(Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, 2 vols., 1852-1853.)
Fazei de conta que vos achais agora comigo no aprazível terraço do Passeio Público do Rio de Janeiro.
O dia foi calmoso. Em compensação, porém, a tarde é bela e fresca. O sol derrama sobre a terra seus últimos raios. Anuncia-se a hora do crepúsculo. A viração festeja docemente as verdes folhas das árvores que sussurram com um leve ruído.
Imaginai tudo isso. Embalar-vos-ei com uma ficção que já tem sido e será mil vezes uma verdade.
Sentemo-nos nestes bancos de mármore e de azulejos. Voltemos as costas para o mar. O espetáculo dessa natureza opulenta, grandiosa, sublime, absorver-nos-ia em uma contemplação insaciável. Cerremos por algum tempo os olhos à majestade das obras de Deus. A hora do crepúsculo é suave, melancólica e propícia aos sonhos do futuro e às recordações do passado.
Deixemos o futuro a Deus no céu e aos poetas na terra.
Lembremos antes o passado, e, ligados pelo mesmo pensamento, vamos buscar no último quartel do século décimo oitavo o princípio da história deste jardim público.
Suponhamos ainda e finalmente que por unanimidade de votos me escolhestes para vosso orador: foi uma eleição inteiramente livre, sem cabala, sem fósforos, sem intervenção da polícia, sem duplicatas, sem anulações de votos fatais, um verdadeiro milagre constitucional. Tenho consciência da pureza do meu mandato.
Falo em nome de todos vós.
O célebre Luís de Vasconcelos e Sousa, que no dia 5 de abril de 1779 substituíra o marquês de Lavradio no governo do Brasil, via com a mais profunda mágoa começar o seu vice-reinado debaixo de maus auspícios.
Moço ainda e, portanto, ainda sem aquele prestígio de uma longa experiência que se assinala nas rugas da fronte e nos cabelos grisalhos, que aliás nem sempre são companheiros da sabedoria e da prudência, viera suceder a um administrador provecto, hábil e feliz, que deixava o seu nome recomendado à memória do povo pelos serviços que prestara à agricultura, pela proteção que dera às letras nascentes no Rio de Janeiro, e pelos cuidados com que se empenhara em prover às despesas, à polícia e ao desenvolvimento e asseio da cidade capital da grande colônia portuguesa da América.
A lembrança do marquês de Lavradio fazia já não pouco difícil a posição do novo vice-rei, e ainda como para torná-la mais embaraçada, sobrevieram logo dois lamentáveis sucessos, uma calamidade e um flagelo inesperados, que encheram de desgosto a população.
Alguns meses apenas tinham passado da chegada de Luís de Vasconcelos ao Rio de Janeiro, quando, em conseqüência de chuvas aturadas e violentas, romperam-se aquedutos das fontes públicas, deixando os habitantes da cidade em luta com a carestia d’água, que somente de longe se podia trazer.
Então o pretinho que passava pela rua gritando - Ii! - fazia pagar por um preço relativamente fabuloso o pote d’água que levava à cabeça, e isso era um tormento para os pobres e um motivo de lamentações para os ricos. Se não compreendeis bem a significação desse grito dos vendedores d’água, que ainda se ouvia no Rio de janeiro em uma época muito recente, eu vô-lo explico. Logo depois da fundação da cidade de São Sebastião, eram os índios ou gentios que vendiam água aos colonos e a anunciavam na sua língua, bradando: - Ig! Ig! - palavra que foi corrompida mais tarde pelos africanos escravos.
Mas, ainda pior do que a ruína dos aquedutos, aconteceu imediatamente que se desenvolvesse uma terrível epidemia que espalhou o terror e o luto no seio da bela Sebastianópolis. Era uma febre de caráter maligno, acompanhada de afecções cerebrais e da medula, e que, quando não terminava com a morte dos doentes, deixava a estes um legado cruel de paralisias e de deformidade.
Chamou-se então a essa epidemia - zamperini ou zamparina, como dizia o povo, que foi quem assim a denominou.
[...]
Assim, em 1779, chamou à epidemia que ceifava a população zamperini porque então se penteavam os cabelos e se usavam diversos objetos e vestidos à Zamperini, que foi aquela célebre cantora veneziana que chegou a Lisboa em 1770, levada pelo notário apostólico da nunciatura, e a quem no teatro na rua dos Condes iam todos aplaudir, notavelmente o padre Macedo, que lhe dirigiu sonetos e odes como quaisquer outro pecador inspirado o faria.
[...]
A cidade do Rio de Janeiro estava, pois, em uma situação duplamente dolorosa. Mas, se alguém então desanimou não foi por certo Luís de Vasconcelos, que deu prontas e enérgicas providências para o abastecimento d’água, assim como tomou medidas higiênicas para combater a zamperini, mandou socorrer os enfermos pobres, e ainda teve tempo e força para ordenar o começo dessa série de obras importantes que perpetuaram o seu nome.
