segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Caldeirão Poético XVII



“Não Será Sempre Assim”

Não será sempre assim... Quando não for;
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito o estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer; fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
"Goza a ventura de que já gozei:"

Depois, desviando os olhos, de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.

(Tradução de Manuel Bandeira)


“Os lábios que meus lábios beijaram ”

Os lábios que meus lábios beijaram, onde e quando,
eu esqueci, e os braços que se estenderam
sob minha cabeça até o amanhecer... Mas a chuva
se povoa de espectros esta noite; eles batem à janela
e espiam pelos vidros atrás de uma resposta.
Uma dor silenciosa em minha alma se agita,
rapazes esquecidos que não voltarão mais
a procurar-me entre lágrimas à noite.

Assim também no inverno a árvore solitária
ignora quais os pássaros que se foram um a um
e, no entanto, sente mudos seus galhos, mais que antes;
não sei contar os amores que se foram um a um,
sei apenas que o verão cantou em mim
um curto instante, e já não canta mais...

(Tradução livre de Sérgio Milliet)


“Num Certo Lugar Da Alma”

Num certo lugar da alma, entre muros de olvido
em terra estéril, seca, enterram-se os amores
que nasceram sem vida; em chão sempre querido
de onde, sonho após sonho, a vida se abre em flores;

os que intentavam ter seu ninho, construído
quando os minutos maus, terríveis, caçadores
atingiram-lhes a asa... e os que apenas têm sido
piedoso lenitivo a aplacar nossas dores!

A tais sepulcros, sei, devemos o tributo
que a nossa alma nos cobra o seu denso mistério...
Por mortos tais, porém, eu nunca ponho luto

e ao entrar em mim mesma, - esse lugar esquivo...
Que numa tumba está, desse meu cemitério
um grande amor que tive e que enterraram vivo!

(Tradução de Luis Antonio Pimentel)


Coisas de Pássaros

Quase a romper-se parecia o fino
tecido, ao voo palpitante e belo
dos teus seios que, ansiavam num anhelo,
se transformar num manancial divino

de leite e vida, amor, ternura e mel.
Oh, lindos seios, túmidos arminhos,
que dás aromas de fragrantes vinhos!
-redondezas de pombos pelo céu!

Amo-te as formas e o perfume; canto
perfume e forma do teu duplo encanto.
Oh, nobre encanto que a  atrair, deleitas,

doce mistério da estação mais pura
bendita fonte de vital doçura
frutos que prenunciam mil colheitas!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)

Fonte:
J G de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. 
vol. III (Poesia Universal - Européia e Americana), 1966.

Hans Christian Andersen (A Margarida)


No campo, perto da grande estrada, estava situada uma gentil morada que você já deve ter notado. Na frente dela se encontra um jardim com flores e uma paliçada verde; não longe dali, no meio da erva fresca, floria uma pequena margarida. Graças ao sol que a aquecia com seus raios assim como às grandes e ricas flores do jardim, ela se desenvolvia a cada hora. 

Certa manhã, inteiramente aberta, com suas pequenas pétalas brancas e brilhantes, que se pareciam com um sol em miniatura rodeado de seus raios, quando a percebiam na relva e a fitavam como a uma flor insignificante, ela se inquietava um pouco. Vivia contente, respirava as delícias do calor do sol e ouvia o canto do rouxinol que se elevava nos ares. E assim a pequena margarida estava feliz como num dia de festa, embora fosse apenas segunda- feira. 

Enquanto as crianças, sentadas no banco da escola, aprendiam as suas lições, ela, sustentada por seu caule verde, aprendia sobre a beleza da natureza e sobre a bondade de Deus, e parecia-lhe que tudo o que sentia em silêncio, o pequeno rouxinol exprimia perfeitamente em suas canções felizes. Assim ela olhava com uma espécie de respeito o pássaro feliz que cantava e voava mas não sentia a mínima vontade de fazer outra coisa. 

– “Eu vejo e ouço - pensou ela –  o sol me aquece e o vento me beija. Oh! eu faria mal se me queixasse?”

 Dentro do jardim havia uma quantidade de flores lindas e viçosas; quanto menos perfume tinham mais bonitas eram. As peônias se inflavam afim de parecerem maiores do que as rosas, mas não é o tamanho que faz uma rosa. As tulipas brilhavam pela beleza de suas cores e se pavoneavam com pretensão, não se dignavam lançar um olhar sobre a pequena margarida, enquanto que a pobre as admirava dizendo: 

– “Como são ricas e belas! Sem dúvida o pássaro maravilhoso vai visitá-las. Obrigada, meu Deus, por poder assistir a esse belo espetáculo?” 

