quarta-feira, 25 de junho de 2008

Sônia Bettencourt (Mar Vazio)

Prêmio Conto (Categoria Sênior) no Certame da Macaronésia de Jovens Artistas, Lanzarote, Canárias, 2005

À memória de todos os jovens que perderam a vida no mar
Há dois dias e duas noites que estive a olhar o mar. Sim, a olhar o mar através da janela da sala da minha casa. Não era uma casa muito grande, nem uma sala muito grande, mas tinha janelas largas, daquelas que deslizavam em vez de abrir ao meio. Através dela via uma praia onde o mar parecia querer abraçar-me. Às vezes estava manso e quieto, outras vezes sentia-se irado e batia violentamente contra as rochas.

Outro dia foi mesmo assim, a sua revolta era tão grande que as marés galgavam a orla costeira por completo. E o vento assobiava na janela como se fosse uma voz de alguém que já se fora. Para sempre. O irmão falecido: o olhar dele cheio de medo de morrer quando as forças lhe faltaram. Imaginava.

Mas uma semana depois, quando as casas se afundavam numa luz frágil, já o mar estava relaxado e adormecido como que a descansar da fúria dos dias anteriores. As gaivotas protegiam-no, ou não fossem os anjos das suas águas salgadas.

Naqueles dias de calmaria imaginava que um barco iria passar junto à janela e que alguém me levantaria a mão a acenar para me levar numa viagem, para longe; uma viagem que eu não queria fazer. Seria um daqueles barcos pequenos, pintados de branco com o rebordo de cor garrida e identificado por um nome de peixe ou de mulher.

Há dois dias e duas noites que estive a olhar o mar. Sim, a olhar o mar através da janela da sala da minha casa. Ainda nenhum barco passou e os que supostamente iriam passar jamais se lembrariam de olhar para a minha janela. Estariam ocupados a seguir o peixe pelo seu rumo certo. E naquele exato momento eu estaria fora de rumo. Pelo menos era este o meu desejo.

Ao tentar perceber o medo tão profundo de estar longe dali, o alvoroço no peito de me encontrar em todo o lado e em lado nenhum que não fosse aquela casa e aquela janela, decidi ficar dois dias e duas noites a olhar o mar. Sem tirar os olhos uma única vez.

No primeiro dia senti um orvalho gelado nas palmas das mãos. Fechei a janela sem nunca desistir do meu propósito. O meu corpo não vacilava, ou não tivesse eu vinte anos, contudo o meu espírito sentia-se fraco e perdido naquele vai e vem da ondulação.

Um grito na garganta nasceu-me no segundo dia. Queria ter a certeza que estava ali. Apetecia-me gritar de alegria ou de medo, não sei bem, como se tivesse acabado de ver o mar pela primeira vez. Abri a janela e no exato momento em que o grito se preparava para soltar, uma náusea tomou conta de mim tal verdadeira viagem de barco em alto mar.

Lembrei-me da infância, viva e fresca: A Luisa, a mais nova do grupo, que brincava com bicicletas usadas que o pai consertava na sua garagem de mecânico; o Bruno e o irmão Bernardo, que todos pensavam ser gêmeos verdadeiros, mas não eram; A Ritinha de olhos verde-azeitona que tinha bonecas sem conta, o Jorge, o herói de histórias de aventura que só ele conhecia e só ele protagonizava a qualquer hora e a qualquer momento e, por fim, o Miguel traquinas e irrequieto, que me perseguia por todo o lado, a imitar o zorro com uma espada em punho.

No Verão eram as brincadeiras na rua à macaquinha do chinês e os jogos do apanha e do esconde... Tudo passado naquela rua, defronte do mar. E quando os dias começavam a ficar pequenos e frios, juntávamo-nos umas vezes na garagem da Luisa, outras no sótão da Ritinha ou ali, naquela sala, a jogar às cartas e a brincar à janela, que ao contrário de todas as outras janelas não abria nem para os lados, nem para cima, simplesmente deslizava.

Se não fosse o vento a sacudir ao de leve a memória infantil, teria desmaiado, com certeza.

Olhei à volta a sala, a minha casa e sabia que tinha que partir. Estava cansado como se já tivesse feito mil viagens. Mas, a verdade, era que nem tinha feito a primeira, aquela que parecia ser a mais longa de todas e que doía como nenhuma outra. Sempre vivi sem pressa e sem ruído com os meus dias flexíveis fechados em livros de estudo e em brincadeiras com os vizinhos, amigos e companheiros de escola. Cheio de princípios e frases colhidas da Literatura e da Filosofia.

Depois a vida naquela casa, os pais e eu, passou a ser apenas um eco das coisas acontecidas; uma lembrança a recompor um tempo findo- por entre os cheiros do quarto de cama, do vestuário, dos lençóis; o desarrumo da secretária e do guarda-roupa; as prateleiras a abarrotar de Cds de música, livros escolares e jogos de computador; o pôster do Eminem... Os pesados cortinados de riscas coloridas cerrados sem deixar escapar uma lâmina de luz.

- Miguel!

Mas ninguém respondia. Nenhuma voz humana. Nenhuma presença de gente.

Ele continuava ali no retrato do canto. Sorridente e cheio de vida. Como na noite em que decidira brincar junto ao mar. De repente, do riso fizera-se o pranto, e o jogo entre amigos tornou aquela noite a mais longa das nossas vidas.

- Vem para aqui falar com a gente! – chamaram-me o Jorge, o Bruno, o Bernardo e a Luisa numa tentativa de me distrair e relaxar o vácuo que tinha no cérebro. A Ritinha de olhos verde-azeitona, não estava presente, pois já não morava naquela cidade, tão pouco naquele bairro. Mas mesmo assim não deixou de prestar os seus pêsames e condolências.

Deixei a janela e fui para junto deles. Sentei-me no sofá da sala, mas os meus olhos estavam pregados àquela vidraça onde o vento assobiava com uma força estranha.

Lembrei-me que àquela hora havia um resto de noite e uma neblina junto ao rés-do-mar. A cidade, ainda mal acordada, começava a lavar-se, a vestir-se e a aquecer o café da manhã com os olhos pregados no relógio. E eu ali, no sofá da sala com o dia suspenso, sem vontade de querer e de saber aonde me levava o rasgar das horas.

Entretanto adormeci. Mas por pouco tempo. Umas vozes distantes a flutuar pela sala fizeram-me abrir os olhos fatigados.

- O mar castiga!- exclamou a minha mãe a olhar através da janela com uma voz que parecia ter vindo do outro lado do abismo.

- Vamos sair daqui, Nuno.- informava o meu pai.- Temos que ir viver para outro lado.

Para aonde?, pensei eu. Para onde não há mar e as crianças não brincam, e as árvores são de cimento, e os homens são mortos em vez de morrerem?

Fez-se um diálogo de surdos. A voz dos meus pais vinha do outro lado do tempo numa língua diferente carregada de dor.

O medo de partir colocou-me à janela da sala durante muitos dias. Os momentos de alegria cada vez mais no fundo do tempo, espiando-me. Já não era só os meus dias que estavam suspensos, era todo o meu futuro.

O automóvel buzinou impaciente pela segunda vez. Vesti o casaco e peguei nas duas malas de viagem caminhando com cerimônia até à porta de saída.

Antes de sair pousei as malas e voltei atrás. Abri a janela deslizando-a devagarinho. Quase chorei de alegria quando um ruído distante de um barco a passar me fez levantar a mão e acenar num gesto lento.

Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/marvazio.htm

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