terça-feira, 8 de janeiro de 2013

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 4 de Novembro de 1855: Pergunta aos Leitores


(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Desejava dirigir uma pergunta aos meus leitores.

Mas uma pergunta é uma coisa que não se pode fazer sem um ponto de interrogação.

Ora, eu tenho uma birra muito séria a esta figurinha de ortografia, a esta espécie de corcundinha que parece estar sempre chasqueando e zombando da gente.

Com efeito, o que é um ponto de interrogação?

Se fizerdes esta pergunta a um gramático, ele vos atordoará os ouvidos durante uma hora com uma dissertação de arrepiar os cabelos.

Entretanto, não há coisa mais simples de definir do que um ponto de interrogação; basta olhar-lhe para a cara.

Vede: - ?

É um pequeno anzol.

Ora, para que serve o anzol?

Para pescar.

Portanto, bem definido, o ponto de interrogação é uma parte da oração que serve para pescar.

Exemplo:

1º Quereis pescar um segredo que o vosso amigo vos oculta, e que desejais saber; deitais o anzol disfarçadamente com a ponta da língua:

- Meu amigo, será verdade o que me disseram, que andas apaixonado?

2º Quereis pescar na algibeira de algum sujeito uma centena de mil réis; preparais o cordel e lançais o anzol de repente:

- O sr. Pode emprestar-me aí uns 200 mil réis?

3º Quereis pescar algum peixe ou peixãozinho: requebrais os olhos, adoçai a voz, e por fim deitais o anzol:

- Uma só palavra: tu me amas?

É preciso porém que se advirta numa coisa.

O ponto de interrogação é um anzol, e por conseguinte serve para pescar; mas tudo depende da isca que se lhe deita.

Nenhum pescador atira à água o seu anzol sem isca; ninguém portanto diz pura e simplesmente:

- Empresta-me 300 mil réis?

Não; é preciso que o anzol leve  isca, e que esta isca seja daquelas que o peixe que se quer pescar goste de engolir.

Alguns pescadores costumam deitar um pouco de mel, e outros seguem o sistema dos índios que metiam dentro d’água certa erva que embebedava os peixes.

Assim, ou dizem:

- Meu amigo, o senhor, que é o pai dos pobres, (isca) empresta-me 300 mil réis? (anzol).

Ou então empregam o segundo meio:

- Será possível que o benfeitor da humanidade, o homem que todos apregoam como a generosidade personificada, que o cidadão mais popular e mais estimado desta terra, que o negociante que revolve todos os dias um aluvião de bilhetes do banco, me recuse a miserável quantia de 300 mil réis?

No meio do discurso já o homem está tonto de tanto elogio, de maneira que, quando o outro lhe lança o anzol, é com certeza de trazer o peixe.

Ainda tinha muita coisa a dizer sobre esta arte de pescar na sociedade, arte que tem chegado a um aperfeiçoamento miraculoso.

Fica para outra ocasião.

Por ora basta que saibam os meus leitores que o ponto de interrogação é um verdadeiro anzol.

O caniço desta espécie de anzol é a língua, e o fio ou cordel a palavra; fio elástico como não há outro no mundo.

Ás vezes, quando se olha para esta figurinha aleijada, o ponto de interrogação parece-se mais com um daqueles corcundinhas, espécie de demoninhos maliciosos, de que falam os contos de fada e que viviam a fazer pirraças aos homens.

É que de fato há ocasiões em que ele torna-se realmente um anãozinho zombeteiro e impertinente, que leva a ousadia até a rir-se nas barbas de um pobre homem.

Haveis de ter encontrado pelo mundo algum desses homens que depois de terem feito todo o mal que podem a outro, vêm com o riso nos lábios insultar a dor e envenenar com sua baba a ferida mal cicatrizada.

Este homem atira à cara do outro o corcundinha de que vos falei, e dirige pouco mais ou menos uma pergunta neste sentido:

- Então, meu amigo, por que não me conta os seus pesares? Não tem confiança em mim?

Há também um certo ponto de interrogação que tem seus ares de mestre de latim ou de professor de primeiras letras.

Este é carrancudo e severo; tem a voz áspera e fanhosa, como do homem que toma rapé; e ordinariamente anda aos pulos.

Lembro-me perfeitamente que na minha aula de latim às vezes estava eu bem distraído, quando ele saltava-me pela frente gritando:

- Hora-ae, vocativo?

Felizmente todas as coisas deste mundo têm verso e reverso; o ponto de interrogação, que quase sempre é um anzol, um anão corcunda, ou um pedagogo, parece-se às vezes com um desses meninos travessos e gentis, um desses anjinhos curiosos e inocentes que desejam saber tudo.

Então ele pergunta, mas é como o filho à sua mãe; ri-se, mas é de prazer e de alegria; e leva todo o tempo a brincar entre as palavras, como o colibri no meio das flores.

Vou mostrar-vos essa face risonha do ponto de interrogação, esse verso da medalha cunhada pelos gramáticos.

É uma poesia que li, não sei onde, e que só tem um defeito: o de ser uma pergunta sem resposta.

Ei-la:

A Emy La-Grua

Que geme de amor,
Que beija lasciva
O seio da flor,
Colhe em teus beijos
O brando suspiro,
A brisa furtiva
Os doces bafejos
De que eu me inspiro?
A onda ligeira
Que treme e palpita,
Que de feiticeira
Murmura e saltita,
Viu-te no sorrir
Que o lábio desata
Brincar e fugir
A doce volata?

