A batida da pesada porta de ferro ecoou uma eternidade. Desapressado, o pequeno Nicolau olhou para todos os lados. Certificou-se de que estava sozinho na imensa biblioteca. Como fazia há uns bons noventa anos — ou cem, ou talvez mais —, percorreu as estantes com os olhos à procura de algum volume. Olhou para as prateleiras da margem oposta, com o indicador da mão esquerda batucando a ponta do nariz. Olhou para a parede próxima até em cima, na altura onde surgiam as primeiras nuvens. "Deve estar por aqui", pensou. Colocou um quepe de alpinista na cabeça, a mochila nas costas, com um martelinho e uma corda presos por fora e começou a subir pela escada móvel metálica que atingia as estantes mais longínquas. Por mais frio que fosse nas alturas, contentava-se com uma jardineira de calças curtas e camisa sem mangas. Depois de horas e horas, voltou ao chão com um espesso alfarrábio. Isolada no centro da biblioteca, havia uma cadeira alta, entalhada de mogno, o assento fofo revestido com veludo carmim. Sentou-se e leu alguns capítulos. De súbito pensativo e triste, Nicolau interrompeu a leitura — a releitura — de "Capitão Áteras", de Julio Verne, e ficou a meditar. Lembrou que ainda moço estabelecera um rigoroso planejamento de leituras. Desde o verdor da juventude era propenso a estabelecer e cumprir metas. Algumas tolas, como não comer carne vermelha nos verões e raspar o cabelo nos anos bissextos. Outras de maior relevo, como aprender os idiomas latinos e desbravar a literatura clássica.
O planejamento literário funcionava da seguinte maneira: Nicolau lia um grande livro de um grande autor. Tão logo terminasse, começava a leitura de um grande livro de outro grande autor. E assim seguia o Primeiro Ciclo. Cumpria com prazer uma jornada diária de leitura, essencial para dar cabo de uma extensa lista elaborada com minúcia mas permeável a eventuais acréscimos. Por mais que se apaixonasse pelo estilo, pela verve do escritor, jamais lia outra obra do mesmo. "Há muitos autores a se conhecer", pensava com a ansiedade natural dos jovens.
Influenciado pela xenofobia da Semana de 22 ("tupi or not tupi, that's the question"), começou pelas obras nacionais. "O Ateneu", "Espumas Flutuantes", "Os Sertões", "Dom Casmurro" e várias outras de tal quilate. Tinha plena convicção de que Capitu traíra Bentinho e ficava exasperado quando a crítica literária cogitava outra hipótese. Depois, numa nova etapa, quando chegava aos trinta anos, começou os autores clássicos universais — Joyce, Shakespeare, Dickens, Dostoievski, Dumas, Poe, Borges, Eça, Aristófanes e companhia. Às vezes se permitia entremear a leitura de clássicos com livros de prosa jornalística, coletâneas de citações, estudos jurídicos, antologias de contos, enciclopédias ilustradas, best sellers digestivos e literatura infanto-juvenil. Sem contar a leitura diária de jornais e revistas variadas.
Essas interrupções, aparentemente inofensivas, representaram uma considerável parcela de tempo. Assim, Nicolau já contava com mais de cinqüenta anos ao iniciar o Segundo Ciclo — a leitura de outras obras dos seus autores prediletos. "O Processo", de Kafka, "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", de Machado de Assis, "Sagarana", de Guimarães Rosa, "Crime e Castigo", de Dostoievski, "Otelo" e "Rei Lear", de Shakespeare.
Nicolau já era um resignado octogenário quando finalmente conseguiu iniciar o Terceiro Ciclo — a época das releituras. "A releitura é a verdadeira arte da leitura", dizia ele citando uma frase não lembrava de quem. Recordou outro escritor, Ernest Hemingway, que daria toda a sua fortuna se pudesse sentir de novo o prazer que sentiu ao ler, pela primeira vez, seus livros preferidos.
Naquela tarde encalorada em que começara a reler "Capitão Áteras" — o primeiro livro de sua vida, o livro culpado por sua paixão fulminante pela leitura — Nicolau pensou nos inúmeros livros que já havia lido e relido. Em quanto conhecimento e diversão aquelas centenas de milhares de volumes já haviam oferecido a ele. Em quantos bilhões de palavras já haviam passado por seus olhos e quantas palavras desconhecidas havia anotado com caneta Bic num bloco de papel jornal para depois descobrir seus significados. Lembrou-se das incontáveis semanas sem comer, dos meses sem se contemplar no espelho, dos anos sem fazer a barba. No meio de tantas reminiscências, lembrou-se com saudade de um dicionário ilustrado muito antigo, impresso em papel bíblia, que tinha bonitas ilustrações coloridas de peixes oceânicos.