Luís de Vasconcelos reunia a grandes qualidades de administrador maneiras tão afáveis, tanta cortesia e bondade, que soube depressa conquistar as simpatias do povo. Em breve estas simpatias se transformaram em mais bem fundada estima e consideração; porque o ativo e infatigável vice-rei empreendeu grandes trabalhos em proveito da cidade, e para levá-los a cabo soube cercar-se de todos os homens esclarecidos e capazes de coadjuvá-lo que encontrou no Rio de Janeiro.
Um de seus prediletos era o mestre Valentim.
Observar-me-eis que eu não disse ainda quem era o mestre Valentim. Tendes razão.
Valentim da Fonseca e Silva era filho de um fidalgo português e de uma rapariga do Brasil, e teve o seu berço ou no Rio de Janeiro ou mais provavelmente na província de Minas Gerais, onde seu pai era contratador de diamantes. Foi levado por ele para Portugal, donde voltou órfão e ainda jovem, repelido pelos parentes, e trazendo por herança única o vício minhoto que sempre conservou na fala. Aprendeu no Rio de Janeiro a arte torêutica, e foi um arquiteto e um entalhador de primeira ordem. As igrejas do Carmo e da Cruz, a capela-mor de São Francisco de Paula e o chafariz do largo do Paço documentam o seu merecimento ainda hoje.
Devemos agradecer aos parentes do pai de Valentim o ímpeto de vaidade com que empurraram para o Brasil aquele pobre menino, que entre nós se fez um grande homem e que honrou a pátria com seu imenso talento.
O mestre Valentim queixava-se de que Luís de Vasconcelos, que se dizia tão seu amigo e que tantos tributos pedia à sua capacidade artística, desse-lhe sempre mais elogios do que dinheiro; parece, porém, que não há muito fundamento nas queixas do artista, a quem jamais sobrava o ouro; amando muito o belo sexo e tendo especial predileção por estrangeiras, pagava uma fingida e interesseira gratidão por preço tanto mais elevado quanto era maior a impressão que causava o seu rosto feio e exterior pouco simpático.
Mas Luís de Vasconcelos tinha em grande estima o mestre Valentim; aprazia-se com as suas originalidades e com a sua fraqueza de artista e confiava muito na sua probidade e inteligência, fazendo-se até às vezes acompanhar por ele, quando saía a examinar o andamento das obras que estava mandando executar.
Fontes:
Academia Brasileira de Letras
Imagem = http://www.vitruvius.com.br
Fazei de conta que vos achais agora comigo no aprazível terraço do Passeio Público do Rio de Janeiro.
O dia foi calmoso. Em compensação, porém, a tarde é bela e fresca. O sol derrama sobre a terra seus últimos raios. Anuncia-se a hora do crepúsculo. A viração festeja docemente as verdes folhas das árvores que sussurram com um leve ruído.
Imaginai tudo isso. Embalar-vos-ei com uma ficção que já tem sido e será mil vezes uma verdade.
Sentemo-nos nestes bancos de mármore e de azulejos. Voltemos as costas para o mar. O espetáculo dessa natureza opulenta, grandiosa, sublime, absorver-nos-ia em uma contemplação insaciável. Cerremos por algum tempo os olhos à majestade das obras de Deus. A hora do crepúsculo é suave, melancólica e propícia aos sonhos do futuro e às recordações do passado.
Deixemos o futuro a Deus no céu e aos poetas na terra.
Lembremos antes o passado, e, ligados pelo mesmo pensamento, vamos buscar no último quartel do século décimo oitavo o princípio da história deste jardim público.
Suponhamos ainda e finalmente que por unanimidade de votos me escolhestes para vosso orador: foi uma eleição inteiramente livre, sem cabala, sem fósforos, sem intervenção da polícia, sem duplicatas, sem anulações de votos fatais, um verdadeiro milagre constitucional. Tenho consciência da pureza do meu mandato.
Falo em nome de todos vós.
O célebre Luís de Vasconcelos e Sousa, que no dia 5 de abril de 1779 substituíra o marquês de Lavradio no governo do Brasil, via com a mais profunda mágoa começar o seu vice-reinado debaixo de maus auspícios.
Moço ainda e, portanto, ainda sem aquele prestígio de uma longa experiência que se assinala nas rugas da fronte e nos cabelos grisalhos, que aliás nem sempre são companheiros da sabedoria e da prudência, viera suceder a um administrador provecto, hábil e feliz, que deixava o seu nome recomendado à memória do povo pelos serviços que prestara à agricultura, pela proteção que dera às letras nascentes no Rio de Janeiro, e pelos cuidados com que se empenhara em prover às despesas, à polícia e ao desenvolvimento e asseio da cidade capital da grande colônia portuguesa da América.
A lembrança do marquês de Lavradio fazia já não pouco difícil a posição do novo vice-rei, e ainda como para torná-la mais embaraçada, sobrevieram logo dois lamentáveis sucessos, uma calamidade e um flagelo inesperados, que encheram de desgosto a população.
