Estava tomando minha oitava cerveja, mas já estava bêbado desde a segunda. Beber com o estômago vazio faz mal, e eu sei, mas não tenho fome. Tenho sede, e de cerveja. Ainda mais depois que Ana me trocou por um sujeito que usa sapatos marrom-claros e gel no topete. Perdi completamente o apetite e o controle.
Larissa falava sem parar sobre como sua mãe era má, e seu namorado era um grosso, e seu emprego era uma porcaria, e sobre como era incompreendida, sofrida e maltratada.
Foi quando um estrondo lá fora emudeceu todo o bar — inclusive o Iggy Pop, que cantarolava na JukeBox.
Eu estava de costas para a porta, e num primeiro momento acreditei que alguém houvesse caído um tombo. Todos os dias os bêbados e os adolescentes bebem e lá pelas tantas caem tombos.
Só que não era um bêbado, nem era um tombo.
Alguma coisa havia despencado de algum apartamento, do prédio onde, no térreo, funcionava o bar. Só não alcançou o chão porque foi freado pelo telhado de lona, que cobria a porta de entrada do estabelecimento.
Ninguém estava sentado lá fora por causa da chuva. E demorou alguns segundos até que alguém resolvesse levantar e ir conferir o que, de fato, estava acontecendo. Mas bastou um se movimentar, após aquele compelido silêncio, para que todos se acotovelassem até a porta, desesperadamente curiosos.
— Que medo, meu! O que deve ser aquilo? — perguntava, aflita, Larissa, enquanto agarrava-se ao meu braço como se eu — logo eu — pudesse lhe proteger de alguma coisa.
— Devem ter jogado alguma coisa pela janela. Um sofá, talvez — respondi, sem prestar muita atenção no que estava falando.
— Porque alguém atiraria um sofá pela janela?
— Nunca se sabe.
Então alguém gritou:
— É uma mulher!
Uma mulher?
Levantamos alvoroçados. Por mais que atirar sofás pela janela não seja exatamente comum, por essa ninguém esperava: uma garota, com cerca de 20 e poucos anos, era retirada do toldo, agora parcialmente destruído.
— Ela está viva?
— Acho que sim, o toldo amorteceu a queda.
Abriram passagem, e o garçom já telefonava para a ambulância quando a infeliz recobrou os sentidos:
— O que...?
Todo mundo parou em pé a sua volta, calados, esperando.
Ela olhou para os lados, e finalmente pareceu entender o que havia acontecido:
— Com certeza eu não morri e isto aqui não é o céu, certo?
— Pode ter certeza que não — respondeu alguém.
— Merda — ela socou o chão sem muita força — Tentar se matar e não conseguir é o auge do fracasso.
Ninguém disse nada porque ninguém sabia o que dizer.
A ambulância estacionou espalhafatosa, e a moça levantou, aparentemente inteira:
— Mandem a ambulância de volta — falou, desagradada — Estou mais viva do que quando saltei.
O garçom explicou a situação para os médicos que, desconfiados, foram embora.
A garota, cujo nome nunca soube, caminhou até o balcão e pediu um conhaque: “Para a posteridade”, disse alto e sarcasticamente, já parecendo embriagada.
Talvez já estivesse.
Aos poucos, as pessoas foram voltando aos seus lugares, e não demorou para a JukeBox voltar a tocar. Voltei a pensar em Ana e Larissa voltou a resmungar. O garçom voltou a servir as mesas, e os bêbados voltaram a encher os copos.
Alguns minutos depois, parecia que nada havia acontecido.
Como se nenhuma garota de vinte e poucos anos tivesse tentado se matar, feliz ou infelizmente sem sucesso.
Como se esta garota não estivesse agora mesmo sentada ali, há poucos metros, furiosa pelo suicídio frustrado e certamente por todas as frustrações da vida de alguém com vinte e poucos anos.
Como se ela não estivesse com o copo de conhaque intocado na sua frente, há tempos observando seu fundo, como se quisesse ali se afogar.
Talvez não estivesse.
Nunca se sabe.
====================
Sobre a Autora
Janaína Lauxen (1985) é natural de Passo Fundo (RS). Participou de diversas antologias e, em 2009, lança seu primeiro livro, "Uma carta por Benjamin", pela editora Multifoco.
Larissa falava sem parar sobre como sua mãe era má, e seu namorado era um grosso, e seu emprego era uma porcaria, e sobre como era incompreendida, sofrida e maltratada.
Foi quando um estrondo lá fora emudeceu todo o bar — inclusive o Iggy Pop, que cantarolava na JukeBox.
Eu estava de costas para a porta, e num primeiro momento acreditei que alguém houvesse caído um tombo. Todos os dias os bêbados e os adolescentes bebem e lá pelas tantas caem tombos.
Só que não era um bêbado, nem era um tombo.
Alguma coisa havia despencado de algum apartamento, do prédio onde, no térreo, funcionava o bar. Só não alcançou o chão porque foi freado pelo telhado de lona, que cobria a porta de entrada do estabelecimento.
Ninguém estava sentado lá fora por causa da chuva. E demorou alguns segundos até que alguém resolvesse levantar e ir conferir o que, de fato, estava acontecendo. Mas bastou um se movimentar, após aquele compelido silêncio, para que todos se acotovelassem até a porta, desesperadamente curiosos.
— Que medo, meu! O que deve ser aquilo? — perguntava, aflita, Larissa, enquanto agarrava-se ao meu braço como se eu — logo eu — pudesse lhe proteger de alguma coisa.
— Devem ter jogado alguma coisa pela janela. Um sofá, talvez — respondi, sem prestar muita atenção no que estava falando.
— Porque alguém atiraria um sofá pela janela?
— Nunca se sabe.
Então alguém gritou:
— É uma mulher!
Uma mulher?
Levantamos alvoroçados. Por mais que atirar sofás pela janela não seja exatamente comum, por essa ninguém esperava: uma garota, com cerca de 20 e poucos anos, era retirada do toldo, agora parcialmente destruído.
— Ela está viva?
— Acho que sim, o toldo amorteceu a queda.
Abriram passagem, e o garçom já telefonava para a ambulância quando a infeliz recobrou os sentidos:
— O que...?
Todo mundo parou em pé a sua volta, calados, esperando.
Ela olhou para os lados, e finalmente pareceu entender o que havia acontecido:
— Com certeza eu não morri e isto aqui não é o céu, certo?
— Pode ter certeza que não — respondeu alguém.
— Merda — ela socou o chão sem muita força — Tentar se matar e não conseguir é o auge do fracasso.
Ninguém disse nada porque ninguém sabia o que dizer.
A ambulância estacionou espalhafatosa, e a moça levantou, aparentemente inteira:
— Mandem a ambulância de volta — falou, desagradada — Estou mais viva do que quando saltei.
O garçom explicou a situação para os médicos que, desconfiados, foram embora.
A garota, cujo nome nunca soube, caminhou até o balcão e pediu um conhaque: “Para a posteridade”, disse alto e sarcasticamente, já parecendo embriagada.
Talvez já estivesse.
Aos poucos, as pessoas foram voltando aos seus lugares, e não demorou para a JukeBox voltar a tocar. Voltei a pensar em Ana e Larissa voltou a resmungar. O garçom voltou a servir as mesas, e os bêbados voltaram a encher os copos.
Alguns minutos depois, parecia que nada havia acontecido.
Como se nenhuma garota de vinte e poucos anos tivesse tentado se matar, feliz ou infelizmente sem sucesso.
Como se esta garota não estivesse agora mesmo sentada ali, há poucos metros, furiosa pelo suicídio frustrado e certamente por todas as frustrações da vida de alguém com vinte e poucos anos.
Como se ela não estivesse com o copo de conhaque intocado na sua frente, há tempos observando seu fundo, como se quisesse ali se afogar.
Talvez não estivesse.
Nunca se sabe.
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Sobre a Autora
Janaína Lauxen (1985) é natural de Passo Fundo (RS). Participou de diversas antologias e, em 2009, lança seu primeiro livro, "Uma carta por Benjamin", pela editora Multifoco.
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