E, no mesmo instante, o rouxinol levantava seu voo, não para as peônias e às tulipas, mas para a relva ao lado da pobre margarida que, louca de alegria, não sabia mais o que pensar. O pequeno pássaro começou a saltitar em volta dela cantando: 

– Como a relva é macia! Oh! 

A música encantando a florzinha de coração de ouro e vestido de prata! Não se pode fazer uma ideia da bondade da pequena flor. O pássaro a beijou com seu bico, cantou à sua frente, depois subiu para o azul do céu. 

Durante mais de um quarto de hora, a margarida não pôde se refazer da sua emoção. Um pouco envergonhada, mas orgulhosa no fundo do coração, ela olhou para as outras flores do jardim. Testemunhas da honra de que fora alvo, elas deveriam compreender a sua alegria, mas as tulipas ainda estavam mais rígidas do que antes, sua figura vermelha e pontuda exprimia seu despeito. As peônias levantavam a cabeça com soberba. Que sorte para a margaridinha que elas não pudessem falar! Teriam dito coisas bem desagradáveis. A florzinha apercebeu-se e ficou triste com aquele mau humor. 

Alguns instantes depois, uma menina armada de uma grande faca afiada e brilhante entrou no jardim, aproximou-se das tulipas e cortou-as uma a uma. 

 – “Que infelicidade!”, disse a margaridinha suspirando, “Eis uma coisa pavorosa!” 

E enquanto a menina levava as tulipas, a margarida se alegrava por não ser mais do que uma florzinha no meio da relva. Apreciando a bondade de Deus e cheia de reconhecimento, ela fechou suas folhas no fim do dia, adormeceu e sonhou a noite inteira com o sol e o pequeno pássaro. 

Na manhã seguinte, quando a margarida abriu suas pétalas ao ar e à luz, reconheceu a voz do pássaro, mas seu canto era muito triste. O coitado fora aprisionado dentro de uma gaiola e suspenso na varanda. Cantava a felicidade da liberdade, a beleza dos campos verdejantes e as antigas viagens pelos ares. A pequena margarida bem que quisera ir em seu auxílio, mas que fazer? Era uma coisa difícil. A compaixão que ela sentia pelo pobre pássaro cativo fez com que se esquecesse das belezas que a rodeavam, o doce calor do sol e a brancura extasiante de suas próprias pétalas. 

Logo dois meninos entraram no jardim, o mais velho levava na mão uma faca comprida e afiada como a da menina que cortara as tulipas. Dirigiram-se para a margarida que não podia compreender o que eles queriam. 

– Aqui nós podemos levar um belo pedaço de erva para o rouxinol! - disse um dos meninos, e começou a cortar um quadrado profundo em volta da pequena flor. 

– Arranque a flor! – disse o outro. 

Ao ouvir essas palavras a margarida tremeu de medo. Ser arrancada significava perder a vida, e jamais ela gozara tanto a existência como naquele momento em que esperava entrar com a grama na gaiola do pássaro cativo. 

– Não, deixemo-la aí! - respondeu o maior - Ela está muito bem colocada. 

E assim ela foi poupada e entrou na gaiola do pássaro. O pobre pássaro, lamentando amargamente o seu cativeiro, batia com as asas nos ferros da gaiola. E a pequena margarida não podia, malgrado todo o seu desejo, fazê- lo ouvir uma palavra de consolo. E assim se passou o dia. 

– Não há mais água aqui? - gritava o prisioneiro – Todos saíram sem me deixar uma gota de água. Minha boca está seca e tenho uma sede terrível! Ai de mim! Vou morrer, longe do sol brilhante, longe da fresca erva e de todas as magnificências da criação! 

Mergulhou o bico na erva úmida a fim de refrescar- se um pouco. Seu olhar caiu sobre a pequena margarida. Fez um sinal amistoso e disse ao beijá-la: 

– Você sim, pequena flor, perecerá aqui! Em troca do mundo que eu tinha à minha disposição, deram-me algumas folhas de relva e você como companhia. Cada folha de erva deve ser para mim uma árvore, cada uma de suas pétalas brancas uma flor odorífera. Ah! você me faz lembrar tudo aquilo que eu perdi! 

– “Se eu pudesse consolá-lo!”, pensava a margarida, incapaz de fazer o mínimo movimento. No entanto, o perfume que ela exalava tornava- se cada vez mais forte, o pássaro compreendeu e, enquanto enfraquecia com uma sede devoradora que o fazia arrancar todos os pedaços de relva, tomava cuidado para não tocar na flor. 

A noite chegou, ninguém estava lá para levar uma gota de água para o pobre pássaro. Então ele abriu suas belas asas sacudindo-as convulsivamente e fez ouvir uma pequena canção melancólica. Sua cabecinha se inclinou para a flor e seu coração ferido de desejo e de dor cessou de bater. A esse triste espetáculo, a margaridinha não pôde, como na véspera, fechar suas pétalas para dormir, traspassada pela tristeza, caiu ao solo. 

Os meninos não chegaram senão no dia seguinte. Ao verem o pássaro morto, choraram muito e abriram uma sepultura. 0 corpo encerrado numa linda caixa vermelha foi enterrado realmente, e sobre seu túmulo semearam pétalas de rosa. Pobre pássaro! enquanto ele vivia e cantava, haviam-no esquecido em sua gaiola e deixaram-no morrer de sede. Depois de sua morte, choravam-no e enchiam-no de honrarias. A relva e a margarida foram jogadas no pó da estrada, e ninguém nem pensou que algum dia ela tivesse podido amar tão ternamente o pequeno pássaro.

Fonte:

domingo, 2 de dezembro de 2018

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira (Poemas Diversos)



ARAUCÁRIA I

Tanta beleza... 
Na imponente Araucária
Majestosa no papel de realeza.
- Esplêndida e cheia de vida.

Resistente às tempestades
Aos ventos e aos granizos.
Galhos formando copas
- Um brinde ao infinito.

Araucária - Madeira de lei
Como contestar? não há.
É o Pinheiro de grande valor
- Símbolo do Paraná.

A Gralha azul, em voos livres, 
O pinhão vai plantar 
Carregando no bico as sementes
- Para o pinheiro nunca acabar.
_______________________
ARCO-ÍRIS

Olho para o céu e vejo o arco-íris
Cheio de encantamento e beleza
Em dias de chuvas de verão
Enfeitando a vida e a natureza.

Arco-íris de sete cores:
O vermelho da paixão, o laranja de lindeza mil 
O amarelo que reflete luz,
O verde da esperança, o azul e o azul de anil. 

Ver o arco-íris é sensacional ...
Imagens e cores iluminam e ofuscam
Emanam sentimentos de amor e saudade
De magia e vida.
- e que vida!
_____________________________
ENCRUZILHADAS

A trajetória
dos caminhantes
e errantes da vida
já vem traçada?

Não!
É uma incógnita constante.
Encontram-se nas encruzilhadas da vida.
Na ternura do seu viver.

Campeia-se a melhor estrada
para seguir em frente.
Dentro do baú está o mapa
a mostrar todos os caminhos.

O mapa da ciência indica dedicação
ao estudo e ao trabalho.
O mapa da sabedoria
inclui também silêncio e reflexão.

O mapa da solidariedade
revela união, aconchego, verdade.
Encruzilhadas muitas:
como escolher sem se perder?

Onde encontrar a felicidade
e suas flores de todas as cores?
Estará ela no trotear da vida
em suas encruzilhadas?
_________________________
FELICIDADE

Felicidade
é coração seguro.
Mel e doçura
agora e no futuro.

Felicidade
é olhar de amor,
sorriso de luz.
É cantiga de ninar,
aconchego e paz.

Felicidade
é amor-volúpia,
estado de graça,
escolha da vida.
não importa a idade,
lugar ou cidade.

Felicidade
mora na mente,
na sabedoria do mestre,
na imensidão do cosmo,
nos deleites do coração.

Felicidade
encontra-se no amigo,
no afago do bem-querer,
na emoção da arte,
na estesia poética,
na vida a escorrer.
__________________
NATUREZA

Trovões de sons musicais
distantes!
Relâmpagos de efeitos especiais!
É a chuva que cai generosa.

A chuva passa, o Rei aparece
gigantesco: o Sol.
Depois, estrelas brilham,
surge a Lua,
a Rainha da noite
de esplendor sem fim.

Doce é sentir o calor do Sol
e tudo que reluz em torno a mim.
______________________
ROSAS

Será
que as rosas vermelhas
simbolizam o amor?