Alguns meses apenas tinham passado da chegada de Luís de Vasconcelos ao Rio de Janeiro, quando, em conseqüência de chuvas aturadas e violentas, romperam-se aquedutos das fontes públicas, deixando os habitantes da cidade em luta com a carestia d’água, que somente de longe se podia trazer.
Então o pretinho que passava pela rua gritando - Ii! - fazia pagar por um preço relativamente fabuloso o pote d’água que levava à cabeça, e isso era um tormento para os pobres e um motivo de lamentações para os ricos. Se não compreendeis bem a significação desse grito dos vendedores d’água, que ainda se ouvia no Rio de janeiro em uma época muito recente, eu vô-lo explico. Logo depois da fundação da cidade de São Sebastião, eram os índios ou gentios que vendiam água aos colonos e a anunciavam na sua língua, bradando: - Ig! Ig! - palavra que foi corrompida mais tarde pelos africanos escravos.
Mas, ainda pior do que a ruína dos aquedutos, aconteceu imediatamente que se desenvolvesse uma terrível epidemia que espalhou o terror e o luto no seio da bela Sebastianópolis. Era uma febre de caráter maligno, acompanhada de afecções cerebrais e da medula, e que, quando não terminava com a morte dos doentes, deixava a estes um legado cruel de paralisias e de deformidade.
Chamou-se então a essa epidemia - zamperini ou zamparina, como dizia o povo, que foi quem assim a denominou.
[...]
Assim, em 1779, chamou à epidemia que ceifava a população zamperini porque então se penteavam os cabelos e se usavam diversos objetos e vestidos à Zamperini, que foi aquela célebre cantora veneziana que chegou a Lisboa em 1770, levada pelo notário apostólico da nunciatura, e a quem no teatro na rua dos Condes iam todos aplaudir, notavelmente o padre Macedo, que lhe dirigiu sonetos e odes como quaisquer outro pecador inspirado o faria.
[...]
A cidade do Rio de Janeiro estava, pois, em uma situação duplamente dolorosa. Mas, se alguém então desanimou não foi por certo Luís de Vasconcelos, que deu prontas e enérgicas providências para o abastecimento d’água, assim como tomou medidas higiênicas para combater a zamperini, mandou socorrer os enfermos pobres, e ainda teve tempo e força para ordenar o começo dessa série de obras importantes que perpetuaram o seu nome.
Luís de Vasconcelos reunia a grandes qualidades de administrador maneiras tão afáveis, tanta cortesia e bondade, que soube depressa conquistar as simpatias do povo. Em breve estas simpatias se transformaram em mais bem fundada estima e consideração; porque o ativo e infatigável vice-rei empreendeu grandes trabalhos em proveito da cidade, e para levá-los a cabo soube cercar-se de todos os homens esclarecidos e capazes de coadjuvá-lo que encontrou no Rio de Janeiro.
Um de seus prediletos era o mestre Valentim.
Observar-me-eis que eu não disse ainda quem era o mestre Valentim. Tendes razão.
Valentim da Fonseca e Silva era filho de um fidalgo português e de uma rapariga do Brasil, e teve o seu berço ou no Rio de Janeiro ou mais provavelmente na província de Minas Gerais, onde seu pai era contratador de diamantes. Foi levado por ele para Portugal, donde voltou órfão e ainda jovem, repelido pelos parentes, e trazendo por herança única o vício minhoto que sempre conservou na fala. Aprendeu no Rio de Janeiro a arte torêutica, e foi um arquiteto e um entalhador de primeira ordem. As igrejas do Carmo e da Cruz, a capela-mor de São Francisco de Paula e o chafariz do largo do Paço documentam o seu merecimento ainda hoje.
Devemos agradecer aos parentes do pai de Valentim o ímpeto de vaidade com que empurraram para o Brasil aquele pobre menino, que entre nós se fez um grande homem e que honrou a pátria com seu imenso talento.
O mestre Valentim queixava-se de que Luís de Vasconcelos, que se dizia tão seu amigo e que tantos tributos pedia à sua capacidade artística, desse-lhe sempre mais elogios do que dinheiro; parece, porém, que não há muito fundamento nas queixas do artista, a quem jamais sobrava o ouro; amando muito o belo sexo e tendo especial predileção por estrangeiras, pagava uma fingida e interesseira gratidão por preço tanto mais elevado quanto era maior a impressão que causava o seu rosto feio e exterior pouco simpático.
Mas Luís de Vasconcelos tinha em grande estima o mestre Valentim; aprazia-se com as suas originalidades e com a sua fraqueza de artista e confiava muito na sua probidade e inteligência, fazendo-se até às vezes acompanhar por ele, quando saía a examinar o andamento das obras que estava mandando executar.
Fontes:
Academia Brasileira de Letras
Imagem = http://www.vitruvius.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário