etelvina: (pensativa) Acho que seria o molho de tomate. Sempre pronto para causar uma explosão!

Epitáfio: (apontando para o chão) Ou o arroz, que decidiu se espalhar como um exército rebelde!

Dona Etelvina: (rindo) Isso! Precisamos de um grande final, com todos os ingredientes se unindo para fazer um jantar épico.

Epitáfio: (sorrindo) Que tal um arroz carreteiro? Assim, o arroz rebelde se redime!

Gato (Bolota): (entrando com um ar de desdém) E eu aqui, esperando um pouco de respeito. Esse chão não é um buffet, sabia?

Epitáfio: (surpreso) Olha quem apareceu! O nosso crítico gastronômico felino! O que você acha do nosso “arroz à la chão”, Bolota?

Bolota: (lambendo as patas) Precisamos conversar sobre a apresentação. Não é assim que se serve um prato!

Dona Etelvina: (com um sorriso) E você, o que sugere, senhor gourmet? Um prato sem arroz?

Bolota: (com um olhar arrogante) Bem, um pouco de atum na receita não faria mal. Mas, por favor, nada de bagunça!

Epitáfio: (brincando) Atum? Você não foi ao supermercado, foi? Se fosse, teria visto o que aconteceu lá!

Bolota: (com um olhar cético) Isso não é desculpa. A organização é fundamental, mesmo em meio ao caos.

Dona Etelvina: (começando a juntar os biscoitos) E você, o que vai fazer? Ficar sentado enquanto nós limpamos a cozinha?

Bolota: (dando um salto para uma prateleira) Eu estou aqui para garantir que nada do que vocês preparam venha a me incomodar. E se sobrar algum atum, eu aceito!

Epitáfio: (abrindo um armário para guardar as coisas) Olha, Bolota, se você nos ajudar, prometo que vou procurar um atum especial na próxima compra.

Bolota: (sorrindo com um ar de superioridade) Isso é um bom começo. Mas não se esqueçam da apresentação!

Dona Etelvina: (brincando) Claro! Atum em um prato bem decorado, com um toque de arroz do chão!

Epitáfio: (fazendo pose) E eu seria o herói que sempre acaba se metendo em encrenca, enquanto o gato dá as ordens!

Bolota: (com um olhar de aprovação) Finalmente, você entendeu seu papel.

Dona Etelvina: (rindo) Vamos lá, então! Com as nossas forças e a ajuda do nosso crítico felino, faremos um jantar épico.

Epitáfio: (sorrindo) Combinado! E que venha o próximo supermercado, porque com você e o Bolota, sempre há histórias para contar!

Bolota: (com um ar de sabedoria) E lembrem-se: a próxima vez, menos bagunça, mais atum!

Dona Etelvina: Perfeito! Vamos juntar nossas forças na cozinha e fazer isso acontecer. E, claro, sem mais malabarismos!

Epitáfio: (com um olhar determinado) Combinado! Agora vamos fazer esse jantar e deixar as aventuras para o próximo dia de compras!

Dona Etelvina: (com um sorriso) Isso! E que venha o próximo supermercado, porque com vocês haverão histórias para contar!

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = Auta de Souza (Macaíba/RN, 1876 - 1901, Natal/RN)



José Luiz Boromelo (O padre, o prefeito e o delegado)

​Antigamente, nas cidadezinhas do interior do País, a população reconhecia as três maiores autoridades do município: o padre, o prefeito e o delegado. Cada qual, à sua maneira, exercia influência específica sobre o comportamento das pessoas, principalmente diante de algum entrevero, que inevitavelmente exigia uma providencial interferência dessas personalidades. Fosse algo mais sério que viesse realmente ameaçar a integridade física dos envolvidos, entrava em cena o delegado “calça-curta”, agente geralmente nomeado pela administração municipal e que, de maneira peculiarmente convincente à época, acabava com as divergências num piscar de olhos. 

Já o prefeito atuava nos casos em que se fazia necessário colocar cada qual em seu devido lugar, quando o assunto pendia para a área política. Naquelas paragens ele mandava e desmandava e ai de quem destoasse de sua cartilha, escrita por interesses dos mais diversos possíveis. 

Ao padre recaía a responsabilidade pela preservação da moral e dos bons costumes, a propagação da fé cristã, a busca incansável pelas ovelhas desgarradas, a resistência sistemática às incontáveis tentações impudicas e ao exercício permanente do jogo de cintura, tentando agradar a gregos e troianos.

​A vida seguiu seu rumo e o vilarejo encravado na mata virgem cresceu e viu o tempo transformar aquelas práticas bairristas em longínquas lembranças do passado. Pelo menos é o que imaginam os viventes do século 21 na majestosa Maringá. Mas eis que mesmo com o desenvolvimento, a modernidade e a tecnologia batendo à porta do cidadão, as folclóricas figuras de outrora, agora elitizadas e alçadas a níveis infinitamente superiores de competência e intelectualidade, se envolvem em uma pendenga pouco republicana, guardadas as devidas proporções de espaço, tempo e intenções. Seria uma reunião para se discutir os níveis de insegurança elevados, uma demanda legítima da população do típico e controverso lanche prensado parlamentar. 