Colocou a mochila às costas, pegou o equipamento de alpinista e ajeitou o quepe na cabeça. Começou a cantarolar e a subir os degraus da escada metálica. Se sua memória merecesse alguma confiança, o dicionário estava daquele lado, numa prateleira bem acima das primeiras nuvens.
O nefelibata Nicolau nunca mais voltou.
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Notas sobre o autor:
Edu Mercer nasceu em 1973 e é redator publicitário em Curitiba — Paraná. Já escreveu, segundo suas próprias palavras, "dois pequenos livros (opúsculos): Fundo de Baú e O Quintal de Minha Casa é um Bar", que reúnem contos, crônicas e letras de música.
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Fonte:
http://www.releituras.com/
O planejamento literário funcionava da seguinte maneira: Nicolau lia um grande livro de um grande autor. Tão logo terminasse, começava a leitura de um grande livro de outro grande autor. E assim seguia o Primeiro Ciclo. Cumpria com prazer uma jornada diária de leitura, essencial para dar cabo de uma extensa lista elaborada com minúcia mas permeável a eventuais acréscimos. Por mais que se apaixonasse pelo estilo, pela verve do escritor, jamais lia outra obra do mesmo. "Há muitos autores a se conhecer", pensava com a ansiedade natural dos jovens.
Influenciado pela xenofobia da Semana de 22 ("tupi or not tupi, that's the question"), começou pelas obras nacionais. "O Ateneu", "Espumas Flutuantes", "Os Sertões", "Dom Casmurro" e várias outras de tal quilate. Tinha plena convicção de que Capitu traíra Bentinho e ficava exasperado quando a crítica literária cogitava outra hipótese. Depois, numa nova etapa, quando chegava aos trinta anos, começou os autores clássicos universais — Joyce, Shakespeare, Dickens, Dostoievski, Dumas, Poe, Borges, Eça, Aristófanes e companhia. Às vezes se permitia entremear a leitura de clássicos com livros de prosa jornalística, coletâneas de citações, estudos jurídicos, antologias de contos, enciclopédias ilustradas, best sellers digestivos e literatura infanto-juvenil. Sem contar a leitura diária de jornais e revistas variadas.
Essas interrupções, aparentemente inofensivas, representaram uma considerável parcela de tempo. Assim, Nicolau já contava com mais de cinqüenta anos ao iniciar o Segundo Ciclo — a leitura de outras obras dos seus autores prediletos. "O Processo", de Kafka, "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", de Machado de Assis, "Sagarana", de Guimarães Rosa, "Crime e Castigo", de Dostoievski, "Otelo" e "Rei Lear", de Shakespeare.
Nicolau já era um resignado octogenário quando finalmente conseguiu iniciar o Terceiro Ciclo — a época das releituras. "A releitura é a verdadeira arte da leitura", dizia ele citando uma frase não lembrava de quem. Recordou outro escritor, Ernest Hemingway, que daria toda a sua fortuna se pudesse sentir de novo o prazer que sentiu ao ler, pela primeira vez, seus livros preferidos.
Naquela tarde encalorada em que começara a reler "Capitão Áteras" — o primeiro livro de sua vida, o livro culpado por sua paixão fulminante pela leitura — Nicolau pensou nos inúmeros livros que já havia lido e relido. Em quanto conhecimento e diversão aquelas centenas de milhares de volumes já haviam oferecido a ele. Em quantos bilhões de palavras já haviam passado por seus olhos e quantas palavras desconhecidas havia anotado com caneta Bic num bloco de papel jornal para depois descobrir seus significados. Lembrou-se das incontáveis semanas sem comer, dos meses sem se contemplar no espelho, dos anos sem fazer a barba. No meio de tantas reminiscências, lembrou-se com saudade de um dicionário ilustrado muito antigo, impresso em papel bíblia, que tinha bonitas ilustrações coloridas de peixes oceânicos.
Colocou a mochila às costas, pegou o equipamento de alpinista e ajeitou o quepe na cabeça. Começou a cantarolar e a subir os degraus da escada metálica. Se sua memória merecesse alguma confiança, o dicionário estava daquele lado, numa prateleira bem acima das primeiras nuvens.
O nefelibata Nicolau nunca mais voltou.
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Notas sobre o autor:
Edu Mercer nasceu em 1973 e é redator publicitário em Curitiba — Paraná. Já escreveu, segundo suas próprias palavras, "dois pequenos livros (opúsculos): Fundo de Baú e O Quintal de Minha Casa é um Bar", que reúnem contos, crônicas e letras de música.
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Fonte:
http://www.releituras.com/
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