quarta-feira, 25 de junho de 2008

Ibn Ammar (1031 – 1084)

A vida de Abú Bakr Mubammad ibn 'Ammar, nascido em Sannabus (possivelmente Estômbar), perto de Silves, em 1031 e morto em 1084, parece arrancada a um drama shakesperiano, feita, como é, de aventura, grandeza e tragédia. Foi certamente um ser excepcional, nele coexistindo uma invulgar inteligência e uma ambição enorme servida por fria determinação. Uma infância e juventude pobres e a consciência do seu valor intelectual e artístico explicarão talvez o arrivismo que dominará toda a sua existência. Filho de um verdugo, parte como al-Mutanabbi, aventureiro e vagabundo, à conquista do sucesso confiado no seu talento. Discípulo do grande gramático al-A'lam, estuda em Córdova e Silves. Mais tarde torna-se amigo dileto de al-Mu'tamid que, ascendendo ao trono de Sevilha, o nomeia, entre outros cargos, governador de Silves. Antes disso, conta-se que certa vez Ibn 'Ammãr procurara fugir da presença do amigo, pois em sonhos havia-lhe sido revelado que viria a ser morto por ele. lbn 'Amniãr segue urna trajetória política meteórica, revelando dotes de guerreiro valente e diplomata não inferiores aos de poeta. O demônio da ambição é, porém, mais forte que a amizade que, por certo, sempre conservou por al-Mu'tamid, levando-o à conspiração e à revolta visando obter para si um trono. Tais fatos, aliados às intrigas dos seus inimigos, viriam a perdê-lo. Sendo entregue a al-Mu'tamid, este, inclinado a perdoar- lhe, acabaria por dar-lhe a morte por suas próprias mãos, num acesso de cólera, julgando-se traído, urna vez mais.

A vida dos dois grandes poetas foi indissoluvelmente ligada no drama. Para além de ter sido muito tratada por todos os especialistas, foi objeto de duas crônicas romanceadas, Os Luso-Árabes, de Oliveira Parreira, e Ben Ammar de Sevilla, de C. Sánchez-Albornoz, e de uma peça de teatro, Mutamid, el último Rey de Sevilla, de Blás Infante.

A sua poesia é de uma elegância requintada, fruto de um superior domínio da língua, e o brilho da imagística sobrepõe-se, de fato, a um acento pessoal que quase só se manifesta como expressão de orgulho, forma de afirmação de qualidades auto-atribuídas.

lbn 'Ammãr foi poeta multímodo que cultivou, a par das formas clássicas, a muwassahat e o zajal, ao serviço dos gêneros lírico, ditirâmbico ou satírico. Excelentes poetas, como lbn Sahi de Sevilha, foram influenciados pela sua obra, e dele disse al-Marrãkusi que foi "um dos gloriosos poetas que seguiram as pisadas de Ibn Hani al-Andalusi".

A AL-MU'TAMID (I)

Nada me move, meu príncipe,
Senão a tua vontade.
Contigo vou,
Como o viajante noturno
Guiado pelo clarão dos relâmpagos.
Queres voltar Para a tua amada?
Vai num rápido veleiro
E seguirei no teu encalço,
Ou salta antes para a sela,
Contigo irei também.
E quando,
Graças à proteção divina,
Chegarmos aos umbrais do teu palácio
Permite que torne sozinho à minha casa.
Não percas tempo a sacar a espada!
Lança-te aos pés da que tem a cintura delicada
E compensa-a do tempo perdido.,
Beija-a e aperta-a contra o peito.
E murmurem vossas bocas
Meigas e doces palavras,
Como os pássaros se respondem mutuamente
Em suaves cantos ao romper da alva.

*****

A LEITURA

Minha pupila liberta
Quem da página é cativo:
O branco, da margem certa
E da palavra, o negro vivo.
A AMADA

Ela é uma frágil gazela:
Olhares de narciso
Acenos de açucena
Sorriso de margarida.

E se seus brincos se agitam
Quedam-se os braceletes na escuta
Da música do requebro da cintura.
********

BOM É que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.
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MAÇÃS E PERAS

Aceitai,
Como rostos amáveis que se vos mostrassem
Ou tímidos seios palpitando vossas mãos
Estas maçãs: Pérolas entre nós espalhadas
Como botões em seu ramo postos.
Tomai-as e ofertai-as aos presentes
Como vinho preso de surpresa
Pelo gelo do inverno.
Eis também peras para duplicar a minha dádiva,
E apenas se me oferece dizer:
São tão-somente brancas faces
Onde pousaram profundos olhos negros.

*****
A ALCACHOFRA

Filha das águas e da terra
Para quem lhe almeja os dons
É corpo numa veste de recusa.
E na sua beleza obstinada
Bem no cimo lá da haste
lembra uma jovem cristã
Que cota de espinhos usa.

