A vida de Abú Bakr Mubammad ibn 'Ammar, nascido em Sannabus (possivelmente Estômbar), perto de Silves, em 1031 e morto em 1084, parece arrancada a um drama shakesperiano, feita, como é, de aventura, grandeza e tragédia. Foi certamente um ser excepcional, nele coexistindo uma invulgar inteligência e uma ambição enorme servida por fria determinação. Uma infância e juventude pobres e a consciência do seu valor intelectual e artístico explicarão talvez o arrivismo que dominará toda a sua existência. Filho de um verdugo, parte como al-Mutanabbi, aventureiro e vagabundo, à conquista do sucesso confiado no seu talento. Discípulo do grande gramático al-A'lam, estuda em Córdova e Silves. Mais tarde torna-se amigo dileto de al-Mu'tamid que, ascendendo ao trono de Sevilha, o nomeia, entre outros cargos, governador de Silves. Antes disso, conta-se que certa vez Ibn 'Ammãr procurara fugir da presença do amigo, pois em sonhos havia-lhe sido revelado que viria a ser morto por ele. lbn 'Amniãr segue urna trajetória política meteórica, revelando dotes de guerreiro valente e diplomata não inferiores aos de poeta. O demônio da ambição é, porém, mais forte que a amizade que, por certo, sempre conservou por al-Mu'tamid, levando-o à conspiração e à revolta visando obter para si um trono. Tais fatos, aliados às intrigas dos seus inimigos, viriam a perdê-lo. Sendo entregue a al-Mu'tamid, este, inclinado a perdoar- lhe, acabaria por dar-lhe a morte por suas próprias mãos, num acesso de cólera, julgando-se traído, urna vez mais.A vida dos dois grandes poetas foi indissoluvelmente ligada no drama. Para além de ter sido muito tratada por todos os especialistas, foi objeto de duas crônicas romanceadas, Os Luso-Árabes, de Oliveira Parreira, e Ben Ammar de Sevilla, de C. Sánchez-Albornoz, e de uma peça de teatro, Mutamid, el último Rey de Sevilla, de Blás Infante.
A sua poesia é de uma elegância requintada, fruto de um superior domínio da língua, e o brilho da imagística sobrepõe-se, de fato, a um acento pessoal que quase só se manifesta como expressão de orgulho, forma de afirmação de qualidades auto-atribuídas.
lbn 'Ammãr foi poeta multímodo que cultivou, a par das formas clássicas, a muwassahat e o zajal, ao serviço dos gêneros lírico, ditirâmbico ou satírico. Excelentes poetas, como lbn Sahi de Sevilha, foram influenciados pela sua obra, e dele disse al-Marrãkusi que foi "um dos gloriosos poetas que seguiram as pisadas de Ibn Hani al-Andalusi".
A AL-MU'TAMID (I)
Nada me move, meu príncipe,
Senão a tua vontade.
Contigo vou,
Como o viajante noturno
Guiado pelo clarão dos relâmpagos.
Queres voltar Para a tua amada?
Vai num rápido veleiro
E seguirei no teu encalço,
Ou salta antes para a sela,
Contigo irei também.
E quando,
Graças à proteção divina,
Chegarmos aos umbrais do teu palácio
Permite que torne sozinho à minha casa.
Não percas tempo a sacar a espada!
Lança-te aos pés da que tem a cintura delicada
E compensa-a do tempo perdido.,
Beija-a e aperta-a contra o peito.
E murmurem vossas bocas
Meigas e doces palavras,
Como os pássaros se respondem mutuamente
Em suaves cantos ao romper da alva.
*****
A LEITURA
Minha pupila liberta
Quem da página é cativo:
O branco, da margem certa
E da palavra, o negro vivo.
A AMADA
Ela é uma frágil gazela:
Olhares de narciso
Acenos de açucena
Sorriso de margarida.
E se seus brincos se agitam
Quedam-se os braceletes na escuta
Da música do requebro da cintura.
********
BOM É que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.