Pois...
no dia dos namorados o presente predileto
são os botões de rosas vermelhas.

Dádiva...
É receber rosas em qualquer data,
é alegria duradoura, é gratificante, é sinal de carinho.

Pensei...
quantas rosas já ganhei em minha vida?
Não sei.

Sei
que todas as vezes que as recebi
senti gratidão, respeito, doçura e muito mais.

Senti
o abraço apertado do eterno enamorado,
apaixonado, com juras de amor eterno.
_____________________________________
VIVER

Viver é respirar ao vento,
contemplar o orvalho da manhã.
No horizonte... brilho e raios de sol.

Viver é sentir o aroma das flores
multicores que enfeitam nossos dias.
É percorrer os jardins na primavera.

Viver é cantar e encantar
ao romper da aurora,
encher o mundo de paz, arte e poesia.
_______________________

Fontes:

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira

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Maria Antonieta Gonzaga Teixeira nasceu em Jataí, sudoeste de Goias, cursou Licenciatura em Pedagogia na Universidade do Oeste Paulista, em Presidente Prudente/SP e no Rio de Janeiro formou-se em Educação Familiar na PUC. Pós-Graduação em Didática em Jaboticabal/SP e Pós-Graduação em Psicopedagogia, em Tupi/SC.

Em Castro/PR dedicou-se à educação e a pintura, especialmente da natureza, retratando paisagens belíssimas, algumas das quais ilustram o livro Dos Pequizeiros às Araucárias.

Participou de diversos Congressos Internacionais de Educação em diversas cidades do Brasil.

Palestrante nas escolas da cidade de Castro, Carambeí, Tibagi e distrito de Socavão: palestras de prevenção às drogas, orientação e formação para jovens, por mais de 20 anos.

-Título na Câmara Municipal de Castro - Cidadã Castrense - 2015.

Realizou exposições coletivas de poesia, em Curitiba/PR, Buenos Aires/Argentina, Viana do Castelo, Lisboa e Castelo Branco/os 3 em Portugal.

- Associada da Yapó Arte – Associação dos Artistas Plásticos de Castro desde sua fundação.
- Lions Clube de Castro.
- Membro Correspondente da Academia letras de Araraquara - ALUBRA. E da Academia de Letras de Teófilo Otoni.

PUBLICAÇÕES:
- “Dos Pequizeiros às Araucárias” (poemas), 2014.
- "Instituto Cristão: Arte e Vida”, (história), 2015.
- "Encruzilhadas”, (poemas), 2016.
- "Uma VIDA: Affonso e Marieta" (biografia), 2018.

- Participação em diversos livros e em revistas digitais. 

Fontes:

Malba Tahan (O Mercador de Sonhos)




Entrei. No meio da sala, mal iluminada e forrada de tapetes amarelos, avistei um homem alto, pálido, de barbas grisalhas, que se dirigiu para mim vagarosamente. Ostentava largo turbante de seda branca, onde cintilava uma pedra que não pude classificar. No seu semblante havia cansaço e esse não sei quê de misterioso notado em todos quantos mercadejavam com a magia. Era o famoso feiticeiro hindu. Os marroquinos do bairro, com aquela precisão com que o vulgo geralmente apelida os tipos populares, haviam-no denominado “o mercador de sonhos”.

— Que desejais, ó jovem? — perguntou, fitando em mim os seus olhos negros e perspicazes.

— Afirmaram-me — respondi — que o senhor possui, graças a certos fluidos mágicos, o estranho poder oculto de fazer com que uma pessoa tenha o sonho que quiser. Sou curioso. Quero experimentar os encantos de sua magia, a força de seus fluidos maravilhosos. Quero sonhar.

— É verdade, ó muçulmano! É verdade — confirmou o mago indiano. — Tenho, realmente, esse dom raro e precioso de poder proporcionar às pessoas que me procuram todas as alegrias e todos os prazeres de um sonho desejado.

E, apontando para uma larga poltrona escura que estava a um canto, disse-me com gentileza:

— Senta-te e dize-me: com quem desejas sonhar? Que espécie de sonho mais te agrada, ó maometano?

Contei-lhe então o motivo único da minha visita àquele antro misterioso da magia-negra.