*****
Minha alma quer-te, ainda que em tortura,
E sigo-te alegre na ânsia de procura.
Que estranho, ser defesa a nossa ligação,
Se os desejos ambos concordaram!
Que quereria mais o coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Como desejo que quem tem poder
Sobre ti em nosso encontro não esteja!
Só assim a minha sede vai beber
Em doce fonte se teus lábios beija.

*****
A AL-MU'TAMID (II)

Quantas noites passadas lá no açude
Sinuosas deslizavam as correntes do rio
Como manchadas serpentes.
As correntes murmuravam junto a nós
Ao passar, qual gente ciumenta,
A querer magoar-nos à força da calúnia.
Mas no recanto escolhido
Era o jardim que vinha visitar-nos
Enviando seus presentes
Nas perfumadas mãos da brisa.

*****
Eis nuvens...
Que espessas são!
Parecem formadas,
Deste lado do azul do céu,
Do fumo que ao arder,
Madeira verde lhes deu.

Vem chuva fina,
Palha de prata
A polvilhar terra ambarina.
Mas se um instante
O Sol fica a brilhar
É como escrava provocante
Que se mostra quem a vai comprar.

*****
A SANNABUS

Sannabus!
Chora aqueles que são meus
Com um choro tão abundante
Como o rio que te atravessa
Em furiosa torrente.

*
Não será por mim
Mas por quem vertem
Então as nuvens suas lágrimas?
Não será por mim?
Mas por quem gemem
Então tristemente as pombas?

*
Sou Ibn Ammar: a minha glória
Não há quem a possa ignorar
A não ser tolos, dos quais não reza a história,
E que nem astros conseguem enxergar.

Se o meu Tempo me despreza
Não é isso motivo para espanto
Notas em livros é o que mais se preza
E nas margens se escrevem, no entanto.

*
Mais uma rodada, copeiro,
Que já se ergue a aragem da manhã
E a estrela de alva
Desviou a rota da noite viajeira.
A alvorada trouxe-nos brancura de cânfora
Assim que a noite reclamou seu negro âmbar

O jardim parece uma donzela vestida com a túnica
Bordada a flores e adornada com pérolas de orvalho
Ou então, jovem ruborizado de pudor
De rosas, alentado com a sombra do mirto.

E esse jardim,
Onde o rio lembra branca mão
Pousada sobre um tecido verde,
Mostra-se agitado pela brisa:
Dir-se-ia, meu rei,
A tua espada desbaratando exércitos.
Meu Senhor!
Verde brilhante são os favores da tua mão
Quando os céus se turvam de cinzento.
Teu dom é sempre generoso:
Se virgens dás têm seios opulentos
Se cavalos são de nobre raça
Se alfanges têm pedras preciosas.
Meu Rei!
Quando os demais reis se dessedentam
Esperam que ergas primeiro a tua taça.
És mais refrescante para os corações
Que o orvalho que se vai formando gota a gota
E mais agradável para os olhos
Que o doce peso do sono.
Faz faiscar a chispa da tua glória
Que não deixa nunca o fragor da lide
Senão para se abeirar do lume
Que mandaste acender para os teus hóspedes.
Rei,
Esplêndido no talhe e no espírito,
Como o jardim, belo de perto ou à distância.
Quando a teu lado me é servido
O rio celestial que mana do teu ser
É bem certo que estou no Paraíso.

Fizeste pender da tua lança
As cabeças dos reis teus inimigos
Só porque o ramo agrada
Na impaciência da flor?

Tingiste a tua cota com sangue de heróis
Só porque a formosa se enfeita de vermelho?
A espada, se a tua mão lhe serve de tribuna,
Dá lugar a súplicas mais eloqüentes
Que as do melhor dos oradores quando prega.
Este poema é para ti,
Como um jardim que a brisa visitou
Sobre o qual repousou o orvalho da noite
Até que o ataviou de flores.
Do teu nome fiz-lhe uma veste de ouro.
Com o teu louvor derramei o melhor almíscar.
Quem me suplantará? Se o teu apoio é sândalo
Eu o queimei no fogo do meu gênio
Quando as brasas estavam ainda a arder.
O orgulho no amor - temei-o - é a sua vergonha
Mas o prazer - aproveitai-o - é o seu ardor.
Não peças à paixão que te dê domínio
Prefere ser escravo, nas suas mãos é que tu és livre!
Vós me dissesses: O amor prejudicou-te.
Eu respondi: Quem dera me tivesse feito mal
É que meu coração escolheu doença para o corpo
Como forma própria de o adornar.
Deixai-o, pois, fazer a sua escolha
E não me critiqueis por estar emagrecido:
Não está a excelência de uma adaga
Precisamente na finura do seu gume?
Troçastes porque me deixou minha amada?
Quanto fim do mês oculta o crescente que vai vir!
Julgais que o fogo do esquecimento me consolará
Ou que um profundo sono chegará depois?
Mas ó coração, guerreiro da dor, se não sofresses mais
Como te acudiria o socorro das lágrimas?

Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/al_mutamid.htm

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