A corda da lira
Que mal estremece,
E tênue suspira
Um som que entristece,
Bebe em teu pranto
O débil queixume,
Guarda de teu canto
O eco, o perfume?

Tens nos lábios teus
A flor da harmonia,
Que dás como Deus, 
Aos sons melodia, 
Acento divino,
A vaga o seu friso,
Às auras um hino,
E a tudo o sorriso?

Dos anjos soubeste
As notas sublimes
D’harpa celeste,
Com que tudo exprimes;
Ou deu-te o amor
A chama sagrada,
O grito da dor,
A voz inspirada?

Agora é muito natural que, depois de ter lido toda esta maçada, depois de ter virado e revirado em todos os sentidos o ponto de interrogação, o meu leitor esteja desesperado por saber qual era a pergunta que eu lhe pretendia fazer, e que deu causa a todo esse aranzel, misturado de poesia.

É muito justo, e por isso vou satisfaze-lo.

Queria contar domingo passado.

É um conto a respeito das mocinhas brasileiras.

O prometido é devido.

Aí vai pois:

“Um dia a fada Beleza desceu à terra, resolvida a distribuir por todas as moças os tesouros de graça e mimos que possuía.

“Mandou que seu irmão o anãozinho Amor chamasse uma mulher de cada nação, para receber o dom que lhe coubesse.

“Quando todas estavam reunidas, a fada começou a distribuição dos seus presentes.

“Deus à Andaluza cabelos negros e tão longos que lhe podiam servir de mantilha.

“A Italiana olhos brilhantes e ardentes como as estrelas do céu de Nápoles.

“A Árabe  um moreno excitante e uma pele doce e macia como as penas do marabu.

“A Inglesa uma aurora boreal para tingir as faces, os lábios e as espáduas.

“A Alemã pérolas para os dentes e miosótis para os olhos suaves.

“A Russa a distinção de uma princesa e a nobreza necessária para trazer um nome de sete sílabas terminado por off.

“A Francesa a delicadeza do lírio com a graça e o mimo das rosas.

“Depois, passando aos detalhes, deitou a alegria nos lábios da Siciliana, o espírito na cabecinha loira da Irlandesa, o bom senso no coração da Holandesa.

“Então a Brasileira, que por modéstia e por timidez estivera retirada a um canto, puxou docemente a ponta da túnica azul da fada.

- “E eu?

- “Ah! tinha te esquecido.

- “É verdade.

“E agora como há de ser? Já dei tudo que trazia.

- “Mas eu fico sem nada?

A fada refletiu um momento: depois, chamando as outras com um sinal, disse-lhes:

- “Vós sois tão boas que espero haveis de reparar uma falta que cometi esquecendo na distribuição a vossa irmã do Brasil. Eu vos peço pois que cada uma tire um pouco do presente que lhe fiz, e o dê a esta menina tão modesta.

- Não era possível recusar.

“Todas as mulheres do mundo, com uma graciosa amabilidade, chegaram-se à Brasileira, e deram-lhe, uma os seus cabelos negros, outra as estrelas dos seus olhos, esta o sorriso de seus lábios, aquela a ondulação de suas formas acetinadas.

Eis a história que vos prometi contar domingo, quando vos falava das nossas patrícias. Ainda sei outras tão lindas como esta, mas que a pena a correr não pode demorar-se para contá-las.

Irão em ziguezague.

Não reparem se passo em silêncio pela representação de Sapho, apesar de ser a obra-prima de Paccini.

Digam o que quiserem os maestros, não gosto dessa música de barulho, que abafa a voz humana, e obriga os cantores a fazerem contorsões horríveis.

Na Norma e no Otelo, onde os cantores cantam, há prazer em ouvir-se uma bela voz, que brinca nuns lábios risonhos, desatar-se em ondas de harmonia, ou desprender-se de um seio que se ergue apenas numa ondulação suave.

Mas nestas óperas, onde a voz é um grito, onde o canto é uma convulsão, as notas são arrancadas com esforço, a boca se contrai, e a melodia desaparece num estrépido que atordoa; parece que assistimos ao martírio do cantor, a um suplício horrível da beleza, do talento e da inspiração.

Não; por mais que digam, a voz humana não foi feita para essa música de estrépito. Se desejais ouvir a natureza em suas convulsões, assisti ao espetáculo da tempestade numa costa desabrida, mas não ide ao teatro pedir a um cantor que vos venda por uma mesquinharia de dinheiro as centelhas divinas de seu gênio e de sua alma.

O talento é uma vida, é a vida d’alma, da inteligência e do pensamento; nenhum artista tem pois o direito de cometer esse suicídio moral, e de esperdiçar, como Emy La-Grua, numa só noite, a seiva e o viço de uma existência inteira.

Quando assisti à primeira representação da Sapho, pareceu-me ver um quadro, no qual um pintor de gênio, querendo tocar o sublime, derramasse toda a sua inspiração e gastasse todas as tintas de sua palheta.

Havia alguns traços belos, porém no mais eram tons carregados, claros e escuros pouco harmoniosos, perfis ásperos e destacados sobre um fundo sombrio e confuso.

Depois de todo este preâmbulo, é necessário que conte aos meus leitores os acontecimentos notáveis da semana.

Todos os reduzem a um dia (o sábado), a um acontecimento (a chegada do paquete), e a uma notícia, que anda de boca em boca e de jornal em jornal:

A TOMADA DE SEBASTOPOL

Escrevendo-a, não traço unicamente a crônica da semana, mas a história do mundo durante um ano.
(.)

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 777)




Uma Trova de Ademar  

Se não puder dar um bolo,
dê um pedaço de pão...
A caridade é um tijolo 
da casa da salvação!
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Minha rosa cor-de-rosa, 
com porte de manequim, 
desfila, linda e garbosa, 
nas ruas do meu jardim! 
–Yedda Maia Patrício/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Eu sinto a força da vida 
e a mão divina de Deus, 
em cada manhã florida, 
na aurora... dos versos meus! 
–Mara Melinni/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012   -   Cantagalo/RJ 
Tema   -   ESPAÇO   -   9º Lugar 

Homem...! É afoito seu passo
e um paradoxo o consome:
- Rompe limites no Espaço,
enquanto a Terra... tem fome! 
–Pedro Mello/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Esta saudade é o castigo
que aflige todo o meu ser:
- não posso viver contigo
sem ti não posso viver.
–Coriolano Coelho/SP– 

U m a P o e s i a  

Ninguém sabe o fim da vida, 
mas se ela tem o seu preço, 
é bom que no seu roteiro 
nós saibamos o endereço 
da justiça e da esperança, 
pois teremos recomeço! 
–Elisabeth Souza Cruz/RJ– 

Soneto do Dia  

GERÂNIOS NA JANELA
–Thereza Costa Val/MG–

Gerânios na janela dão beleza
ao simples quarto branco, meu recanto,
e ofertam-me um cenário de nobreza
quando, à manhã, desperto e me levanto.

Eu vejo o sol beijar, com gentileza,
as flores cultivadas neste canto,
que tiram do meu quarto a singeleza
e em rósea cor exibem grande encanto.

Imagem que me alegra e me extasia
- o vaso de gerânios na janela - 
me embala em um instante de poesia.

Meus versos vão surgindo na emoção
que sinto, ao ver o quadro de aquarela...
e tenho, de um soneto, a inspiração!

domingo, 6 de janeiro de 2013

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 13


Caio de Mello Franco
(Montevidéu/Uruguai, 3 maio 1896 Registrado no Consulado Brasileiro -
Paris/ França, 18 setembro 1955)

" O EVANGELHO DA VELHICE "

Quando a velhice te bater à porta
queres ouvir nosso Evangelho? Escuta,
abre de manso e, trêmula perscruta
aquela face que a tristeza corta.

Olha-a de frente. E uma alegria morta
verás em cada sulco que a labuta
deixou fundo ficar na insana luta
que não nos confortou, nem nos conforta.

Enxugarás o pranto resignado
e ficarás pungentemente orando,
de mãos postas, a olhar para o Passado...

E assim, velhinha e triste e eu triste a velho,
viveremos tremendo, mas rezando
a saudade sem fim, deste Evangelho.

" O FAUNO "

No meu plinto de pedra, o olhar vazio,
a alma vazia, no jardim deserto,
sonho encolhido de tristeza e frio,
ouvindo a fonte que murmura perto.

As vezes penso: este meu fado incerto
mudou-se em gloria, fez-se amor! - Sorrio...
Depois, o tempo passa . . . E eis-me desperto
do meu longo e profundo desvario . . .

E súbito, em minha'alma primitiva
antes tranqüila e agora turva, a chama
de um desejo fugaz, crepita, viva...

Em meu corpo de pedra anseio e arquejo. . .
Sinto que em torno a natureza me ama
e atiro ao vento o meu primeiro beijo.
============

Carlos Augusto Ferreira 
(Porto Alegre/RS, 4 outubro 1844 – Campinas/SP, 12 fevereiro 1913)

" IDÍLIO "

Vamos, amor, por esses campos fora,
asas abrindo à doce luz da vida,
ouvir a terna, a meiga, a apetecida
canção que entoa a terra à deusa Aurora.

Vamos, que é tempo. A natureza inflora
montes, vales, vergéis, e embevecida
treme de amor a rosa. Ouves, querida,
a ave que canta? a viração que chora?

Vês? Que alegre amnhã, Todo o arvoredo
tão fresco e bom! O alegre passaredo
enche a selva de mágico rumor...

Pois cantemos também, vamos risonhos
haurir a vida em turbilhões de sonhos,
asas abrindo ao quente sol do amor! . . .
===================

Carlos Drummond de Andrade
(Itabira/MG, 31 outubro 1902 – Rio de Janeiro/RJ, 17 agosto 1987)

" ENTRE O SER E AS COISAS "

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e a rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que a de natureza corrosiva.

N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas a mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que o punge e que e, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.

" FRAGA E SOMBRA FRAGA E SOMBRA "

A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente a abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura   
vontade de anular a criatura.

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Clevane Pessoa (Indo e Vindo)


Odyla Pinto de Paiva (Natal) Medalha de Ouro no II Concurso Oliveira Caruso


É alegre e triste, pobre e rico.
É cheio de surpresas e também de tristezas.
Às vezes falta alguém.
Às vezes tem gente demais…
E o que é Natal?

São múltiplas faces estilhaçadas que nos mostram fragmentos de recordações queridas, mas também fiapos de memórias que gostaríamos de esquecer.

Mesmo com a noite transcorrendo cheia de alegrias, em algum momento, uma lembrança se insinua sorrateiramente e acabamos sendo vencidos, por alguns segundos, pela nostalgia.

Nostalgia de algo ou de alguém.

De algo que foi tão bom e não mais se repetiu ou de alguém que passou e não mais voltou porque não queria ou, na pior das hipóteses, não mais podia.

Natal é o doce e o amargo de toda vida.

É mágico e cruel, mas também é sonho e fantasia.

É o riso da criança e a lágrima do idoso.

É a mesa farta e a fome que corrói aquele que não tem o que comer.

É a fé de que a vida se renova e que tudo tem princípio, meio e fim para depois recomeçar o mesmo ciclo que permite, a todos, a reparação e a construção de uma nova vida cheia de expectativas e desejos.

Natal?

É a esperança de felicidade.

Fonte:
Comendador Oliveira Caruso.
http://reinodosconcursos.com/?page_id=220

Comemoração das 10.015 Postagens - Aproximando da Marca de 1 milhão de visitas

O Blog completou em dezembro do ano passado 5 anos de existência.

Chegamos a marca de 10.000 postagens. Mais exatamente, descontando os alertas, avisos, erratas e agradecimentos (que totalizam 30), são 10.015 textos, que abrangem trovas, haicais, contos, analise de obras, poesias, poetrix, noticias,cronicas, artigos, concursos, resultados de concursos, folclore, etc.

Até as 20hs de hoje, o blog já contava com 801.391 visitas, sendo os países que mais visitaram em ordem classificatória por numero de visitas:

1) Brasil 
2) Estados UNidos
3) Portugal
4) Russia
5) Alemanha

162 seguidores

445 assinantes que recebem as postagens em seu e-mail.

No mes de dezembro do ano passado, houve 18.704 visitas.

412 comentários.

Fica aqui o meu agradecimento por estarem me acompanhando, incentivando e colaborando.

Nilto Maciel (Valéria Eik e os Atalhos da Narrativa)


Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.

                  Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica. Assim parece ser Valéria Eik.

                  Suas narrativas apresentadas neste volume de estreia são de linguagem simples, coloquial, de roupagem comum. Obedecem a estética da história linear, sem volteios, sem malabarismos, sem lacunas. “A grande paixão” é ambientada no campo. Embora não haja referência a nomes de lugares, sabe o leitor que o drama se passa no Sul do país: o frio, o gelo, a geada. Apenas duas pessoas: José e Maria, um casal de velhos. E um drama: a geada, a morte do cafezal, e, por consequência, a morte do homem. “Fogos fátuos” segue a mesma linha, com um quê de romantismo: as perdas, a solidão, a morte. Nele o tempo é dilatado ou se reparte em várias unidades.

                   Há ainda os chamados contos de costumes, como “Se é semente, vai germinar”, em que o tema da violência doméstica é ressaltado. 

 Outras obras se abeiram da crônica ou do poema em prosa. Em “Travessia” o protagonista é um velho cão a atravessar uma rua. Narrativa urbana: avenidas, trânsito de carros, pressa. “Estrelas mortas” é poético em sua trama esgarçada. “Por breves instantes” igualmente se assemelha a poema. “Memórias” mostra o conflito interior da protagonista Ana, a debater-se com as lembranças de uma caçada de gato a passarinho, numa noite remota, talvez da infância. “O nascimento de mais um cronópio” é também diferente, isto é, foge aos modelos do conto tradicional, da história com enredo. Homenagem a Cortázar, numa peça ficcional parabólica, metafórica, de seres fictícios etéreos.

                   Há ainda aqueles constituídos de uma só fala, como se vê em “Afasta de mim este cálice” e “Almas”. Apenas uma lamentação, um monólogo, sem enredo, sem trama.

 Valéria Eik demonstra nítida preocupação com os problemas sociais e, assim, se esmera na elaboração da chamada narrativa de costumes, tão cara aos realistas. “Funeral de primeira” é um retrato dessas cenas domésticas ou de família, como a morte e o enterro do velho patriarca avarento. Em “O fruto indigesto” o tema é o da gravidez indesejada, seguida de aborto. “Prosperidade” narra costumes do interior, das pequenas cidades, com seus personagens típicos: o padre (a hipocrisia), o político, etc. Em “Quebrando a rotina”, outra história de personagem, se revela a avareza de Gastão (nome famoso de programa cômico da televisão) e o sofrimento de Elisa, sua mulher. “Um menino chamado Jesus” trás à tona a questão do machismo. Vida dura de carroceiro, no campo. Diversos segmentos temporais e episódios em cadeia. “Uma versão da verdade” tem por assunto o estupro seguido de morte. A estrutura da narrativa lembra os moldes dos românticos, de um lado, e dos realistas/naturalistas, de outro.