Da tríade benfazeja do passado, apenas o religioso não se fez presente, por motivos óbvios, ante o tema proposto. Diante da exposição pelo comandante militar dos números oficiais da criminalidade, o prefeito, exaltado, foi curto e grosso. Como toda ação provoca uma reação, o imbróglio logo se estabeleceu. Ignorando o poder das palavras, cada qual mostrou sua desaprovação com a situação, sob a ótica do cargo ora exercido. A exasperação do chefe do executivo municipal foi, evidentemente, o estopim para a defesa veemente de opiniões divergentes. 

Por sua vez, a infeliz declaração da suposta degustação de pizza em casa (privilegiando a segurança familiar) teve o mesmo efeito de se tentar apagar fogo com gasolina, elevando ainda mais a temperatura do debate. Nota-se que faltou serenidade e sobrou testosterona aos protagonistas.

​Para a felicidade geral da comunidade, com os ânimos amainados e as arestas aparadas (pelo menos momentaneamente), pode-se concluir que medidas efetivas certamente serão implementadas, no intuito de oferecer um pouco mais de segurança à sociedade maringaense. E aos ocupantes de cargos públicos, seria de bom alvitre que exercitem continuamente o autocontrole deixando a emoção de lado, porque absolutamente tudo se resolve na base do diálogo. Atitudes bem diferentes de outras épocas, quando mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo. Então, senhores, muita calma nessas horas.

Fonte: Portal do Rigon. 31  de agosto de 2017
https://angelorigon.com.br/2017/08/31/o-padre-o-prefeito-e-o-delegado/

Recordando Velhas Canções (Estrada do sol)

(samba-canção, 1958)

Compositor: Tom Jobim - Intérprete: Dolores Duran

É de manhã
Vem o Sol
Mas os pingos da chuva
Que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção

É de manhã
Vem o Sol
Mas os pingos da chuva
Que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção

Quero que você
Me dê a mão
Vamos sair por aí
Sem pensar
No que foi que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nossa manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o Sol

É de manhã
Vem o Sol
Mas os pingos da chuva
Que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o Sol
Me dê a mão pra ver o Sol 
Pra ver o sol, o sol, o sol

A Luz Após a Tempestade em 'Estrada do Sol'
A música 'Estrada do Sol', composta por Tom Jobim, um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores da Bossa Nova, é uma obra que transmite a sensação de renovação e esperança após momentos de tristeza. A letra utiliza a metáfora do amanhecer e do sol que surge após a chuva como uma forma de representar o fim de um período difícil e o início de um novo capítulo mais alegre na vida do eu lírico.

A repetição dos versos que descrevem os pingos da chuva ainda brilhando, mesmo com a chegada do sol, sugere que as memórias das adversidades ainda estão presentes, mas a luz do sol traz consigo uma força que convida a seguir em frente. A chuva pode ser vista como as lágrimas derramadas, e o sol, como a superação e a capacidade de encontrar beleza e alegria mesmo após a dor.

O convite para dar a mão e sair para ver o sol é um chamado para compartilhar a experiência de recomeço e apreciar a beleza da vida. A ênfase na manhã e no esquecimento do que foi sonhado, chorado e sofrido reforça a ideia de que cada novo dia traz consigo a possibilidade de deixar para trás as mágoas e viver novas experiências. A música, portanto, é um hino à resiliência e à capacidade humana de se recuperar e encontrar felicidade após os momentos de tristeza.

Interpretada por Dolores Duran, é uma ode à renovação e à esperança que a manhã traz. A letra começa com a imagem do amanhecer, onde o sol surge após uma noite de chuva. Os pingos de chuva que ainda brilham e bailam ao vento simbolizam as dificuldades e tristezas passadas, que, embora ainda presentes, são suavizadas pela luz e alegria do novo dia. Essa metáfora sugere que, mesmo após momentos difíceis, a vida continua e há sempre a possibilidade de um recomeço.

Dolores Duran, com sua voz suave e emotiva, convida o ouvinte a seguir em frente, deixando para trás os sonhos, lágrimas e sofrimentos do passado. A mão estendida é um gesto de apoio e companheirismo, indicando que não estamos sozinhos em nossa jornada. A música enfatiza a importância de viver o presente e aproveitar as novas oportunidades que surgem com cada amanhecer. A repetição da ideia de 'ver o Sol' reforça a mensagem de otimismo e a busca pela felicidade.