=====
Ela é uma frágil gazela:
Olhares de narciso
Acenos de açucena
Sorriso de margarida.
E se seus brincos se agitam
Quedam-se os braceletes na escuta
Da música do requebro da cintura.
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BOM É que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.
=====
MAÇÃS E PERAS
Aceitai,
Como rostos amáveis que se vos mostrassem
Ou tímidos seios palpitando vossas mãos
Estas maçãs: Pérolas entre nós espalhadas
Como botões em seu ramo postos.
Tomai-as e ofertai-as aos presentes
Como vinho preso de surpresa
Pelo gelo do inverno.
Eis também peras para duplicar a minha dádiva,
E apenas se me oferece dizer:
São tão-somente brancas faces
Onde pousaram profundos olhos negros.
*****
A ALCACHOFRA
Filha das águas e da terra
Para quem lhe almeja os dons
É corpo numa veste de recusa.
E na sua beleza obstinada
Bem no cimo lá da haste
lembra uma jovem cristã
Que cota de espinhos usa.
*****
Minha alma quer-te, ainda que em tortura,
E sigo-te alegre na ânsia de procura.
Que estranho, ser defesa a nossa ligação,
Se os desejos ambos concordaram!
Que quereria mais o coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Como desejo que quem tem poder
Sobre ti em nosso encontro não esteja!
Só assim a minha sede vai beber
Em doce fonte se teus lábios beija.
*****
A AL-MU'TAMID (II)
Quantas noites passadas lá no açude
Sinuosas deslizavam as correntes do rio
Como manchadas serpentes.
As correntes murmuravam junto a nós
Ao passar, qual gente ciumenta,
A querer magoar-nos à força da calúnia.
Mas no recanto escolhido
Era o jardim que vinha visitar-nos
Enviando seus presentes
Nas perfumadas mãos da brisa.
*****
Eis nuvens...
Que espessas são!
Parecem formadas,
Deste lado do azul do céu,
Do fumo que ao arder,
Madeira verde lhes deu.
Vem chuva fina,
Palha de prata
A polvilhar terra ambarina.
Mas se um instante
O Sol fica a brilhar
É como escrava provocante
Que se mostra quem a vai comprar.
*****
A SANNABUS
Sannabus!
Chora aqueles que são meus
Com um choro tão abundante
Como o rio que te atravessa
Em furiosa torrente.
*
Não será por mim
Mas por quem vertem
Então as nuvens suas lágrimas?
Não será por mim?
Mas por quem gemem
Então tristemente as pombas?
*
Sou Ibn Ammar: a minha glória
Não há quem a possa ignorar
A não ser tolos, dos quais não reza a história,
E que nem astros conseguem enxergar.
Se o meu Tempo me despreza
Não é isso motivo para espanto
Notas em livros é o que mais se preza
E nas margens se escrevem, no entanto.
*
Mais uma rodada, copeiro,
Que já se ergue a aragem da manhã
E a estrela de alva
Desviou a rota da noite viajeira.
A alvorada trouxe-nos brancura de cânfora
Assim que a noite reclamou seu negro âmbar
O jardim parece uma donzela vestida com a túnica
Bordada a flores e adornada com pérolas de orvalho
Ou então, jovem ruborizado de pudor
De rosas, alentado com a sombra do mirto.
E esse jardim,
Onde o rio lembra branca mão
Pousada sobre um tecido verde,
Mostra-se agitado pela brisa:
Dir-se-ia, meu rei,
A tua espada desbaratando exércitos.
Meu Senhor!
Verde brilhante são os favores da tua mão
Quando os céus se turvam de cinzento.
Teu dom é sempre generoso:
Se virgens dás têm seios opulentos
Se cavalos são de nobre raça
Se alfanges têm pedras preciosas.
Meu Rei!
Quando os demais reis se dessedentam
Esperam que ergas primeiro a tua taça.
És mais refrescante para os corações
Que o orvalho que se vai formando gota a gota
E mais agradável para os olhos
Que o doce peso do sono.
Faz faiscar a chispa da tua glória
Que não deixa nunca o fragor da lide
Senão para se abeirar do lume
Que mandaste acender para os teus hóspedes.
Rei,
Esplêndido no talhe e no espírito,
Como o jardim, belo de perto ou à distância.
Quando a teu lado me é servido
O rio celestial que mana do teu ser
É bem certo que estou no Paraíso.
Fizeste pender da tua lança
As cabeças dos reis teus inimigos
Só porque o ramo agrada
Na impaciência da flor?
Tingiste a tua cota com sangue de heróis
Só porque a formosa se enfeita de vermelho?
A espada, se a tua mão lhe serve de tribuna,
Dá lugar a súplicas mais eloqüentes
Que as do melhor dos oradores quando prega.
Este poema é para ti,
Como um jardim que a brisa visitou
Sobre o qual repousou o orvalho da noite
Até que o ataviou de flores.
Do teu nome fiz-lhe uma veste de ouro.
Com o teu louvor derramei o melhor almíscar.
Quem me suplantará? Se o teu apoio é sândalo
Eu o queimei no fogo do meu gênio
Quando as brasas estavam ainda a arder.
O orgulho no amor - temei-o - é a sua vergonha
Mas o prazer - aproveitai-o - é o seu ardor.
Não peças à paixão que te dê domínio
Prefere ser escravo, nas suas mãos é que tu és livre!
Vós me dissesses: O amor prejudicou-te.
Eu respondi: Quem dera me tivesse feito mal
É que meu coração escolheu doença para o corpo
Como forma própria de o adornar.
Deixai-o, pois, fazer a sua escolha
E não me critiqueis por estar emagrecido:
Não está a excelência de uma adaga
Precisamente na finura do seu gume?
Troçastes porque me deixou minha amada?
Quanto fim do mês oculta o crescente que vai vir!
Julgais que o fogo do esquecimento me consolará
Ou que um profundo sono chegará depois?
Mas ó coração, guerreiro da dor, se não sofresses mais
Como te acudiria o socorro das lágrimas?
Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/al_mutamid.htm
Aceitai,
Como rostos amáveis que se vos mostrassem
Ou tímidos seios palpitando vossas mãos
Estas maçãs: Pérolas entre nós espalhadas
Como botões em seu ramo postos.
Tomai-as e ofertai-as aos presentes
Como vinho preso de surpresa
Pelo gelo do inverno.
Eis também peras para duplicar a minha dádiva,
E apenas se me oferece dizer:
São tão-somente brancas faces
Onde pousaram profundos olhos negros.
*****
A ALCACHOFRA
Filha das águas e da terra
Para quem lhe almeja os dons
É corpo numa veste de recusa.
E na sua beleza obstinada
Bem no cimo lá da haste
lembra uma jovem cristã
Que cota de espinhos usa.
*****
Minha alma quer-te, ainda que em tortura,
E sigo-te alegre na ânsia de procura.
Que estranho, ser defesa a nossa ligação,
Se os desejos ambos concordaram!
Que quereria mais o coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Como desejo que quem tem poder
Sobre ti em nosso encontro não esteja!
Só assim a minha sede vai beber
Em doce fonte se teus lábios beija.
*****
A AL-MU'TAMID (II)
Quantas noites passadas lá no açude
Sinuosas deslizavam as correntes do rio
Como manchadas serpentes.
As correntes murmuravam junto a nós
Ao passar, qual gente ciumenta,
A querer magoar-nos à força da calúnia.
Mas no recanto escolhido
Era o jardim que vinha visitar-nos
Enviando seus presentes
Nas perfumadas mãos da brisa.
*****
Eis nuvens...
Que espessas são!
Parecem formadas,
Deste lado do azul do céu,
Do fumo que ao arder,
Madeira verde lhes deu.
Vem chuva fina,
Palha de prata
A polvilhar terra ambarina.
Mas se um instante
O Sol fica a brilhar
É como escrava provocante
Que se mostra quem a vai comprar.
*****
A SANNABUS
Sannabus!
Chora aqueles que são meus
Com um choro tão abundante
Como o rio que te atravessa
Em furiosa torrente.
*
Não será por mim
Mas por quem vertem
Então as nuvens suas lágrimas?
Não será por mim?
Mas por quem gemem
Então tristemente as pombas?
*
Sou Ibn Ammar: a minha glória
Não há quem a possa ignorar
A não ser tolos, dos quais não reza a história,
E que nem astros conseguem enxergar.
Se o meu Tempo me despreza
Não é isso motivo para espanto
Notas em livros é o que mais se preza
E nas margens se escrevem, no entanto.
*
Mais uma rodada, copeiro,
Que já se ergue a aragem da manhã
E a estrela de alva
Desviou a rota da noite viajeira.
A alvorada trouxe-nos brancura de cânfora
Assim que a noite reclamou seu negro âmbar
O jardim parece uma donzela vestida com a túnica
Bordada a flores e adornada com pérolas de orvalho
Ou então, jovem ruborizado de pudor
De rosas, alentado com a sombra do mirto.
E esse jardim,
Onde o rio lembra branca mão
Pousada sobre um tecido verde,
Mostra-se agitado pela brisa:
Dir-se-ia, meu rei,
A tua espada desbaratando exércitos.
Meu Senhor!
Verde brilhante são os favores da tua mão
Quando os céus se turvam de cinzento.
Teu dom é sempre generoso:
Se virgens dás têm seios opulentos
Se cavalos são de nobre raça
Se alfanges têm pedras preciosas.
Meu Rei!
Quando os demais reis se dessedentam
Esperam que ergas primeiro a tua taça.
És mais refrescante para os corações
Que o orvalho que se vai formando gota a gota
E mais agradável para os olhos
Que o doce peso do sono.
Faz faiscar a chispa da tua glória
Que não deixa nunca o fragor da lide
Senão para se abeirar do lume
Que mandaste acender para os teus hóspedes.
Rei,
Esplêndido no talhe e no espírito,
Como o jardim, belo de perto ou à distância.
Quando a teu lado me é servido
O rio celestial que mana do teu ser
É bem certo que estou no Paraíso.
Fizeste pender da tua lança
As cabeças dos reis teus inimigos
Só porque o ramo agrada
Na impaciência da flor?
Tingiste a tua cota com sangue de heróis
Só porque a formosa se enfeita de vermelho?
A espada, se a tua mão lhe serve de tribuna,
Dá lugar a súplicas mais eloqüentes
Que as do melhor dos oradores quando prega.
Este poema é para ti,
Como um jardim que a brisa visitou
Sobre o qual repousou o orvalho da noite
Até que o ataviou de flores.
Do teu nome fiz-lhe uma veste de ouro.
Com o teu louvor derramei o melhor almíscar.
Quem me suplantará? Se o teu apoio é sândalo
Eu o queimei no fogo do meu gênio
Quando as brasas estavam ainda a arder.
O orgulho no amor - temei-o - é a sua vergonha
Mas o prazer - aproveitai-o - é o seu ardor.
Não peças à paixão que te dê domínio
Prefere ser escravo, nas suas mãos é que tu és livre!
Vós me dissesses: O amor prejudicou-te.
Eu respondi: Quem dera me tivesse feito mal
É que meu coração escolheu doença para o corpo
Como forma própria de o adornar.
Deixai-o, pois, fazer a sua escolha
E não me critiqueis por estar emagrecido:
Não está a excelência de uma adaga
Precisamente na finura do seu gume?
Troçastes porque me deixou minha amada?
Quanto fim do mês oculta o crescente que vai vir!
Julgais que o fogo do esquecimento me consolará
Ou que um profundo sono chegará depois?
Mas ó coração, guerreiro da dor, se não sofresses mais
Como te acudiria o socorro das lágrimas?
Fonte:
http://escritas.paginas.sapo.pt/al_mutamid.htm
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