 A solidão, a velhice e a morte são, pois, assuntos caros a Valéria. Em “Sentença irrevogável” a morte é tratada de maneira natural. Assim como a fragilidade humana, a finidade: o paletó elegante do morto, o caixão, o fim. Pode ser lido também como história de horror: ser enterrado vivo. “Aconchego”, constituído de diversas unidades de tempo, conta a vida de um velho. Não apenas a vida, mas a solidão da velhice. O abandono em vida pelos filhos e pela mulher. Essa tendência para dilatar o tempo da ação se mostra ainda em outras peças, como em “Moleca”, desenvolvida em tempo histórico longo. A moleca Antônia, desde menina até a morte, na velhice, e seu marido Justo. Diversos dramas menores, em cadeia, como num romance. Essa semelhança com a estrutura do gênero literário preferido de Balzac aparece ainda em “O pó da terra”.

                   Mas nem só de solidão e morte vivem as pessoas fictícias de Valéria Eik. O amor está presente em muitas de suas narrativas. O singelo “Entardecer” nos remete à vida de pescador. “Notícias” apresenta cena doméstica: mulher sozinha, um carteiro que se anuncia, uma carta, as lembranças de um amor perdido. Trama ingênua, em que o conflito interno se instala de repente. Ao leitor cabe completar o drama: Quem seria o outro? Que história teriam vivido ele e a mulher solitária? Em “O circo” o amor é dos tempos de criança. Um circo se assenta numa cidadezinha. Uma menina se apaixona pelo galã. Como se espera, vem a decepção da garota, ao ver o circo ir embora. E, finalmente, “Por amor”, a melhor peça do volume, pela densidade, pela aspereza do narrador, pela beleza que emana da própria narração. Conto urbano, social – pungente e cruel, como a vida. 

                  Valéria Eik certamente não espera fama e glória. Resta-lhe seguir pelos múltiplos caminhos da literatura, livrando-se da comodidade da reta e buscando os atalhos, que são inúmeros. 

                        Fortaleza, abril de 2007.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/1222
Foto: Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 776)




Uma Trova de Ademar  

Perdi minha mocidade, 
toda hombridade que eu tinha... 
Vivi sua identidade 
em vez de viver a minha! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Nutro respeito por quem, 
faminto, em árdua jornada, 
reparte o nada que tem 
com quem já não tem mais nada. 
–Élbea Priscila de Souza/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Como quem faz uma prece, 
braços erguidos se abrindo, 
a borboleta parece 
um anjo da paz dormindo! 
–Prof. Garcia/RN– 

Uma Trova Premiada  

2007   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   MENSAGEM   -   4º Lugar 

Deixei a minha alma exposta 
na mensagem comovente... 
Veio a carta, sem resposta, 
devolvida “Ao remetente”... 
–Thereza Costa Val/MG– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Jamais alimentaria
tanto amor entre nós dois,
se eu pensasse que viria
tanta saudade depois ...
–Leopoldina Dias Saraiva/RJ– 

U m a P o e s i a  

Sou de Deus um instrumento 
que, com temas mais dispersos 
me faço a cada momento 
um fabricante de versos; 
me tornei um menestrel, 
não tenho nenhum anel, 
mas sou tudo o que eu queria... 
Meu currículo é comum, 
não tenho curso nenhum 
mas sou formado em poesia! 
–Ademar Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

NÓS 
–Guilherme de Almeida/SP– 

Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...

E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
---" Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"

E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...

E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos...

Ivan Pessoa (Era Uma Vez Uma Cidade Bibliofóbica)


 Era uma vez uma cidade que não lia. Não que a leitura não fosse lá seu hábito, afinal os espaços reservados para tais descobertas eram poucos e, ainda que fossem poucos, agravavam-se as reformas, os trincos e o pior das doenças populares: a desfaçatez contagiosa dos políticos. Quem passasse pelos portais dessa cidade, sabiamente diria: está doente! Mas quem por lá residisse, contagiado pela cegueira letárgica dos políticos de lá, despreocupadamente diria: “bobagem, cidade como esta, jamais encontrarás”. O pior doente, como o cego, é aquele que não quer ver.

 Os egípcios tinham tanto apreço por bibliotecas que as chamavam farmácias da alma. Por Deus, será por isso que aquela cidade encontra-se momentaneamente adoecida, sem o direito legítimo de convalescença? O traço mais característico das civilizações é certamente o hábito da conservação da memória, o que franqueia às gerações subsequentes um referencial.

 O que efetiva o ser humano é a memória de seus ancestrais que lhe inculca uma maneira de ser com consequente compreensão de si e de seus semelhantes. Em um só tempo a memória faz o homem se descobrir por meio da consciência de si mesmo e descobrir a presença constante dos outros. Tal capacidade é tanto pessoal, quanto interpessoal. Como afirmara o biólogo francês Jean Rostand, para quem a civilização do homem, diferentemente da civilização das formigas e das traças não reside propriamente no homem, mas antes em suas bibliotecas, museus e códigos. A partir daí se pode pensar que, de fato, a cultura, juntamente com a memória, são os únicos elementos que nos põem a distância dos demais insetos da natureza. O bicho homem difere das formigas e das traças, por que registra os ensinamentos de seus pais e por inscrevê-los, posterga sua sobrevida para um tempo não muito determinado, para um porvir. A expectativa de um futuro insondável, de impérios e heróis que ainda virão, de pessoas e cidades que porventura possam acontecer, é justamente o elemento humano por excelência. Para que esta expectativa se faça sustentável através dos séculos, a memória precisa ser preservada e sua preservação fica a cargo das bibliotecas.

 Ao contrário de seus contemporâneos, Aristóteles teria sido o primeiro bibliófilo da história, e sob este princípio edificaria tanto a biblioteca de seu Liceu, quanto a civilização ocidental. Com efeito, Ptolomeu II Filadelfo, que adquiriria este irrepreensível acervo, no afã de lhe conservar, construiria o maior monumento da antiguidade: a biblioteca de Alexandria.

 Segundo Ptolomeu II a biblioteca serviria para reunir os livros de todos os povos da Terra, permitindo-lhes tanto, na época, quanto nos séculos vindouros, a compreensão do mundo antigo e sua especificidade. Como me compreender em um tempo e espaço determinado se sou incapaz de dimensionar a tradição pela qual sou uma consequência temporã? A lição dos livros é esta: conservar a tradição, para que as gerações futuras possam encetar o encontro consigo mesmas e com seus semelhantes. Uma geração que não lê é no mínimo uma geração perdida, certamente porque fica alijada da compreensão de si mesma e de seu povo. O que daí se depreende é: a história de um povo é a consequência daqueles que lhe conservarão. Inimaginável e igualmente bárbaro é pensar um adolescente que desconhece um luminar de sua terra, à maneira da criança que desconhece os pais. Troçar dos luminares e desconhecer os pais atesta um estado de grave incoerência, sobretudo se se pensar que tais condições são princípios elementares para as gerações vindouras.

 Que educação um pai iletrado dará para um filho que, tão carente quanto ele, está à mercê das circunstâncias? Que mundo está em construção, se o presente não sabe remeter-se ao passado? Aquela civilização do homem, pela qual Jean Rostand sobrepunha à civilização das formigas e traças, é decerto a exaltação do passado com seus feitos imemoriais. O que é a civilização grega senão a ira incontida de Aquiles e Agamenon na eterna releitura da Ilíada? Na Eneida de Virgílio, o anfitrião Enéas antevê a criação do império romano como desdobramento heróico do povo troiano e se jacta disso. Ainda hoje a remissão dos romanos a este fato, lhes põe como herdeiros de um povo intrépido. Como pensar, por exemplo, a questão judaica sem a leitura bíblica? É tal que o poeta alemão Heinrich Heine afirmaria categoricamente que a bíblia é a pátria dos judeus, tamanha é sua importância, enquanto documento identificador de uma tradição. À maneira de Heine, o filósofo Adorno diria algo igualmente relevante por considerar que para quem não tem pátria, o livro, bem como a escrita tornam-se necessariamente a sua morada. Ora, enquanto morada, o livro é o único artifício capaz de conservar a voz ancestral daqueles que cá não estarão, como se por testamento, protelasse e assegurasse a especificidade dos conselhos, orientações e discursos que precisam se fazer ouvir em um tempo a posteriori. Não sou eu quem digo, mas é George Santayana quem assim o faz: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo .”

 Em um passado não muito diferente dos dias atuais, em que pese a violência e a barbárie pululando ostensivamente, o imperador Júlio César convocaria os serviços intelectuais de Públio Varrão, poeta romano, para organizar as bibliotecas públicas de então. Varrão o faria. Ironicamente, a história registraria uma condenação digna de reparação por parte de César que, se pondo a perseguir Pompeu, incendiaria a cidade de Alexandria e sua suntuosa biblioteca. O mesmo homem que ordena a construção de bibliotecas públicas incendeia criminosamente uma parte do maior legado da antiguidade. O certo é que a história humana apressa qualquer insinuação de decisiva hostilidade, afinal, como pensara Schiller em suas Cartas sobre a educação estética do homem: “Então de onde vem que ainda continuemos sendo bárbaros?” Pensemos bem: se com a convivência com os livros, os homens ainda são naturalmente hostis, de modo que um quê de civilização supõe um quê de barbárie, imagine a ausência de doutos ensinamentos, a intervenção de bons parágrafos? Quando Schiller bradava tais queixas, quanto ao bárbaro alemão civilizado, tais queixumes se faziam em face de um país com 80% de analfabetos, analfabetos que leriam o mundo determinando futuramente sua escritura. Aqueles trocentos analfabetos alemães forjariam os maiores monumentos da cultura europeia dos anos seguintes, ao contrário dos nossos, que duas vezes bárbaros, na educação e nos costumes, incapazes são de passar a vista nem que seja na orelha dos livros. Se um povo como o alemão concedeu ao Ocidente um celeiro de grandes intelectuais, artistas e pensadores, ainda que fosse um povo bárbaro, o que pensar daquela cidade, em específico, que tem uma tradição olvidada em função da desfaçatez contagiosa de seus políticos? Sem o usufruto da quiromancia, aquela arte de ler as mãos, sem qualquer futurologia, o certo é que os indícios não estão nada a favor, porquanto aquela cidade, carente de toda sorte de antídoto, há algum tempo fechou as portas de sua mais importante farmácia da alma, alegando uma reforma por tempo indeterminado. E quanto às obras, por tempo indeterminado o que serão? Já sei, servirão de abrigo às sociedades e aos impérios daquelas traças tão letradas, visto que se alimentam de livros e entre livros forjam suas civilizações. Como toda civilização tem um apelo eminentemente bárbaro, até os insetos nos remedam. Ou seria o contrário?

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Ed. 240. 29 de outubro de 2011.
Imagem ; http://osonetista.blogspot.com

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 6


Estranhos bairros! Mas nada me divertia como ver a cada instante, a uma porta de jardim, dois mandarins pançudos que para entrar se trocavam indefinidamente salamalés, cortesias, recusas, risinhos agudos de etiqueta, todo um cerimonial dogmático – que lhes fazia oscilar de um modo picaresco, sobre as costas, as longas penas de pavão. Depois, se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar enormes papagaios de papel, ora em forma de dragões, ora de cetáceos, ora de aves fabulosas – enchendo o espaço de uma inverosímil legião de monstros transparentes e ondeantes...

– Sá-Tó, basta de Cidade Tártara! Vamos ver os bairros chineses...

E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaça. As ruas alinham-se como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundície de gerações recalcada desde séculos, ainda aqui e além jaz alguma das lajes de mármore cor-de-rosa que outrora o calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.

Dos dois lados são – ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas esguias e sarapintadas, balouçando-se de uma haste de ferro. À distância erguem-se os arcos triunfais feitos de barrotes cor de púrpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azuis envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multidão rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem cessar; a poeira envolve tudo de uma névoa amarelada; um fedor acre exala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de camelos fende lentamente a turba, conduzida por mongóis sombrios vestidos de pele de carneiro.

Fomos até às entradas das pontes sobre os canais, onde saltimbancos seminus, com máscaras simulando demónios pavorosos, fazem destrezas de um picaresco bárbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os astrólogos de longas túnicas, com dragões de papel colados às costas, vendendo ruidosamente horóscopos e consultas de astros. Oh cidade fabulosa e singular!

De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que um soldado, de grandes óculos, ia impelindo com o guarda-sol, amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi aí, nessa avenida, que eu vi o estrepitoso cortejo de um funeral de mandarim, todo ornado de auriflamas e de bandeirnhas; grupos de sujeitos fúnebres vinham queimando papéis em fogareiros portáteis; mulheres esfarrapadas uivavam de dor espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um cooly vestido de luto branco servia-lhes logo chá, de um grande bule em forma de ave. 

Ao passar junto ao Templo do Céu, vejo apinhada num largo uma legião de mendigos; tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulheres, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranquilamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos. Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, à esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um sangue espesso e negro...

– Uf! – exclamei, fatigado e aturdido. – Sá-Tó, agora quero o repouso, o silêncio, e um charuto caro...

Ele curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me às altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a par podem percorrer durante léguas.

E enquanto Sá-Tó, sentado num vão de ameia, bocejava, num desafogo de cicerone enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus pés a vasta Pequim...

É como uma formidável cidade da Bíblia, Babel ou Nínive, que o profeta Jonas levou três dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro pontos do horizonte, com as suas portas de torres monumentais, que o ar azulado, àquela distância, faz parecer transparentes. E na imensidão do seu recinto aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais cintilantes como aço, pontes de mármore, terrenos alastrados de ruínas, telhados envernizados reluzindo ao sol; por toda a parte são pagodes heráldicos, brancos terraços de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a intervalos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, de um aspecto heróico e fabuloso...

A multidão, junto a essas edificações grandiosas, é apenas como grãos de areia negra que um vento brando vai trazendo e levando...

Aqui está o vasto palácio imperial, entre arvoredos misteriosos, com os seus telhados de um amarelo de oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe os segredos, e ver desenrolar-se pelas galerias sobrepostas, a magnificência bárbara dessas dinastias seculares!

Além ergue-se a torre do Templo do Céu, semelhando três guarda-sóis sobrepostos: depois a grande Coluna dos Princípios, hierática e seca como o génio mesmo da raça: e adiante branquejam numa meia-tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuário da Purificação... 

Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palácio da Soberana Concórdia, o Pavilhão das Flores das Letras, o Quiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianças azuis, verdes, escarlates e cor de limão. Eu devorava, de olho ávido, esses monumentos da Antiguidade asiática, numa curiosidade de conhecer as impenetráveis classes que os habitam, o princípio das instituições, a significação dos cultos, o espírito das suas letras, a gramática, o dogma, a estranha vida interior de um cérebro de letrado chinês... Mas esse mundo é inviolável como um santuário...

Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planície arenosa que se estira para além das portas até aos contrafortes dos montes mongólicos; aí incessantemente redemoinham ondas infindáveis de poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... Então invadiu-me a alma uma melancolia, que o silêncio daquelas alturas, envolvendo Pequim, tornava de um vago mais desolado: era como uma saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali isolado, absorvido naquele mundo duro e bárbaro: lembrei-me, com os olhos humedecidos, da minha aldeia do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um ramo de louro à porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos quando verdejam os linhos...

Aquela era a época em que as pombas emigram de Pequim para o Sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos templos e dos pavilhões imperiais; cada uma traz, para a livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e aquelas nuvens brancas passavam como impelidas de uma aragem mole, deixando no silêncio um lento e melancólico suspiro, uma ondulação eólica, que se perdia nos ares pálidos...

Voltei para casa, pesado e pensativo.

Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com bonomia as minhas impressões de Pequim.

– Pequim faz-me sentir bem, general, os versos de um poeta nosso:

Sôbolos rios que vão

Por Babilónia me achei ...

– Pequim é um monstro! – disse Camilloff oscilando reflectidamente a calva. – E agora considere que a esta capital, à classe tártara e conquistadora que a possui, obedecem trezentos milhões de homens, uma raça subtil, laboriosa, sofredora, prolífica, invasora... Estudam as nossas ciências... Um cálice de Médoc, Teodoro!... Têm uma marinha formidável! O exército, que outrora julgava destroçar o estrangeiro com dragões de papelão donde saíam bichas de fogo, tem agora táctica prussiana e espingarda de agulha! Grave! 

– E todavia, general, no meu país, quando, a propósito de Macau, se fala do Império Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e dizem negligentemente: «Mandamos lá cinquenta homens, e varremos a China...»

A esta sandice – fez-se um silêncio. E o general, depois de tossir formidavelmente, murmurou, com condescendência:

– Portugal é um belo pais...

Eu exclamei com secura e firmeza:

– É uma choldra, general.

A generala, colocando delicadamente à borda do prato uma asa de frango, e limpando o dedinho, disse:

– É o país da canção de Mignon. É tá que floresce a laranjeira...

O gordo Meriskoff, doutor alemão pela Universidade de Bona, chanceler da Legação, homem de poesia e de comentário, observou com respeito:

– Generala, o doce país de Mignon é a Itália: "Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira dá flor?" O divino Goethe referia-se à Itália, Italia mater... A Itália será o eterno amor da humanidade sensível!

– Eu prefiro a França! – suspirou a esposa do primeiro-secretário, uma bonecazinha sardenta, de cabelo arruivascado.

– Ah! a França!... – murmurou um adido, revirando um bugalho de olho terníssimo.

O gordo Meriskoff ajeitou os óculos de oiro:

– A França tem um mal, que é a Questão Social...

– Oh! a Questão Social! – rosnou sombriamente Camilloff.

– Ah! a Questão Social! ... – considerou ponderosamente o adido.

E discreteando com tanta sapiência, chegámos por fim ao café.

Au descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu braço, murmurou-me junto à face:

– Ai, quem me dera viver nesses países apaixonados, onde verdejam os laranjais!..

– É lá que se ama, generala – segredei-lhe eu, levando-a docemente para a escuridão dos sicômoros...

V

Foi necessário todo um longo Verão para descobrir a província onde residira o defunto Ti Chin-Fu!

Que episódio administrativo tão pitoresco, tão chinês! O serviçal Camilloff, que passava o dia inteiro a percorrer os yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada de um velho mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Império; e depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia nesta curiosidade um atentado contra os ritos sagrados! Então, satisfeito, o príncipe Tong permitiu que se fizesse o inquérito imperial: centenares de escribas empalideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatórios sobre papel de arroz; misteriosas conferências sussurraram incessantemente por todas as repartições da cidade Imperial, desde o Tribunal Astronómico até ao Palácio da Bondade Preferida; e uma população de coolies transportava da Legação russa para os quiosques da Cidade Interdita, e daí para o Pátio dos Arquivos, padiolas estalando ao peso de maços de documentos vetustos... 

Quando Camilloff perguntava pelo resultado, vinha-lhe a resposta satisfatória que se estavam consultando os Livros Santos de Lao-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor Ha-Chu. E para calmar a impaciência bélica do russo, o príncipe Tung remetia, com estes recados subtis algum substancial presente de confeitos recheados, ou de gomos de bambu em calda de açúcar...

Ora enquanto o general trabalhava com fervor para encontrar a família Ti Chin-Fu – eu ia tecendo horas de seda e oiro (assim diz um poeta japonês) aos pés pequeninos da generala...

Havia um quiosque no jardim sob os sicômoros, que se denominava, à maneira chinesa, do Repouso Discreto: – ao lado um arroio fresco ia cantando docemente sob uma pontezinha rústica pintada de cor-de-rosa. As paredes eram apenas um cadeado de bambu fino forrado de seda cor de ganga: o sol, passando através delas, fazia uma luz sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divã de seda branca, de uma poesia de nuvem matutina, atraente como um leito nupcial. Aos cantos, em ricas jarras transparentes da época Yeng, erguiam-se, na sua gentileza aristocrática, lírios escarlates do Japão. Todo o soalho estava recoberto de esteiras finas de Nanquim; e junto à janela rendilhada, sobre um airoso pedestal de sândalo, pousava aberto ao alto um leque formado de lâminas de cristal separadas, que a aragem entrando fazia vibrar, numa modulação melancólica e terna.

As manhãs do fim de Agosto em Pequim são muito suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os oficiais da Legação, estavam sempre na Chancelaria fazendo a mala para São Petersburgo.

Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de cetim as ruazinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do Repouso Discreto:

– Mimi?

E a voz da generala respondia, suave como um beijo:

– All right...

Como ela era linda vestida de dama chinesa! Nos seus cabelos levantados alvejavam flores de pessegueiro; e as sobrancelhas pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nanquim. A camisinha de gaze, bordada a soutache de filigrana de oiro, colava-se aos seus seios pequeninos e direitos: vastas, fofas calças de foulard cor de rosa de ninfa, que lhe davam uma graça de serralho, recaíam sobre o tornozelo fino, coberto de meia de seda amarela: – e apenas três dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...

Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novgorod; e fora educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabelo empoado, e parecia a grossa litografia cossaca de uma dama galante de Versalhes...
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Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com