A simplicidade e a beleza da letra, combinadas com a interpretação sincera de Dolores Duran, fazem de 'Estrada do Sol' uma canção atemporal. Ela nos lembra que, independentemente das adversidades, sempre há um novo dia para recomeçar e encontrar a alegria. A música é um convite para abraçar a vida com esperança e coragem, valorizando os momentos de luz e superando as sombras do passado.

Fontes
https://www.letras.mus.br/tom-jobim/49039/significado.html 
https://www.letras.mus.br/dolores-duran/396856/significado.html

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 28

 

José Feldman (Pafúncio no Manicômio)

(mais uma aventura da série Pafúncio, o jornalista trapalhão)

Era uma manhã ensolarada quando Pafúncio, o jornalista da revista “Fuxico & Fofocas”, recebeu uma ligação do editor que o deixou perplexo. 

“Pafúncio, precisamos de uma cobertura especial. Você vai ao manicômio e vai fazer uma reportagem sobre a vida lá dentro.”

Pafúncio, que não tinha a menor ideia do que significava cobrir um manicômio, apenas respondeu: “Claro! Vou fazer isso! Não se preocupe!” 

Ele estava tão animado que mal conseguia pensar na seriedade da situação.

Vestindo uma camisa de estampas psicodélicas e uma gravata que parecia ter sido desenhada por uma criança, Pafúncio chegou ao manicômio. Ao entrar, foi recebido por um enfermeiro que o olhou com desconfiança. “Você é o jornalista?” perguntou o enfermeiro.

“Sim, sou eu! Estou aqui para fazer uma matéria incrível!” Pafúncio respondeu, com um sorriso largo que parecia mais uma careta.

Assim que entrou na ala dos pacientes, Pafúncio começou a fazer perguntas aleatórias, sem prestar atenção nas respostas. “O que você acha do almoço servido aqui? É tão bom quanto o que servem em um restaurante chique?” perguntou a um paciente que estava sentado em um canto, olhando para o nada.

O paciente olhou para ele, confuso, e disse: “Eu só queria um pedaço de bolo…”

“Bolo! Ótima ideia! Vou anotar isso!” Pafúncio exclamou, enquanto anotava freneticamente. Ele estava tão entusiasmado que não percebeu que a conversa não estava indo a lugar algum.

A sua primeira trapalhada aconteceu quando ele decidiu que precisava tirar fotos para a reportagem. Ele começou a disparar flashes incessantemente, fazendo com que os pacientes se assustassem. 

Um deles, que estava concentrado em montar um quebra-cabeça, se levantou e gritou: “Pelo amor de Deus, pare com isso! Eu estou tentando focar!”

“Desculpe! É para a revista!” Pafúncio respondeu, mas já estava se distraindo com um paciente que estava dançando em cima de uma mesa.

“Olha, uma apresentação de dança!” ele gritou, enquanto começava a gravar em seu celular. O paciente, animado, começou a dançar ainda mais, mas acabou escorregando e caindo, fazendo com que uma série de cadeiras se derrubassem.

“Isso vai render uma ótima reportagem sobre talento escondido!” Pafúncio comentou, enquanto os enfermeiros começavam a correr em direção ao local do acidente.

A cada nova interação, Pafúncio se aprofundava mais em sua própria confusão. Ele encontrou um grupo de pacientes jogando cartas e decidiu que precisava participar. 

“Ei, posso me juntar a vocês? O que estamos jogando? Pôquer? Ou é um jogo de tabuleiro?” ele perguntou, sem entender que estavam jogando um jogo inventado por eles, que envolvia adivinhar quem era o “rei do dia”.

Os pacientes, rindo, decidiram que Pafúncio deveria ser o “rei” por um dia. 

Ele começou a fazer declarações absurdas, como: “A partir de agora, todos devem usar chapéus de papel alumínio!” e todos aplaudiram histericamente, enquanto Pafúncio se sentia como uma verdadeira celebridade.

Depois de algum tempo, um dos médicos entrou na sala e, ao ver a cena, ficou perplexo. “O que está acontecendo aqui?” ele perguntou, olhando para Pafúncio, que estava sentado em uma cadeira com um chapéu de papel alumínio.

“Sou o novo rei! E vocês todos são meus súditos!” Pafúncio exclamou, levantando os braços como se estivesse em um espetáculo.

O médico, já desconfiado, decidiu acompanhar o “jornalista” por mais um tempo. Pafúncio, ignorando completamente a seriedade do ambiente, começou a fazer perguntas sobre os tratamentos dos pacientes. 

“Então, como é receber terapia? É como ir a um spa, mas sem as toalhas quentes?” ele perguntou a uma mulher que estava desenhando.

A mulher olhou para ele, incrédula. “Depende… você gosta de água fria?” ela respondeu, enquanto Pafúncio anotava tudo como se estivesse em uma conferência de imprensa.

A situação foi se agravando quando Pafúncio decidiu que precisava entrevistar o diretor do manicômio. Ele se dirigiu ao escritório do diretor, sem saber que estava invadindo uma reunião importante. 