— Antes de tudo — comecei — devo dizer-lhe que sou um indivíduo excessivamente romântico e idealista. Sempre senti a forte atração das fantasias. Ultimamente, durante uma festa militar em Marraqueche, conheci certa jovem cristã, filha de um francês de alta linhagem, que exerce funções diplomáticas na corte do sultão. Apaixonei-me loucamente pela rumie (apelido que os árabes dão aos cristãos franceses), mas não sei ainda se sou correspondido. Não obstante, desejo sonhar uma vez ao menos com a minha amada, um sonho claro e perfeito! Nesse sentido já fiz o possível, mas os meus sonhos povoam-se de imagens quase sempre desconexas, em meio das quais nunca vislumbrei a dona dos meus enlevos, a inspiradora do meu grande amor!

— E qual é o nome dessa jovem ideal? — perguntou-me o feiticeiro.

— Susana de Plassy.

— Curioso — observou o famoso ocultista, passando vagarosamente a mão larga pela testa bronzeada — muito curioso! Ontem, ao cair da tarde,  fui  procurado  por  uma  jovem cristã que aqui apareceu acompanhada por uma escrava moura: a minha formosa visitante pediu-me que a fizesse sonhar com um dos oficiais da guarda do sultão, Omar Ben-Riduan! Indaguei do seu nome e soube que a jovem se chamava Susana de Plassy!

Ao ouvir semelhante revelação, um frêmito me percorreu o corpo todo e levantei-me como se fosse impelido por alguma possante mola de aço.

— Omar Ben-Riduan? Omar Ben-Riduan é o meu nome! Omar Ben-Riduan sou eu! Se ela pediu que a fizesse sonhar comigo, é certo que me ama também.

— Felicito-o, ó jovem — replicou o indiano, batendo-me, carinhoso, no ombro. — É muito raro ver-se uma formosa cristã apaixonada por um muçulmano. Bem sabes o imenso abismo que separa os adeptos de Mafoma daqueles que professam a religião de Jesus!

Louco de alegria, atirei um punhado de ouro ao velho feiticeiro e corri para casa. Sentia-me alucinado como se estivesse sob a ação perturbadora de forte dose de haxixe.

Reuni alguns de meus mais íntimos, contei-lhes o que havia ocorrido e pedi-lhes que me ajudassem a encontrar uma solução para o meu caso sentimental.

El Hadj (1) Ben Cherak, homem sensato e muito relacionado na alta-sociedade marroquina, disse-me, sem hesitar:

— Conheço muito bem o pai de tua apaixonada. É um cristão mau como um emir e mais orgulhoso do que um paxá. Detesta os árabes e jamais consentirá que sua filha se case com um muçulmano! Só vejo, portanto, uma solução: terás de raptar a jovem Susana! E isso só conseguirás com a sua cumplicidade!

Seguindo o conselho do prudente Ben-Cherak, fiz, naquela mesma tarde, os preparativos para a minha fuga com a linha rumie. Passei a fil-leile (2) a conversar com os amigos sobre a minha singular aventura.

Já tarde da noite, chegou à minha casa, de volta, o portador que eu enviara ao rico palacete do nobre francês. Fui então informado de que Susana oito dias antes havia partido para a Europa, a fim de lá se casar com um fidalgo escocês.

Percebi, no mesmo instante, que fora vítima de vergonhosa mistificação do indiano.

Revoltado e furioso por causa do papel ridículo que havia feito, voltei novamente ao antro do intrujão, resolvido a tirar tremenda desforra.

O velho hindu — depois de atender a vários clientes que o esperavam — recebeu-me calmo, cínico, o semblante plácido de quem nunca praticara ação censurável.

Gritei-lhe, ameaçando-o com o punho fechado:

— Miserável! Por que mentiu? Susana nunca veio aqui a este antro nojento!

— Vamos devagar, meu jovem amigo — replicou o charlatão, imperturbável, segurando-me pela mão que o ameaçava. — Não fiz senão o que tu me pediste. Vi, casualmente, o teu nome gravado no cabo do rico punhal que trazes à cinta. Jogando facilmente com o teu nome, pude proporcionar-te o encanto de uma ilusão efêmera. Menti para que pudesses não somente sonhar com um amor impossível como também acreditar nele!

E concluiu, sardônico, terrível:

— Afinal, o que vieste buscar aqui? Não foi um sonho? Não foi uma ilusão? Pois bem, eis, precisamente, o que te vendi: Um sonho... uma ilusão...
________________________
Notas:
(1) El-Hadj — titulo honroso que precede sempre o nome de todo muçulmano que já fez a peregrinação à Meca.