“Oi, sou Pafúncio! Estou aqui para fazer uma reportagem sobre a vida no manicômio! Posso fazer algumas perguntas?” ele interrompeu, enquanto os médicos olhavam para ele, atônitos.

“Desculpe, mas estamos ocupados,” respondeu o diretor, tentando manter a compostura. “Isso é uma reunião de emergência.”

“Uma emergência? Isso é ótimo! Posso fazer uma matéria sobre isso! ‘Emergência no Manicômio: O Que Está Acontecendo?’” Pafúncio disse, enquanto tentava se acomodar na mesa.

Os médicos começaram a se olhar, preocupados. 

“Acho que precisamos conversar com você,” disse um deles, levantando-se.

Com a confusão tomando conta, Pafúncio decidiu que era hora de fazer uma pausa e se dirigiu ao banheiro. Ao entrar, ele se deparou com um espelho e começou a fazer caretas, como se estivesse se preparando para uma grande apresentação. “E se eu me tornar o novo rosto da fama? Pafúncio, o jornalista que transforma manicômios em palcos!” ele pensou alto, rindo de sua própria ideia.

Enquanto isso, os médicos decidiram que ele era um risco para si mesmo e para os pacientes. Quando Pafúncio saiu do banheiro, foi cercado por enfermeiros e médicos que tentaram convencê-lo a se sentar e “conversar”.

“Mas eu só quero fazer uma reportagem!” ele protestou, mas os médicos não estavam ouvindo.

“Precisamos te internar por um tempo, você está se comportando de maneira estranha.” disse um dos médicos, enquanto Pafúncio olhava em volta, confuso.

“Estranho? Eu sou apenas um jornalista divertido! Olhem para mim!” ele exclamou, fazendo uma pose exagerada. “Não sou louco! Sou apenas… bem, um pouco excêntrico!”

Os médicos, já sem paciência, começaram a levá-lo para uma sala. 

“Pafúncio, por favor, não faça mais alarde! Você está atrapalhando a rotina do manicômio!” um deles gritou, enquanto Pafúncio tentava escapar.

“Isso não é uma prisão! Isso é uma reportagem!” ele respondeu, mas no fundo sabia que a situação tinha saído do controle.

Finalmente, em um último esforço para se libertar, Pafúncio começou a agir como se estivesse em um espetáculo, fazendo gestos grandiosos. 

“Eu sou o rei do manicômio! Vocês não podem me internar! Eu tenho que escrever sobre o talento escondido aqui!”

Mas, ao ouvir a palavra “internar”, um dos médicos, que já estava estressado, decidiu que já era suficiente. “Vamos colocar um ponto final nisso,” ele disse, enquanto Pafúncio continuava a protestar.

Finalmente, em uma cena digna de um filme de comédia, Pafúncio foi levado para fora do manicômio, enquanto gritava: “Isso vai ser uma ótima matéria! ‘Pafúncio, o jornalista que se tornou paciente!’”

E assim, ele saiu, rindo, sem saber que sua trapalhada se tornaria a maior história de todas. Afinal, a vida de Pafúncio era um grande espetáculo.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = Antonio Juraci Siqueira (Belém/PA)



Renato Frata (O sapo)

Na barranca havia um sapo ao abrigo de folhas de taioba. Sonhava conhecer a outra margem, mas permanecia na alfombra a observá-la perdido no tempo entre sussurros, resmungares e roncos.

As horas passavam com ele a admirar o outro lado, o verde mais verde da margem de lá. As árvores mais fortes, sinal de que a terra era melhor que a do seu lado. Diferente, majestoso, uma visão a criar fantasias que o punham a delirar. Os pássaros que cantavam lá possuíam vozes possantes e até o céu, das cercanias da taioba, era mais azul e o sol mais reluzente.

- Que belo! - exclamava. - Num lugar tão especial os insetos devem ser mais saborosos... Um dia ainda me mudo.

E permanecia sonhando desejos repetidos: o lado de lá, bonito e próspero, prometia...

Olhando, entretanto, para seu corpanzil, viu-se mais velho do que era e bem cansado, mesmo sem ter feito coisa alguma além de imaginar o quão bom poderia ser o outro lado, especialmente pelos apetitosos insetos que imaginara viverem ali.

A prova da velhice era sua respiração trôpega que o obrigava a ficar de boca aberta, puxando e expelindo ar, o que lhe tirava roncos do peito como uma máquina barulhenta. Não se poderia dizer se era obstrução respiratória ou a perda de elasticidade do decorrer da idade.

O fato é que, enquanto pensava, resmungava.

Era um sapo resmungão!

Como não se conhece a língua dos sapos, só outro entenderia o que expressava e, como vivia só, talvez fosse o peso da consciência a lhe cobrar a inanição e covardia por nunca ter atravessado o ribeirão.

Sua pele rugosa tingida de terra indicava que ele se preparava sem o saber, para voltar a ser terra como ditam os ciclos da vida, mas o que importa é que ele, sob as folhas, sugeria apenas desejo, e não o ímpeto.

Sonho sonhado não passa de vão desejo.

Uma dúvida surge nessa reflexão; por que não atravessava o ribeirão, se era anfíbio? Por que não fora pela ponte abaixo de onde estava a taioba? Perguntas sem respostas.

Há coisas que como o sapo nos põem sob camisa de força, com pensamentos a voarem flanando qual asas de borboleta, sem se importarem se está frio ou calor, se chove ou não, porque o importante é a aventura, a realização. Mas há os que flanam em mariposas em volta da luz e acabam por morrer chamuscados. Esses são os insensatos.

Com o sapo seria assim; covarde ou preguiçoso? Se não queria enfrentar a correnteza nem atravessar a ponte, por que sonhava?

Como disse Madre Tereza de Calcutá, "a disciplina é a ponte entre os objetivos e as concretizações".

Mas cobrar isso de um sapo que não conheceu a Madre e nem não sabia ler, seria um contrassenso. O que apavora, contudo, é que muitas vezes nós, que sabemos da Madre tanto quanto da leitura, por preguiça ou desmazelo nos transformamos em sapo sob taioba.

Olhamos a outra margem e viajamos... apenas na inveja...

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Recordando Velhas Canções (Chega de saudade)

(bossa nova, 1958)
Compositores: Tom Jobim e Vinicius de Moraes


Vai minha tristeza e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade,
A realidade é que sem ela não há paz,
Não há beleza, é só tristeza
e a melancolia que não sai de mim
Não sai de mim, não sai

Mas se ela voltar, se ela voltar,
Qua coisa linda,  que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços os abraços
hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, calado assim, colado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é prá acabar com esse negócio
de você viver sem mim

A Melodia da Saudade
A canção "Chega de Saudade", é um marco na história da música brasileira, sendo considerada por muitos como o ponto de partida do movimento Bossa Nova. A letra da música expressa um sentimento profundo de saudade e o desejo ardente pelo retorno de um amor ausente. A tristeza é personificada e enviada para convencer a amada da necessidade de seu regresso, destacando a dor e o vazio deixados por sua falta.

A repetição do verso "Chega de saudade" ressalta o limite da tolerância do eu lírico para com a ausência da pessoa amada, enquanto a descrição da realidade sem ela é pintada como desprovida de paz e beleza, repleta apenas de tristeza e melancolia. Essa intensidade emocional é característica das composições de Jobim, que frequentemente explorava temas de amor e natureza em suas obras.

A música também utiliza metáforas, como a comparação dos beijos que serão dados com a quantidade de peixes no mar, para ilustrar a imensidão do amor que o eu lírico sente. A promessa de abraços e carinhos sem fim reforça a ideia de um reencontro apaixonado e a necessidade de pôr um fim à distância que separa os amantes. A canção é um apelo emocional que reflete a universalidade do sentimento de saudade e a esperança de reencontro.

Embora considerada o marco zero da bossa nova, “Chega de Saudade” não é na opinião de Tom Jobim uma composição bossa nova. Em depoimento ao jornalista Tárik de Souza (para o livro Tons sobre Tom), ele esclareceu: 

“Minha mãe criou uma menina, que também se chamava Nilza (nome da mãe do Tom) e me pediu para comprar um método de violão para ela, que tinha boa voz. Comprei o método do Canhoto que trazia (...) aquele sistema antigo (de acordes) primeira, segunda, terceira. (...)

Fui obrigado a explicar para ela naquele método (...) e acabei me envolvendo com aquela sequência de acordes, completamente fáceis. Inventei uma sucessão de acordes, que é a coisa mais clássica do mundo, e botei ali uma melodia.

Mais tarde, Vinícius colocou a letra. De certa forma, sentindo a novidade da bossa nova, do João Gilberto e daquele meio em que a gente vivia, talvez Vinicius tenha sido levado a intitular a música ‘Chega de Saudade’. (...) Esse título é engraçado porque a música tem algo de saudade desde a introdução. Lembra aquelas introduções de conjuntos de violão e cavaquinho, tipo regional. (...).

Na segunda parte, passa para maior (modo maior). Acontecem todas aquelas modulações clássicas que você encontra na música antiga. Isso cria um absurdo: o ‘Chega de saudade’ já é uma saudade jogando fora a saudade!”.

Realmente, a bossa nova de “Chega de Saudade” está quase toda na harmonia, nos acordes alterados, pouco utilizados por nossos músicos da época, e na nova batida de violão executada por João Gilberto. A novidade rítmica fica muito clara, especialmente sob os versos “dentro dos meus braços os abraços / hão de ser milhões de abraços / apertado assim...”, com o violão indo na contramão da forma institucionalizada de se tocar samba. Aliás, a inovação já está presente na gravação de Elizeth Cardoso, a primeira de “Chega de Saudade”, feita para o elepê Canção do amor demais, que tem a participação de João Gilberto como violonista.

Esse disco, lançado pela pequena marca Festa, do produtor Irineu Garcia, é considerado por Tom Jobim (em depoimento a Zuza Homem de Mello, em outubro de 68) “um marco, um ponto de fissão, de quebra com o passado”. No dia 10.7.58, seis meses depois da gravação da Elizeth, aconteceu a do João, naturalmente repetindo a mesma batida de violão e apresentando o seu estilo bossa nova de cantar.

Este disco histórico, que traz na outra face o baiãozinho “Bim-Bom” (classificado no selo como samba), provocaria a pitoresca e mal-humorada reação de Álvaro Ramos, gerente das Lojas Assunção, quebrando o disco, indignado com o que o Rio lhe mandava. Atribuída no anedotário da bossa nova a Osvaldo Gurzoni, diretor de vendas da Odeon em São Paulo (que também não gostara do disco), a verdadeira identidade do autor da façanha (Ramos) seria revelada por Ruy Castro no livro Chega de saudade. Esse episódio aconteceu em São Paulo, em agosto de 58, às vésperas do lançamento do disco de 78 rotações, que precedeu em alguns meses o elepê homônimo.

Fontes: 
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. vol.2.
https://www.letras.mus.br/tom-jobim/49028/significado.html

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 59

 

José Feldman (O Tempo e os Idosos)

A passagem do tempo é um fenômeno que afeta a todos nós, mas para as pessoas idosas, ela traz consigo um significado profundo e multifacetado. À medida que os anos se acumulam, as experiências vividas transformam-se em memórias, e cada ruga ou fio de cabelo branco conta uma história. Para muitos, a velhice é uma fase de reflexão, onde o tempo é visto não apenas como um número, mas como uma rica tapeçaria de vivências.

Para os idosos, as memórias se tornam tesouros. Cada lembrança é uma janela para um passado que moldou quem eles são hoje. Recordações de infância, momentos marcantes, amores perdidos e conquistas celebradas são revisitados com carinho. Muitas vezes, essas histórias são compartilhadas com familiares e amigos, criando laços entre gerações e transmitindo sabedoria.

“Lembro-me de quando era jovem e sonhava em viajar pelo mundo”, pode dizer um avô, enquanto seus netos escutam com atenção. Essas histórias não são apenas relatos do passado; elas oferecem lições sobre resiliência, amor e a importância de aproveitar cada momento.

Com o passar dos anos, muitos idosos começam a refletir sobre o significado do tempo. A percepção do tempo muda; dias, meses e anos podem parecer passar mais rapidamente. Essa reflexão pode gerar um sentimento de urgência em viver plenamente, levando-os a cultivar relacionamentos e a realizar sonhos que, por muito tempo, foram deixados de lado.

“Não posso deixar para depois o que posso fazer hoje”, é uma frase que pode ecoar nas mentes de muitos. Esse novo olhar sobre a vida e o tempo pode resultar em decisões ousadas, como aprender uma nova habilidade, viajar para lugares que sempre desejaram conhecer ou até mesmo mudar de estilo de vida.

A velhice traz consigo uma sabedoria inestimável. Após anos de vivências, os idosos possuem uma perspectiva única sobre os desafios da vida. Eles aprenderam que a felicidade muitas vezes está nas pequenas coisas — um por do sol, uma conversa com um amigo, ou um momento de silêncio. Essa sabedoria é um presente que eles compartilham, não apenas com seus familiares, mas com a comunidade ao seu redor.

Muitos idosos se tornam mentores, oferecendo conselhos valiosos aos mais jovens. Têm a capacidade de ver além das dificuldades imediatas, lembrando aos outros que “as tempestades passam e o sol sempre volta a brilhar”.

Entretanto, a passagem do tempo também pode trazer desafios. A solidão é uma realidade para muitos idosos, especialmente à medida que amigos e familiares vão se afastando. A perda de entes queridos pode ser uma das experiências mais dolorosas, e a adaptação a essa nova realidade requer tempo e apoio.

Enfim, a passagem do tempo para as pessoas idosas é uma celebração da vida. Cada ruga é um lembrete de risadas, lágrimas e momentos significativos. A velhice pode ser uma fase de desafios, mas também é uma época rica em amor, aprendizado e gratidão.

Nosso papel é ouvir suas histórias, aprender com suas experiências e honrar suas jornadas. Ao fazermos isso, não apenas celebramos a vida dos idosos, mas também nos tornamos mais conscientes do valor do tempo em nossas próprias vidas. Afinal, cada dia é uma nova oportunidade para criar memórias, aprender e amar.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Manoelita Amorim Meyer (Pouso Alegre/MG)



Eduardo Martínez (Amarildo, um homem carregado de devaneios)

Amarildo, homem sem grandes feitos na vida, tentava aplacar a própria mediocridade em devaneios. Desse modo, não raro, imaginava-se na pele de algum desbravador, seja alguém que já teria existido, seja até mesmo algum Indiana Jones das telas do cinema. 

Tamanhos pensamentos, o sujeito já havia atravessado o Atlântico tantas vezes, que perdera as contas. Cinco, seis, nove? Talvez duas dúzias, contando as viagens em navios piratas, sem mencionar aquela outra em uma jangada típica da sua Fortaleza, no Ceará. 

Em uma dessas travessias, eis que houve um motim comandado pelo terrível Barba-Negra. Amarildo, justamente o capitão, foi atirado ao mar repleto de tubarões famintos. Por sorte do resquício de sonho naquele pesadelo, eis que surgiu um golfinho salvador. O homem, agarrado à barbatana dorsal do inesperado amigo, conseguiu sair ileso daquelas mandíbulas ferozes.

Após se ver a salvo, Amarildo se despediu do golfinho. O bicho tinha família e precisava retornar para o lar, doce lar, que ficava ali mesmo no salgado Atlântico. Ademais, o gajo só precisaria dar algumas braçadas para chegar a uma ilha no meio do oceano.

Não tardou, Amarildo pisou na alva areia. O local parecia deserto. Com a barriga roncando, ele tratou de arrumar algo para saciar a fome. Por sorte que às vezes acomete os aventureiros, ele encontrou alguns coqueiros carregados.

Com sua destreza, conseguiu pegar e abrir tantos cocos que desejou. Barriga cheia, sentiu, pela primeira vez desde que foi arremessado do seu navio aos tubarões, um leve sono.

Quase adormecido, Amarildo tomou um susto. Não era possível! O cruel e traiçoeiro Barba-Negra surgiu do nada e encostou a ponta da espada na barriga do Amarildo.

— Pensou que iria me escapar, Amarildo?

— Você de novo, Barba-Negra!

— Sim, Amarildo! 

— Dê-me uma espada para lutarmos de homem para homem.

Barba-Negra, vendo aquele maltrapilho esvaído, teve um raro momento de compaixão. Desembainhou a outra espada que carregava e a jogou na areia ao lado do rival. Este, ligeiro que nem falcão-peregrino, pegou a espada e rolou para o lado para se desvencilhar do primeiro golpe do traiçoeiro rival, que cortou as areias da praia.

As lâminas afiadas logo começaram a travar o combate de uma vida. A cada toque entre elas, faíscas eram liberadas para surpresa dos animais que se juntaram para assistir ao duelo. Enquanto os macacos mostravam os dentes, os papagaios charlavam coisas ininteligíveis, enquanto duas serpentes, atrás de uma moita, sibilavam antes do acasalamento. 

E lá estavam aqueles dois seres humanos digladiando, quando um dos oponentes, justamente o Amarildo, se distraiu com o zumbido de uma mosca e foi atingido na barriga pelo vil metal do Barba-Negra. E lá se foram as tripas do perdedor caírem sobre a areia. Não tardou, lobos, saídos não se sabe de onde, avançaram sobre o banquete de última hora.

Pobre Amarildo, contorcendo-se em dores, foi devorado vivo, enquanto o malvado Barba-Negra gargalhava alto para todos ouvirem. 

— Há, há, há, há!!!

De tão alto, acabou despertando o Amarildo, que dormia na rede pendurada na varanda. Acordou suando em bicas e com forte dor no lado direito da barriga. Por sorte, foi socorrido ao hospital pelos vizinhos do edifício onde morava. Era apendicite.

Fonte:
Blog do Menino Dudu. 22 outubro 2024.

Recordando Velhas Canções (Samba de Orfeu)

(samba, 1959)
Compositor: Luiz Bonfá e Antonio Maria


Quero viver,    
quero sambar 
Até sentir a essência da vida 
me falta ar 
Quero sambar 
quero viver  
Depois do samba, ta bem 
Meu amor, posso morrer 

Quero viver,    
quero sambar 
Até sentir a essência da vida 
me falta ar 
Quero sambar quero viver  
Depois do samba, ta bem 
Meu amor, posso morrer 

Quem quiser gostar de mim 
Se quiser vai ser assim 
Vamos viver 
vamos sambar  
Se a fantasia rasgar  
Meu amor 
eu compro outra  

Vamos sambar, vamos viver  
O samba é livre,  
Eu sou livre também até morrer.

A Liberdade e a Alegria no 'Samba de Orfeu'
A música 'Samba de Orfeu', é uma celebração da vida e da liberdade através do samba. A letra expressa um desejo profundo de viver intensamente e aproveitar cada momento, mesmo diante das adversidades. A repetição da frase 'quero viver, quero sambar' reforça a ideia de que a vida e o samba estão intrinsecamente ligados, sendo o samba uma metáfora para a alegria e a liberdade de viver.

A menção à fantasia que pode se perder, mas que pode ser comprada novamente, simboliza a resiliência e a capacidade de se reinventar. A fantasia, no contexto do samba, representa a alegria, a criatividade e a expressão pessoal. Mesmo que a vida apresente desafios e perdas, a música sugere que é possível recuperar a alegria e continuar a dançar, a viver. A liberdade é um tema central, destacada na frase 'o samba é livre, e eu sou livre até morrer', indicando que a liberdade é um valor inalienável e essencial para a existência plena.

Além disso, a música aborda a aceitação e a autenticidade nas relações pessoais. A linha 'quem quiser gostar de mim, se quiser vai ser assim' sugere que a aceitação deve ser incondicional, sem tentar mudar a essência do outro. 'Samba de Orfeu' é, portanto, uma ode à vida, à liberdade e à autenticidade, celebrando o samba como uma expressão máxima desses valores.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

José Feldman (O Escritor e o Filósofo)

Era uma vez, em uma pequena aldeia cercada por montanhas e florestas, um escritor chamado Hirram e um filósofo chamado Hermes. Ambos eram conhecidos por suas habilidades excepcionais: Hirram era famoso por suas histórias encantadoras e por criar mundos imaginários, enquanto Hermes era reverenciado por suas reflexões profundas sobre a vida e a existência. 

Certa manhã, enquanto caminhavam pelo bosque, Hirram teve uma ideia. “Hermes, que tal fazermos uma competição? Cada um de nós pode apresentar uma obra que represente a nossa visão do mundo. Aquele que tocar mais corações será proclamado o vencedor!” 

Hermes, sempre ponderando, concordou. “É uma proposta interessante, mas devemos lembrar que a verdadeira sabedoria não é apenas sobre vencer, mas sobre aprender e compartilhar.” 

E assim, decidiram que cada um teria uma semana para trabalhar em sua obra. Hirram, entusiasmado, sentou-se em sua mesa e começou a escrever. Em suas histórias, ele criou heróis que enfrentavam dragões e viajantes que descobriam terras mágicas. Seu mundo era colorido e vibrante, repleto de aventuras e emoções. 

Hermes, por outro lado, passou seus dias contemplando. Ele caminhou pelas florestas, observou os riachos e escutou os pássaros cantando. Em vez de escrever imediatamente, ele refletiu sobre as questões que o intrigavam: o que era a felicidade? Como encontrar propósito na vida? A natureza e a essência do ser humano tornaram-se seus temas centrais. 

Ao final da semana, ambos se reuniram na praça da aldeia para apresentar suas criações. O povo estava animado, curioso para ouvir o que cada um tinha a dizer. 

Hirram foi o primeiro. Com a voz vibrante, ele contou uma história épica sobre um jovem que partiu em uma jornada para salvar seu reino. As reviravoltas, os desafios e as conquistas emocionaram a plateia. A cada palavra, os ouvintes eram transportados para um mundo de magia e esperança. Ao final, aplausos ecoaram na praça, e muitos estavam visivelmente emocionados. 

Em seguida, foi a vez de Hermes. Ele levantou a voz serena e começou a compartilhar suas reflexões. Falou sobre a natureza da vida, a efemeridade do tempo e a busca por significado. Seus pensamentos eram profundos e desafiadores, e ele fez perguntas que ecoavam na mente de todos. A plateia ouvia atentamente, absorvendo cada palavra como se fossem pérolas de sabedoria. 

Quando terminou, um silêncio reverente tomou conta da praça. As pessoas estavam pensativas, imersas em suas reflexões. A competição parecia ter tomado um rumo inesperado. 

Após as apresentações, a aldeia decidiu que não haveria um vencedor. Ambos, Hirram e Hermes, tinham oferecido algo valioso: um mundo de sonhos e uma visão da realidade. O povo percebeu que, enquanto as histórias de Hirram os transportavam para longe, as reflexões de Hermes os traziam de volta ao presente, ajudando-os a entender melhor suas próprias vidas. 

Certa noite, enquanto caminhavam juntos sob a luz das estrelas, Hirram virou-se para Hermes e disse: “Eu desejava vencer, mas agora vejo que ambos temos nosso valor. Você me ensinou que a vida é tão rica em significado quanto em imaginação.” 

Hermes sorriu. “E você me lembrou que as histórias têm o poder de conectar as pessoas, de fazer com que sonhem e sintam. Juntos, somos mais fortes.” 

Moral da História 
A verdadeira sabedoria reside na união entre a imaginação e a reflexão. Enquanto a criatividade nos leva a sonhar, a filosofia nos ajuda a entender a realidade. Ambos são necessários para uma vida plena e significativa.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Campos Sales (Lucélia/SP, 1940 - 2011, São Paulo/SP)