(2) Fil-leile — expressão intraduzível. Significa, mais ou menos, a parte da noite que se segue ao pôr-do-sol.

Fonte:
Malba Tahan. Minha vida querida.

sábado, 1 de dezembro de 2018

Neyd Montingelli (Poemas Diversos)


OS DEUSES DO OLIMPO

Do alto da montanha
Descem os deuses poderosos
Virtuosos, imponentes, valorosos.
Aos homens impõem sua campanha.
12 deuses a explicar,
Os fenômenos humanos,
Os acertos, os enganos,
Ora a punir, ora a exaltar.
Sentenciavam os mortais
À vida, à morte, ao sofrimento
Não importando o lamento
A pena era dada aos iguais
Mas, pela lealdade,
Agraciados com virtude,
Poder, força e magnitude.
Alguns, dos deuses eram a continuidade.

OS MORTAIS

Aos deuses se curvavam,
aos deuses suplicavam.
Rendiam-se aos seus encantos,
e pediam a proteção do seu manto
Com os deuses se deitavam
e semideuses geravam.
Outros, no entanto,
veneravam como a um santo.
Quando pela terra prosperavam,
aos deuses agradeciam.
Se a terra os deixava em pranto,
dos deuses era o desencanto.

TEMPLOS DOS DEUSES

Para os deuses construíram moradas,
com colunas de pedra, com ostentação.
Riqueza e beleza juntaram nos templos,
para agradar ao mito da exortação.
Oferendas e súplicas entregavam,
pela culpa, pelo medo, pelo amor.
Estátuas de marfim, ouro e prata,
dos deuses ficavam no seu interior.
Hoje restam as ruínas,
as colunas dóricas, jônicas e coríntias
em pé através dos tempos.
Até os nossos dias.

UM PAI

Do ventre de minha mãe
para os braços do meu pai.
Dos seios de minha mãe 
para o colo do meu pai.

Com amor me cobriu,
com mantas me aqueceu.
Com alimentos me nutriu
seus exemplos, me forneceu.

Minhas primeiras portas, abriu, 
meus primeiros passos, conduziu.
Minhas primeiras escadas, construiu.
na direção da vida me instruiu.

Agora, devo meus caminhos trilhar
e a meu pai agradecer.
Sempre ao seu abraço voltar,
e o seu amor reconhecer.

JUNINA

Dança, pipoca, canjica e quentão,
alegram a vida do brasileiro em junho.
Tão festivo, tão simples, tão cristão.
Festas juninas são meros testemunhos,
do louvor aos santos protetores do coração.
De prece em prece, de simpatia em simpatia,
A moça pede um noivo, o moço pede um amor.
Para os problemas pedem anistia,
que em rezas, clamam com ardor.
São Pedro, Santo Antônio e São João,
recebem homenagens dos crentes.
Pedem a eles intercessão,
e agradecem as graças benevolentes.

LAGARTIXA FUJONA 

A lagartixa subia e descia pela porta. 
Procurava uma saída, 
ela queria ir até a horta. 
Pelos insetos se sentia atraída. 

Através do vidro da janela, 
apreciava os bichinhos lá de fora. 
Queria comer uma larva de berinjela 
ou um fede-fede de amora. 

Encontrou então uma fresta 
e escapou para o quintal. 
Achou que ia fazer a festa 
Mas, só se deu mal, mal, mal. 

Sem a proteção da casa, 
Uma lagartixa fica indefesa. 
Cobras, gambás e os que têm asa, 
atacam com rapidez essa presa. 

Ai, ai, ai, lagartixa esperta. 
Rápido, rápido vai se esconder. 
Logo, logo será descoberta 
Se para a casa não correr.

BUSCA

Todos em busca do amor, da estima perfeita
Com sintonia, com harmonia, com alegria.
A vida de igualdade, lealdade e amizade.
Alguém para dividir todas as conquistas
Amor incondicional, onde ele estará?
Com confiança, com segurança, com aliança.
Amigo, meu companheiro, aliado e parceiro.
Divido meu chão, meu pão, dou meu coração.
Ao encontrar esse amor, a busca cessará. 
A vida então se completará.
Com esplendor, com ardor, sendo seu provedor.
Entra, incorpora, sucumbe e no meu ser mora.


Fontes:
Carmo Vasconcelos. Revista Eisfluencias (varios ns.)

Neyd Montingelli



Neyd Maria Makiolka Montingelli nasceu em Curitiba, em 1957. 

Formou-se em Psicologia, Nutrição e Laticínios. 

Aposentada pela Caixa Econômica Federal, já teve um laticínio.

Tem 27 livros solo e participa em 121 antologias. 

Foi premiada em concursos de contos e poesias. 

Membro da Academia de Letras do Brasil/Araraquara e ALUBRA/SP, Centro de Letras do Paraná, Núcleo de Letras e Artes de Buenos Aires e Lisboa, Embaixada da Poesia e ALMAS/Ba. 

Recebeu troféu Cecília Meireles, Cora Coralina, Federico Garcia Lorca; Medalha Monteiro Lobato; 

Medalha Melhores Poetas e Troféu Melhor Cronista, Melhor Contista, 

Menção Honrosa Concurso Paulo Leminski, entre outros. 

O livro Cavalos e contos recebeu o prêmio de Melhor Livro de Contos de 2015/16 em Ouro Preto. 

Recebeu o prêmio Literarte 2017, pelo conjunto da obra.

Humberto Rodrigues Neto (Sonho de Criança)


Após o término da aula de Evangelização Infantil, no Centro Espírita, Raquel, uma das meninas conversa com sua coleguinha Márcia, que se encontra algo triste:

— Marcinha... Está havendo algum problema com você?

— Não... Por que você está me perguntando isso?

— Porque hoje, na classe, achei que você estava um pouco triste...

— É... Ando um pouco chateada. São os meus pais, sabe?

— Que é que têm os seus pais?

— Sei lá... às vezes fico pensando que eles gostam mais da televisão do que de mim.

— Que é isso? Mas que bobagem!

— Bobagem? Olha: quando a minha mãe está vendo a novela eu não posso dar um pio. Não permite 
que eu abra a boca! Isso é vida?

— Mas, Raquel... Não pense que a minha mãe seja muito diferente. É claro que às vezes, durante o intervalo, por exemplo, me ajuda em alguma dúvida nas lições da escola.

— Ah, então sua mãe é um pouco mais legal que a minha. E o seu pai?

— Bem... aí a coisa fica um pouco mais difícil. Mesmo assim, uma vez ou outra ele me dá um pouco de atenção enquanto está assistindo ao futebol.

— Pois com meu pai a coisa já complica.

— É mesmo? Como, assim?

— Ah... ele chega em casa, joga a pasta e o paletó numa cadeira e nem sequer me dá um beijo. Liga a televisão no futebol ou no noticiário e não quer nem saber de nada. Só me dá algum atenção nos intervalos, e mesmo assim, ó... bem rapidinho, sabe?

— Eu entendo, Marcinha... Mas, quantas vezes a D.ª Izabel, nossa Evangelizadora, não nos disse para termos paciência com nossos pais? Às vezes sua mãe pode estar cansada, e...

— Cansada? Cansada disso tudo ando eu, Raquel!

— Calma, amiguinha... Calma... Vamos devagar, porque...

— E se a televisão queima... Ah... não dá outra: Eles correm como uns loucos e mandam consertá-la num instantinho. Não conseguem passar nem um dia sem ela!

— E quem é que passa sem televisão? O conserto tem que ser rápido, mesmo!

— Só que lá em casa, o conserto da TV é “vapt-vupt”! Mas quando é para me comprar um vestido novo... Chiii... Aquilo demora séculos!

— Mas, isso são provas que temos de sofrer nesta encarnação, conforme ouvi numa palestra.

— Eu sei disso, Raquel. Eu também aprendi numa palestra que a gente pode escolher o tipo de vida que deseja ter na outra encarnação. Só assim é que eu vou conseguir acabar com essa falta de atenção do meu pai e da minha mãe.

— Já sei. Você vai pedir para nascer em outro lar, como filha de outros pais, que sejam mais
compreensivos. É isso?

— Não, Raquel! Não é, não... Eu gosto muito deles dois. Vou pedir para tornar a nascer na mesma casa, no mesmo lar.

— Espere um pouco, Marcinha! Não entendi Desse jeito os seus problemas vão continuar.

— Não vão, não, Raquel. Já pensei em tudo, amiguinha! Nessa nova casa meus pais de hoje vão me adorar!

— Mas, de que forma você vai conseguir isso?

— Eu vou pedir para ser a televisão!

Fonte: