quarta-feira, 28 de abril de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 23, 24 e 25


O ANTICIRCO


— É preciso inventar alguma coisa — disse o sapo. — Alguma coisa de novo, surpreendente. Pular ao som do fandango paranaense já está me tirando a alegria de viver. Eu queria pular ao ritmo da Marselhesa, por exemplo.

— Não te fica bem a Marselhesa — ponderou o caxinguelê. — Não só é antiquada, como o teu jeito é mais para o folclore do Sul. Talvez uma
rancheira, uma polquinha de galpão fosse mais indicada. Mas o caxinguelê também não andava satisfeito com o seu número.

Ágil e serelepe como é de natureza, tinha de imitar o filho de Guilherme Tell, imóvel, com a maçã na cabeça, esperando a flechada paterna. O pai era representado por um macaco simpático, que alimentava o desejo de, lá um dia, acertar no caxinguelê.

— Não tenho vocação para estátua nem para vítima. Vou deixar este circo, a menos que me nomeiem gerente. Tenho vocação para gerente,
você sabia?

O sapo não sabia nada. Estava farto de fandango, que o obrigava a uma dança inconveniente para sua idade e condição. De resto, nenhum animal daquele circo sentia prazer executando o número que lhe deram. Era o circo mais inconformado que já existiu.

Seu dono ignorava isto, porque morava longe e nunca assistiu a uma
função.

O circo jamais pegou fogo. Seus animais descontentes constituíam a maior atração. Cada vez seduziam mais público. Era o anticirco.
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O ASSALTO

A casa luxuosa no Leblon é guardada por um molosso de feia catadura, que dorme de olhos abertos, ou talvez nem durma, de tão vigilante. Por isso, a família vive tranquila, e nunca se teve notícia de assalto à residência tão bem protegida.

Até a semana passada. Na noite de quinta-feira, um homem conseguiu abrir o pesado portão de ferro e penetrar no jardim. Ia fazer o mesmo com a porta da casa, quando o cachorro, que muito de astúcia o deixara chegar até lá, para acender-lhe o clarão de esperança e depois arrancar-lhe toda ilusão, avançou contra ele, abocanhando-lhe a perna esquerda. O ladrão quis sacar do revólver, mas não teve tempo para isto. Caindo ao chão, sob as patas do inimigo, suplicou-lhe com os olhos que o deixasse viver, e com a boca prometeu que nunca mais tentaria assaltar aquela casa. Falou em voz baixa, para não despertar os moradores, temendo que se agravasse a situação.

O animal pareceu compreender a súplica do ladrão, e deixou-o sair em estado deplorável. No jardim ficou um pedaço de calça. No dia seguinte, a empregada não entendeu bem por que uma voz, pelo telefone, disse que era da Saúde Pública e indagou se o cão era vacinado.

Nesse momento o cão estava junto da doméstica, e abanou o rabo, afirmativamente.
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O BEBEDOR TOTAL

— O senhor tem lista dos uísques importados?

— Aqui está. Tenho certeza de que encontrará a sua marca preferida.

Explicou que não era de preferir marca. Preferia todas. Seu prazer consistia em ir do Ancestor ao White Horse, não desprezando nenhum dos que começam pelas demais letras do alfabeto.

O gerente ficou assombrado. Que bebedor enciclopédico!

— Noto uma coisa. A lista me parece bastante lacunosa. O senhor não tem uísques das letras E, I, K, M, N, Q, T, U, X, Y e Z. É pena.

— Perdão, mas será que não bastam as cinquenta e tantas marcas que ponho à disposição?

— Não, infelizmente. Queria o abecedário completo.

— E… iria comprar todo ele?

— Comprar? Absolutamente não. Não pretendo comprar sequer uma garrafa. Com esses preços, nem mesmo as miniaturas, sabe? Eu sou bebedor de lista. A lista me invoca, me embriaga, me transporta ao sonho. Mas só uma lista bem completa. Obrigado, passe bem.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) V

SUSPIROS E SAUDADES


Depois de tantas perdas só restou-me
Na soledade,
Em que deixou-me a dor, para consolo
Roxa saudade.

Esta flor, tão estéril nos prazeres,
Quando em retiro
Quase sempre do seio magoado
Brota um suspiro.

Achava estes suspiros e saudades
Encantadores,
Embora fossem flores da tristeza,
Sempre eram flores.

Demais, quem tem das ditas deste mundo
Chegado ao termo,
Quem traz de ingratidões e desenganos
O peito enfermo;

Quem tem com a flor que às almas venturosas
Do prazer fala?
Que ao ver-lhe o coração trajando luto
Traja de gala?

A tristeza que tendes, minhas flores,
É vosso encanto.
E como éreis formosas orvalhadas
Pelo meu pranto!

Mas secastes também?! Faltou-vos água?
Demais tivestes.
Fogo? Desde nascidas sempre em chamas
De amor vivestes.

Secastes? Com razão, que destas flores
Certo não é
Verdadeiro alimento, água nem fogo
Faltando a fé.

Vivem com fogo e água, se dos prados
Nascem no chão;
Mas não se flores d’alma dentro d’alma
Nascendo vão.

Quando morta a f’licidade,
A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros que alvo têm?

Morta a fé, vai-se a esperança,
Como pois viver pudera
Saudade que não tem crença,
Saudade que desespera?

Onde as graças do passado,
Se altivo gênio sanhudo
O ceticismo nos brada,
Foi mentira, engano tudo?

Em nada creio do mundo:
Ludibrio da desventura
A felicidade me acena,
Só de um ponto — a sepultura.

Morreram minhas saudades,
E meus suspiros calados
Dentro d’alma pouco a pouco
Vão morrendo sufocados.
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À TERRA NATAL *

Adeus!... Vou procurar talvez um túmulo
Longe do teu regaço.
Nunca me foste mãe, mas sou teu filho,
Concede-me um abraço!

Abençoa-me! — Parto; dá-me a bênção!
Que ao filho desgraçado,
Mesmo o ser infeliz dá mais direitos
A ser abençoado.

És rica, eu nada tenho; mas ao nada
Me soube acostumar;
Dispenso os teus tesouros, mas a bênção
Não posso dispensar.

Adoro-a, quero-a, sim; porque custou-me
Aspérrimo desgosto,
Torturas inauditas, conservar-lhe
Sem manchas este rosto.

Quero de filial doce ventura
Encher meu coração,
Revendo nela, filho abençoado,
A minha filiação.

Nunca me foste mãe pelos carinhos;
Ao menos um sinal
Dá-me, dá-me de mãe, que sou teu filho,
Na bênção maternal.

Adeus!... Perdoa se me queixo; as queixas
Que exalo em minha dor
Ofender-te não devem, que são filhas
De meu ardente amor.

Esses braços ao filho que se aparta
Estende por quem és,
Que o filho por teus braços abraçado
Abraçará teus pés!...
–––––-
*Escrita quando o poeta partiu para a Bahia para concluir seu curso de Medicina.
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ÚLTIMO CANTO DO CISNE

Quando eu morrer, não chorem minha morte,
Entreguem meu corpo à sepultura;
Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha
Os andrajos que deu-me a desventura.

Não mintam ao sepulcro apresentando
Um rico funeral d’aspecto nobre:
Como agora a zombar me dizem vivo,
Digam-me também morto — aí vai um pobre!

De amigos hipócritas não quero
Públicas provas de afeição fingida;
Deixem-me morto só, como deixaram-me
Lutar contra a má sorte toda a vida.

Outros prantos não quero, que não sejam
Esse pranto de fel amargurado
De minha companheira de infortúnios,
Que me adora apesar de desgraçado.

O pranto, açucena de minh’alma,
Do coração sincero, d’alma sã,
De um anjo que também sente meus males,
De uma virgem que adoro como irmã.

Tenho um jovem amigo, também quero
Que junte em minha Essa os prantos seus
Aos de um pobre ancião que perfilou-me
Quando a filha entregou-me aos pés de Deus

Dos meus todos eu sei que terei preces,
Saudades, lágrimas também;
Que não tenho a lembrança de ofendê-los
E sei quanta amizade eles me têm.

E tranquilo, meu Deus, a vós me entrego,
Pecador de mil culpas carregado:
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,
E o muito que também tenho chorado.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Rubem Braga (O Amigo sonâmbulo)

Na semana passada chegou a Primavera; na semana que vem são as eleições, e no futebol já teve início o returno; eia, pois, ergue-te, cronista, e cumpre o teu dever. Mas o cronista sonha; nem as açucenas primaveris nem a cívica peleja nem o clamor do Maracanã o despertam; será morfina, será maconha, será amor? Será amor? Talvez apenas um vago sonho de amor. Ele sorri; alguém lhe falou da bem-amada de um amigo, a que se vestia de rendas negras e tinha ao ombro uma rosa-chá; sorri como quem manda em silêncio um recado: sede felizes. Para si mesmo ele não pretende isto; nem pensa.

Ama? Animula vagula, blandula essa que ama, sonâmbulo. Muito antigamente já terá sido mulher, e amor. Mas ficou tão longe, se fez tão longe, que é uma sombra junto a si, pairando... Amiga? Ele se humilha. A amiga é feito a crase, no tempo em que Ferreira Gullar era poeta e, no lugar de dizer ema lema eva leve leva leme, dizia: “a crase não foi feita para humilhar ninguém”, e ouvia o galo cantar, e sabia aonde; agora ninguém sabe mais. Talvez saibam, não digam.

Importa pouco. Os galos cantam em direção do Oriente; dê sua direita ao amor, fique de frente para o passado, terá o remorso à esquerda e a sombra da morte às suas costas. A boa sombra; a que virá crescendo devagar, e então você não sonhará, não desejará sequer beijar o pé da amada, não se angustiará, não será mais.

Esta é, na verdade, a grande consolação. Mas entrementes ainda estamos vivos, todos nós, mesmo ele, o sonâmbulo; e na vida há sol, há ventos, rios correndo, ondas a estourar nas pedras. Isso não desperta o sonâmbulo, mas o agita. Está dopado de amor.

Como lhe devolver a dignidade? A ele, que já teve gestos ásperos; e ia calado; ia; topava; era duro, viril. Amar não é viril. Isto é, amar assim, sem esperança de ser amado, amor de menino burro ou doente. O sentimento que ele tem de estar sobrando na vida, de ninguém precisar dele: vaga estima, tolerância amiga. Viajou.

“Ah, viajou? Mas escute, você já viu esse filme do Metro?” Ou: “Falar nisso, e aquele amigo dele que esteve na Rússia, como é que se chama?” Enfim, qualquer frase serve de necrológio ao desamado ausente.

Certo, Manuel Bandeira fala de uma “limpa solidão”, ou alguém disse isso dele. Não creio. Solidão limpa só com vassoura e aspirador permanente: a solidão do homem é cheia de detritos, lembranças, pequenos fantasmas que são como objetos inúteis, quebrados, em um porão, nomes riscados em um caderno de telefones, teias de antigas aranhas.

Mas por que lamentar o sonâmbulo? Ele sorri. Neste momento, ao menos, está feliz. Seus dedos movem-se, como se acariciassem os cabelos da amada, a esquiva nuca. Murmura: vem... Isso, entretanto, nos corta o coração. Podíamos prendê-lo em um banho turco para suar suas melancolias, mandar-lhe um jato de água fria, ataca–lo para que reaja, despertá-lo com gargalhadas para que acorde banhado em ridículo e chore, leve um tapa na cara, tome dexamyl spansule, morda pimenta malagueta, viva! Ou apelaremos para a psicanálise, o hipnotismo, a lavagem de cérebro, a propaganda subliminar durante o banho de mar?

Na verdade, temos outras coisas a fazer e desistimos tacitamente de jamais recuperar o sonâmbulo; vamos disfarçando, disfarçando até que um dia ele morra e então diremos sem muita hipocrisia: coitado.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Estante de Livros (O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna)

Eudoro Vicente manda uma carta a Eurico dizendo que lhe pedirá o seu bem mais precioso.

Na casa do comerciante, moram a filha Margarida, a irmã de Eurico, Benona, a empregada Caroba e, já há algum tempo, Dodó, filho do rico fazendeiro Eudoro. Dodó vive disfarçado, finge-se de torto, deformado e sovina. Assim conquistou Eurico, que lhe atribuiu a função de de guardião da filha, quem Dodó namora às escondidas.

O desenrolar dos fatos se desencadeia com a carta enviada por Pinhão, empregado de Eudoro e noivo de Caroba, empregada de Euricão. Eudoro informa que fará uma visita para pedir esse bem tão precioso a Eurico, que fica apreensivo, pois pensa que lhe pedirá dinheiro emprestado. Eurico insiste em de dizer pobre, repetindo as frases: "Ai a crise, ai a carestia".

Na sala da casa de Eurico, onde as cenas se desenrolam, há uma estátua de Santo Antônio, de quem Eurico é devoto, e uma antiga porca de madeira, a quem ele dedica especial atenção e que logo o público saberá que esconde maços de dinheiro.

Caroba, muito esperta, percebe que Eudoro pedirá margarida em casamento, é assim que ela entende o bem mais precioso de Eurico que o fazendeiro, pai de Dodó, quer saber. Então ela arma um circo para alcançar alguns objetivos: ganhar algum dinheiro, pois quer casar com Pinhão, casar Dodó e Margarida além de Eudoro e Benona, que já tinham sido noivos há muitos anos. Eudoro, viúvo, querias Margarida, mocinha; Benona, solteirona, queria Eudoro, fazendeiro; Margarida queria Dodó, pois o amava; Caroba e Pinhão se queriam; Euricão queria a porca, ou será que queria a proteção de Santo Antônio para a porca?

Caroba negocia uma comissão com Eurico para ajudá-lo a tirar vinte contos de Eudoro Vicente, antes que este peça dinheiro a Eurico. Acertam-se. Aí Caroba convence Benona que Eudoro virá pedi-la em casamento e se dispõe a ajudá-la. São então tramas de Caroba: fazer Eurico pedir vinte contos a Eudoro para o casamento (na realidade, para um jantar); convencer Benona de que Eudoro viria pedi-la em casamento; fazer Eudoro acreditar que pede Margarida; fazer Eurico crer que Eudoro pede Benona; armar um encontro entre Eudoro e Margarida na penumbra; ficar no lugar de Margarida, com o vestido dela.

Consequências das armações de Caroba: Dodó sente ciúme de Margarida, pois pensa que ela irá encontrar-se com Eudoro; Pinhão sente ciúme de Caroba quando sabe que ela irá em lugar de Margarida; Euricão desconfia que querem roubar sua porca recheada, pois ouve falarem em devorar porca e pensa ser a sua, quando é a do jantar que se encomendou para receber Eudoro; Pinhão desconfia de Eurico e o observa, porque este age estranhamente.

Na hora do encontro entre Margarida e Eudoro, Caroba tranca Margarida no quarto, manda Benona permanecer também no seu e vai, vestida de Margarida, receber Eudoro. Dodó vê Caroba e pensa ver Margarida, pois está com o vestido dela. Para não ter que se explicar, Caroba o empurra e tranca no quarto com Margarida. Caroba então veste roupa de Benona e esta a de Margarida. Caroba então recebe Eudoro vestida de Benona. Ele é enganado: pensa estar conversando com a antiga noiva, que se insinua a ele, na penumbra não percebe que é Caroba. Ela o leva ao quarto de Benona e o tranca com a ex-noiva, por quem agora já está novamente interessado.

Pinhão ao sair do esconderijo onde estivera observando a cena, vê Caroba e pensa ser Benona e tenta seduzi-la. Ela reage e bate em Pinhão e o manda esperar por Caroba, que tira as roupas de Benona e diz que acompanhou toda a cena, bate outra vez em Pinhão, mas na confusão começam a se beijar. Aí destrancam as portas dos quartos de Margarida e Dodó, Benona e Eudoro, e entram em outro.

Dodó e Margarida saem do quarto e pensam ter sido surpreendidos por Eurico, que entra em casa dizendo estar perdido. Na verdade Eurico havia saído para enterrar sua porca recheada dentro do cemitério. A conversa entre Eurico e Dodó é engraçada, pois ambos se enganam: Dodó fala de Margarida, enquanto Eurico fala da porca que desapareceu. Eurico pensa que o rapaz lhe roubou a porca, já que este o traiu. No desespero, Eurico finalmente revela que a porca estava cheia de dinheiro guardado há tantos anos.

Com os gritos da discussão, Pinhão e Caroba saem do quarto. Depois Eudoro e Benona do seu. A cena é divertida: são três casais que de repente estão juntos e felizes ante Euricão lamentando a perda da porca. Graças a Caroba os casais se entendem sem Euricão nem Eudoro perceberem o engano de que foram vitimas. Margarida desconfiou de Pinhão e afirmou que ele pegara a porca. Eurico lhe salta no pescoço e Pinhão acaba contando, mas exige vinte contos para dizer onde escondeu a porca, os vinte contos que Eurico conseguiu emprestados de Eudoro com a ajuda de Caroba. Com o vale do dinheiro na mão, mostra a porca que estava na casa mesmo.

Então, Eudoro faz Eurico perceber que aquele dinheiro era velho e havia perdido o valor. Eurico se desespera. Tentam dissuadi-lo da importância do dinheiro, mas ele manda todos embora e fica só, com a porca e o Santo, tentando entender o que aconteceu, qual o sentido de tudo que houvera.

Características da Obra de Sussuna:

Quando começamos a estudar a produção dos autos de Ariano Suassuna, não podemos dissociar esta análise das produções do escritor Gil Vicente. Ambos possuem semelhanças concretas, principalmente, com relação à:

1. Construção das personagens

cada personagem representa uma classe social - que é criticada - e, por vezes, possui um nome que o identifica a função que exerce na comunidade onde vive, ou apelidos cômicos, como acontece com João Grilo, Chico, a mulher do padeiro, todos do Auto da Compadecida; Gil Vicente identifica seus personagens como mercadores, padres, pobres, etc., sempre numa alusão às classes da hierarquização social da Era Humanista ( marca o fim da Idade Média );

2. Religiosidade

ambos os autores reforçam a manipulação que o clero exerce sobre o povo mais simples, compactuando com os interesses econômicos representados por coronéis, bispos (Ariano Suassuna) e por nobres, ricos (Gil Vicente); as figuras de diabos, anjos, Jesus e Nossa Senhora estarão presentes nas obras dos escritores, com a devida evolução de linguagem no caso dos textos de Suassuna - dentre essas a figura que rouba a cena é a do diabo pela sua força expressiva e sua posição de juiz das almas já que enumera as falcatruas dos outros personagens (efetuando, inclusive, uma rememoração da história que está sendo contada).

3. Crítica social

os períodos históricos em que os autos são escritos apresentam características semelhantes: grande desnivelamento social, fome, desmandos de poderosos e, em se tratando das obras de Suassuna, há o agravante dos fatores naturais que tornam a vida do sertanejo muito difícil.

4. Ironia

é a grande marca que identifica os autores e é o grande recurso utilizado para elaborar a crítica. Em Gil Vicente, há obras cuja ironia crítica serviu de modelo para as gerações seguintes, como em Auto da Lusitânia (e os personagens "Todo o mundo" e "Ninguém"). E em Ariano Suassuna, o mesmo será comprovado no reconhecido Auto da compadecida, mas também em O santo e a porca e em Farsa da boa preguiça.

Comparação com Plauto


Na apresentação de sua peça O Santo e a Porca (1957), Ariano Suassuna a sub-intitula de uma "Imitação Nordestina de Plauto", referindo-se à Aululária, do autor latino.

A palavra imitação, usada por Suassuna, nos remete ao conceito aristotélico de mímesis, cujo significado não representa apenas uma repetição à semelhança de algo, uma cópia, mas a representação de uma realidade, mais precisamente de uma revelação da essência dessa realidade.

Essa essência está representada, nessas duas obras, pela avareza humana.

Neste trabalho, pretendemos uma abordagem desse tema, sob o aspecto de como o objeto depositário da avareza foi tratado pelos dois autores: a panela, em Aululária; a porca, na comédia de Suassuna.

Optamos pelo enfoque simbólico dessa proposta, visto que a obra de Suassuna, que se declara uma imitação da de Plauto, mantém uma distância de mais de dois milênios da original e está contextualizada, tanto geográfica como culturalmente, numa distância não menor do que a temporal.

Nesse paralelo, destacamos a trajetória dos dois objetos que constituem o eixo norteador de toda a ação das duas peças.

Na comédia do autor latino (Plauto Titus Maccus - 250?-184? a.C.), de influência grega e estilo tipicamente romano, o velho avarento Euclião descobre na lareira de sua casa uma panela cheia de moedas de ouro deixada por seu avô. O casamento de sua filha com um velho rico é o motivo que origina toda a ação da peça. Os recursos utilizados por Plauto dão à comédia um ritmo ágil e hilariante, cheio de ambiguidades e desencontros. "O diálogo, como em todas as suas peças, lembra a fala rápida da comédia musical americana (e na verdade era representada com acompanhamento musical)" (GASSNER, 1974, p.112).

Ariano Suassuna retoma o tema e situa-o no Nordeste. Seu protagonista chama-se Euricão Árabe.

Na contracapa do livro de Suassuna (1984), Manuel Bandeira comenta as duas obras:

Plauto é o mais linearmente clássico, na sua pintura de um caráter de avarento; Suassuna é o mais complicado, não só pela maior abundância de incidentes na efabulação, como pela evidente intenção de moralidade filosófica; (...) e os elementos nordestinos da porca e seu protetor, o Santo (Santo Antônio) são os grandes achados de Suassuna, e o que confere o timbre de originalidade na volta ao velho tema.

Na sequência das duas narrativas, tanto a panela quanto a porca acompanham todo o ciclo de transformação interior dos respectivos protagonistas, o que nos induz a uma interpretação simbólica desse trajeto.

Tomamos como símbolos, na Aululária ou O Vaso de Ouro, o Deus Lar, a lareira, o templo da Fidelidade, o bosque de Silvano e o objeto representativo da avareza, a panela (vaso). Em O Santo e a Porca, temos como correspondentes o Santo Antônio, a sala, o porão, o cemitério e o objeto da avareza, a porca de madeira.

Considerando os costumes e as crenças inerentes às duas épocas retratadas pelos autores, cabe primeiramente um destaque à parte mística e mítica das duas peças.

Para os romanos, os Lares eram deuses domésticos, protetores de cada família e de cada casa, cultuados no lararium, uma espécie de oratório. Tinham um templo, no Campo de Marte, onde eram feitos os sacrifícios e as oferendas. Interessante destacar que, quando se tratava de sacrifício público, a vítima ofertada era o porco (SPALDING,1982).

Euclião, até o momento da perda de sua panela com o tesouro, invoca o deus Hércules, identificado com o deus grego Héracles, símbolo da força combativa. Os romanos também o tinham como divindade protetora dos bens materiais e dos bons lucros nos negócios.

Após a perda de seu tesouro, Euclião invoca Júpiter, que simboliza tanto a expansão material como o enriquecimento vital.

Santo Antônio, por sua vez, é um santo de grande devoção popular nos países de origem latina. No Nordeste, esse santo é grandemente festejado durante as chamadas festas juninas. É tido, também, como "santo casamenteiro".

Euricão Árabe, o velho avarento de O Santo e a Porca, invoca o santo, questiona-o, do início ao fim de sua aventura. Embora, em alguns momentos, oscile entre o santo e a porca, mantém-se fiel ao santo de sua devoção. Esta oscilação poderia representar o movimento entre espiritualidade e materialidade inerentes ao ser humano.

Euclião, no entanto, é a imagem da personificação da avareza. Apela para o deus ou divindade que melhor atender à necessidade de determinado momento.

Nesse contexto de crenças e costumes, a avareza das duas personagens está representada em dois objetos: a panela (vaso) com o ouro de Euclião, escondida na lareira, e a "porca de madeira, velha e feia (...) com pacotes de dinheiro" (SUASSUNA, 1984, p.13), depositada na sala de Euricão sob a imagem de Santo Antônio.

A lareira expressa o simbolismo da vida em comum, do centro da casa. Seu calor e sua luz aproximam as pessoas, é o centro da vida. Assim como a sala, tem o significado de "um santuário, no qual se pede a proteção de Deus, celebra-se o seu culto e guardam-se as imagens sagradas" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.536).

A panela e a porca de madeira eram guardadas, respectivamente, nesses dois ambientes domésticos - lareira e sala -; portanto, equivalentes.

O vaso com as moedas de ouro (a panela de Euclião) representa "um reservatório de vida (...), o segredo da vida espiritual, o símbolo de uma força secreta". Se o vaso for "aberto em cima, indica uma receptividade às influências celestes" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.932).

Por sua vez, a moeda traz uma imagem ambivalente: a de valor e a de alteração da verdade.

A porca, juntamente com o porco, são considerados símbolos universais. Este representa a impureza, a voracidade, as tendências obscuras, enquanto que a porca, divinizada desde os egípcios, simboliza a abundância e o princípio feminino de reprodução, de criação da vida.

Todo o sentido da vida de Euclião e da de Euricão, simbolizado na panela guardada na lareira e na porca de madeira guardada na sala ao pé do santo, foi ameaçado por um acontecimento inesperado: o casamento das filhas. É o início do processo de vivência da perda:

Euricão: Ai minha porquinha adorada! (...) querem levar meu sangue, minha carne meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a tranquilidade de minhas noites, a depositária de meu amor! (SUASSUNA, 1984, p.33-34)

Diante da ameaça, Euclião esconde seu tesouro no templo da Fidelidade, e Euricão, numa grande cova ("socavão"), no porão de sua casa.

No plano simbólico, o templo e a cova sintetizam o lugar dos segredos, a busca ao desconhecido. Para os romanos, em particular, o templo era de grande importância. Lá, eles veneravam seus deuses, acorriam para pedir graças e proteção, em troca de sacrifícios e oferendas Era, pois, o reflexo do mundo divino e de seus mistérios.

Impulsionados pela ameaça da perda de seus bens, cultivados durante toda a vida, Euclião e Euricão buscam novo esconderijo para seus tesouros. O primeiro esconde-o no bosque de Silvano; o segundo, no cemitério da igreja.

Silvano, para os romanos, era um deus campestre de significação ambígua: protegia a agricultura e presidia às florestas (silva, "floresta") e, ao mesmo tempo, era uma "espécie de bicho-papão" que causava medo às crianças.

Além de simbolizar o inconsciente, a floresta carrega o significado do vínculo que as árvores mantêm entre a terra (raízes) e o céu (copa).

Euricão esconde sua porca no cemitério da igreja, num socavão entre o túmulo de sua mulher e o muro. O socavão evoca o simbolismo da abertura para o desconhecido, no sentido do imanente ao transcendente; o túmulo, associado à morte, é o lugar da metamorfose, do renascimento, ou das trevas; o muro, também de significado ambíguo, simboliza a separação e a defesa.

Podemos sintetizar essa etapa da trajetória dos avarentos como de conflito existencial diante da perda, em direção a uma nova visão de mundo e renovação de valores.

Euclião agradece aos deuses, despede-se alegremente de sua panela e a dá de presente aos noivos.

Euricão, diante da constatação da realidade (seu dinheiro não tinha mais nenhum valor), sente-se traído pela vida. Melancolicamente, reconhece: "Um golpe do acaso abriu meus olhos (...). Que quer dizer isso, Santo Antônio? Será que só você tem a resposta?" (SUASSUNA, 1984, p.82).

Na comparação simbólica das duas comédias, vimos que os elementos representativos da avareza (a panela e a porca) podem ser associados às etapas marcantes da narrativa.

O primeiro momento (a panela e a porca; o Deus Lar e Santo Antônio) podemos caracterizar como o do potencial latente e inerente à natureza humana: o material e o espiritual. O poder de acumulação e a visão desses valores são representados, em Euclião e Euricão, pela avareza.

O segundo momento, podemos caracterizar como o do conflito e do início da transformação desses valores (o templo da Fidelidade e o porão): a busca ao desconhecido, ou seja, um momento de interiorização e reflexão das personagens, sobre os valores até então tidos como sólidos e permanentes.

O terceiro momento, finalmente, seria o da constatação da perda. E, aqui, haveria duas possibilidades de escolha: a da evolução ou a da involução, simbolizada pela ambiguidade do "bosque de Silvano" e a do "cemitério da igreja".

A escolha de Euclião e de Euricão foi a da transformação no sentido evolutivo e de discernimento de que os bens materiais são um meio e não um fim. Diríamos que foi uma escolha do caminho ascendente entre a terra e o céu, entre o transitório e o permanente.

A avareza dos protagonistas nos remete, em contrapartida, a duas outras personagens, também idosas (Megadoro, na Aululária, e Eudoro, em O Santo e a Porca), que não apresentam tal característica, sendo, portanto, opostas a Euclião e Euricão.

Concluindo, lembramos as palavras de Cícero sobre os defeitos comumente atribuídos à velhice. Diz o orador latino que: são defeitos dos costumes, não da velhice. (...) Não compreendo o que a avareza do ancião quer para si mesmo. Há algo de mais absurdo que aumentar as provisões de viagem à medida que menos caminho resta? (CÍCERO, 1980, p.81).

Fonte:
Adaptado de Artigo não assinado encontrado no site Feranet  Disponível em Algo Sobre
Resumo adaptado do Site http://osantoeaporca.vilabol.uol.com.br/

terça-feira, 27 de abril de 2021

Varal de Trovas 495

 


Rubem Penz (Cebolinha: esse plano não vai dar certo)

Passei a infância inteira acompanhando os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica. E, seja por solidariedade masculina, seja por admirar quem encarna a mais vã esperança, torci pelos meninos em cada uma das histórias. No entanto, nenhuma das mirabolantes criações (havia sempre o Cascão para ser o coadjuvante) foi capaz de suplantar a força da heroína dentuça.

Recordo disso porque soube que Maurício de Sousa prometeu uma data para o casamento de Mônica e Cebolinha. Um destino a ser adivinhado por quem acompanha a série de desenhos desses personagens dirigida ao público teenager - tenho na memória a polêmica revista na qual os dois, jovens, trocaram o primeiro beijo. Enfim, mais ou menos o que aconteceu com os (ex) implicantes Hermione e Rony na saga Harry Potter, marido e mulher ao final,

Agora, se isso for mais um dos planos do Cebola (seu nome na versão crescida) para vencer a Mônica, tenho uma má notícia: não vai dar certo. Talvez ele tivesse sucesso nos longínquos anos 1960, quando as personagens saíram do lápis do criador para ganhar o mundo. Na época, a autoridade masculina predominava na composição familiar. Vivíamos o tempo do pai provedor e da mãe dona de casa - papéis expressos nas próprias tirinhas do bairro do Limoeiro.

Os tempos são outros. As "Mônicas" que ousavam ser donas da rua durante a infância, hoje também são donas do próprio nariz - no mínimo. Viram suas mães exercendo o intangível controle sobre os maridos pelos fios do sentimento (maneira de deixar o jogo parelho) e almejaram mais. Para elas, já não bastam os afazeres domésticos ou a maternidade; dominam desde o mercado de trabalho aos destinos da República. Os "Cebolinhas" piam cada vez mais fino.

Mas, se, ao contrário, o "sim" no altar for um armistício (para não dizer uma rendição), aí o rapaz pode estar agindo com esperteza. Alguns homens já perceberam que nosso projeto vencedor está muito mais parecido com as antigas estratégias femininas. Nada de confronto: contornos. Nada de violência: carinho. Nada de autoridade: cooperação. Nada de controle: liberdade.

Pois é, Cebola... Ter para si o coração da Mônica pode valer mais do que qualquer outro domínio que ela – elas? – tanto perseguem. Mesmo que o casamento esteja longe de ser um plano infalível. Quanto ao Cascão, por favor: nessa história, seja no máximo padrinho. Senão é avançar demais com a carruagem.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. 
Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) VI

ÁGUAS

Quantas águas já moveram moinhos
mas hoje, dormem no fundo do mar,
ajudaram a desbravar caminhos
sem jamais do trajeto reclamar.

Transformaram caudalosos espinhos
em novas razões para caminhar,
carregando nos seus braços magrinhos
pesadas pedras sem desanimar.

De origens humildes e tão franzinas
vertentes serenas e borbulhantes,
sempre calmantes, limpas, cristalinas.

Sem um rumo certo, passos constantes
foram alimento para as turbinas
deixando os lares mais aconchegantes.
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PREÇO DA VIDA

O preço da vida, às vezes, é a morte,
de tantos que morrem sem nada ver
e o vento que nem sempre segue o norte
de longe a lembrança nos faz sofrer.

Outros prosseguem, numa luta forte,
sentem sob os pés tudo estremecer
e o amargo pranto talvez só conforte
uns poucos passos antes de morrer.

Muitos atalhos ao longo da estrada
simples hiato na mata dos sabores
velho e rude prato na mesa errada.

Sem saber por certo quais os valores
que andam à frente de cada jornada
há quem deixe a paz pra comprar temores.
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TERNURA

Se de Deus sede sente o caminhante
nos caminhos que sulcam esta terra,
mergulha na água viva que lhe dera
a chancela de mudar seu semblante.

Seja eterno o terno dom que lhe gera
novo afeto, noutro teto, aconchegante,
verta paz, converta em luz fulgurante,
todo o sinal onde o mal prepondera.

Que a fonte forme a ponte circulante
muito forte que à morte firme espera,
dando alento ao momento mais gritante.

Quando em tudo vemos dor fatigante
surge a voz com poder que recupera,
todo o passo em compasso relutante.
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VALORES

Dos muitos dotes que outrora valiam,
alguns se perderam na caminhada,
outros morreram porque só traziam
meras ilusões, sonhos e mais nada.

Hoje, o que temos são novos valores,
considerados fortes vanguardeiros,
de cada passo, eternos mediadores,
brilhando nos céus de tantos roteiros.

Sempre ligados nas transformações,
brilhantes frutos das lutas sociais,
temos nas mãos suas confirmações.

Ninguém pode com formas radicais
querer mudar as próprias convicções,
nem por pressões inconstitucionais.
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VOLTAS DA VIDA

Muitas voltas por nós já foram dadas
outras tantas quiçá, venhamos dar,
nesta vida palmilhando as estradas
sem ter medo de talvez fracassar.

Forte luz, procuramos dar à vida,
para que outras tantas possam brilhar,
mas nem sempre a vitória pretendida,
chega e traz mais vigor pra incentivar.

Quem souber caminhar entre os espinhos
sem nunca desviar dos seus caminhos
pode obter tudo o quanto quer buscar.

Nada tem que não possa ser obtido,
mesmo que parecer tudo perdido
e as chamas do querer já não brilhar.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Mosqueteiro do Milho

Há uma velha anedota (será que alguém ainda sabe o que é anedota?) segundo a qual o garçom perguntou ao cliente se ele gostava de rãs. O cliente respondeu: “Gosto sim, muito, porém não a ponto de comê-las”. Não tem nada a ver com isso, mas se alguém me perguntar se gosto de milho, responderei que gosto muito sim... a ponto de comê-lo do jeito em que vier.

Um dia, lá pelos meados dos anos 1970, publiquei no “O Diário do Norte do Paraná”, do amigo Frank Silva, uma crônica falando disso. Contei que desde criança curtia paixão pelas coisas feitas de milho: curau, mingau, paçoca, pipoca, polenta, canjiquinha, milho cozido. Era chegadão especialmente numa gostosura que em nossa família chamavam de “farinha de macacão” – um fubá grosso misturado com toucinho de porco, torrado num tacho. Com feijão preto e bananinha-ouro frita era a delícia das delícias.

Tá, mas vejam o que aconteceu: nem bem a crônica entrou em circulação, bateu na minha casa um rapaz trazendo um pacotão cheio de pacotinhos com subprodutos do milho. Tudo o que você possa imaginar. “Foi Seu Oswaldo que mandou, e mandou um abraço também”.

Oswaldo Chiucheta. Só podia ser ele. O mosqueteiro do milho. Um dos personagens mais simpáticos e irrequietos que Maringá já conheceu. Tudo o que fazia era movido a paixão e com total vigor.

Nascido na heroica e bela Concórdia, veio para cá em 1956, já decidido a mexer no enredo da cidade. Todo mundo aqui só falava em café; ele chegou falando de trigo. Montou na Avenida Mauá o primeiro moinho do norte/noroeste do Paraná. Depois passou a trabalhar também com milho – nasceu a Trigomil. Simultaneamente, como bom filho do meio-oeste catarinense, Chiuchetta foi pioneiro aqui na criação de suínos de alta linhagem.

Enquanto isso, na mesma época, foi um dos líderes na campanha pela criação do Instituto Agronômico em Londrina e ajudou na fundação da Associação das Indústrias Moageiras de Milho do Brasil.

Sim. Do milho. Na verdade o guerreiro Chiuchetta veio para Maringá programado para incentivar o cultivo do trigo na terra dos cafezais. No entanto penso que ele gostava mesmo era de lidar com o milho. Achava que o milho era o cereal mais tipicamente brasileiro, presente em todas as cozinhas nacionais, além de ser a ração mais natural para todos os animais dos pastos e todas as aves domésticas.

Um dia o jornalista Sérgio da Costa Franco escreveu no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre: “Não conheço defensor mais ardente da cultura do milho, de sua moagem e do consumo dos seus derivados do que o industrial Oswaldo Chiuchetta, estabelecido em Maringá”.

De fato era. E com razão. O trigo pode ser mais chique, mas o milho é muito mais gostoso. Tudo o que é feito de milho é uma delícia, além de saudável. Tanto que comi todo aquele pacotão de canjica e fubá que o bom Oswaldo me mandou de presente, e nem engordei.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 08-4-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Lima Barreto (Uma Vagabunda)

É um caso bem curioso o que te vou contar e que me parece digno de registro. Para muitos parecerá fantástico, mas como tu sabes, já houve quem dissesse que a realidade é mais fantástica do que imaginamos.

— Dostoievski?

— Sim, creio que foi ele, embora não afiance que fosse com estas palavras. Sabes bem como são as palavras dele?

— Não, mas estou certo que não lhe trais o pensamento... Enfim! Isso não vem ao caso. Conta lá a história.

— Conto-a a ti com todos os detalhes, para que possas tirar dela todo o profundo sentido que tem. Se tratasse de outro, havia de abreviá-la, transforma-la-ia em anedota, mas tratando-se de ti, não há nada que seja prolixo para a compreensão de semelhante fato.

Eles estavam no Campo de Sant'Ana e aquelas cotias sempre ariscas e aquelas saracuras de galinheiro, apesar de tudo, não deixavam de dar um toque selvagem naquele jardim educado.

O narrador continuou:

— Foi isto há alguns anos passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo porque tinha por divisa ou tudo ou nada. Além disso adotam uma frase não sei de que autor, como complemento da divisa.

— Qual é? perguntou o outro.

— "O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente".

— Essas duas sentenças cobiçadas deviam dar resultados surpreendentes.

— Deram como tu sabes, mas eu te quero contar uma que tu não sabes.

— Duvido.

— Pois vais ver.

— Não acredito, pois sei todas as tuas proezas desse tempo.

— Essa proeza, porém, não é minha, é de outro ou de outra.

— Que outra?

— Conheceste a Alzira?

— Sim! Aquela vagabunda que ia á casa do "Guaco", na rua do Carmo.

— É isso mesmo: aquela vagabunda que ia à casa do "Guaco", na rua do Carmo. É isso.

— Homem! Pelo modo por que falas, parece que tiveste paixão por ela...

— Não tive paixão, mas sou-lhe grato.

— Por quê?

— Lembras-te bem que ela bebia conosco calistos de "Guaco".

— Lembro-me bem.

— E que ela tivera um passado de lustre, de opulência, no alto mundanismo?

— Perfeitamente. Contudo, Frederico, eu penso que ela exagerava um pouco.

— É verdade. Aquele caso que ela nos contou de ter perdido uma noite, não sei em que jogo, em São Paulo, oitenta contos, não me parece verossímil. Entretanto...

— Não é só isso. Todas as sumidades da República haviam sido seus amantes. Ora, isso não é possível, porquanto muitas delas, quando começaram, eram pobretões que não podiam aspirar a semelhante "objeto de luxo".

— Tens razão, mas...

— Uma coisa: quando me recordo da Alzira, só me vem à mente o seu famoso chapéu-de-chuva de alpaca, com que, às vezes, quando embriagada, desancava um qualquer e ia parar no xadrez.

— Eu, quando me vem ela à lembrança, com a sua fisionomia triste, fanada, é com o seu orgulho de ter tido muito dinheiro, por meios tão baixos...

— A observação é boa. Ela não parecia ter dor em recordar os belos dias passados, parecia antes ter prazer... Afinal, que tem ela com a tua história?

— Estavas fora, lá, para Alagoas. Continuei a frequentar o "Guaco", onde ia todas as tardes encontrar os companheiros. Ocasionalmente topava com Alzira e pagava-lhe um cálice. As nossas relações eram as mais amistosas possíveis. Ela me contava as histórias de aventuras passadas, quer as de jogo, quer as de amor e eu as ouvia para aprender a vida com aquela mulher batida pela sorte, pelo infortúnio e pela maldade dos homens. Gostava até da emoção que ela sentia, narrando o seu triunfo, quando, trepada no alto dos carros de Carnaval, era aclamada pelas famílias, nas ruas apinhadas por onde passava. Pelo modo que ela me contava esses episódios, julguei que Alzira nesses dias se supunha resgatada. Talvez tivesse razão...

— Coitada! fez o outro.

— Bem. Como te contava, ia sempre ao "Guaco" e, em certo dia do pagamento, lá fui. Tinha os vencimentos quase intactos na algibeira. Encontrei-a, sentei-me e pedi cerveja. Ela não quis, ficou no seu cálice habitual. Em dado momento, ao passar o proprietário, o Martins - tu te lembras dele?

— Pois não.

— Disse-lhe: Martins, vê quanto te devo. Ele respondeu e, logo que ele se afastou, Alzira perguntou-me: "Frederico, tens dinheiro?" Disse-lhe que sim. E ela me pediu: "Podes 'passar' cinco mil-réis?" Não me fiz esperar e dei-lhe uma nota de cinco mil-réis que tinha na algibeira do colete. Ela guardou e continuou a conversa. Veio a hora de sair e de pagar a despesa atual e as passadas. Martins fez a soma e tirei da algibeira da calça o grosso do dinheiro, dando-lhe uma nota que satisfizesse a conta. Logo que o Martins se dirigiu ao balcão, ela me disse ao ouvido: "Tu não podes dar mais cinco mil-réis?" Disse-lhe peremptoriamente: não! Não teve um momento de hesitação: levantou-se e atirou-me a nota na cara. Foi saindo e descompondo-me baixamente.

— Era muito malcriada.

— Pensei isso e o Martins aconselhou-me a evitá-la, por isso. Um acontecimento posterior, porém, fez-me julgá-la melhor.

— É daí que...

— Vais ouvir: passaram-se meses e, para publicar um livro, meti-me em complicações. Se o livro deu dinheiro eu não sei, porque só perdi com ele, entretanto, fez um sucessozinho, mas cai de roupas, etc., etc. Uma noite estava sentado entre desanimados, como eu, num banco do largo da Carioca, considerando aqueles automóveis vazios, que lhe levam algum encanto. Apesar disso, não pude deixar de comparar aquele rodar de automóveis, rodar em tomo da praça, como que para dar ilusão de movimento, aos figurantes de teatro que entram por um lado e saem pelo outro, para fingir multidão, e como que me pareceu que aquilo era um truque do Rio de janeiro, para se dar ares de grande capital movimentada... Estava assim, quando me bateram ao ombro: "Oh! Frederiquinho!"

— Quem era?

— Era a Alzira.

— Queria ela alguma coisa?

— Queria dar-me. Nada mais.

— O quê?

— A passagem do bonde.

— Tu não a tinhas?

— Tinha. Disse-lhe isso até; mas o meu aspecto era da mais completa miséria. Minha roupa estava sebosa, meu chapéu de palha muito sujo, cabeludo, barba velha; e, além de tudo, sobreviera-me uma fraqueza de pálpebras, que me obrigava a usar uns sinistros óculos escuros de mendigo semi-cego. Apesar da minha recusa, ela insistiu de tal modo, de forma tão cheia de piedade e ternura, que me pareceu uma cruel desfeita não lhe aceitar o cruzado.

— Aceitaste?

— Aceitei.

— Curioso.

— Está aí a vagabunda do "Guaco", meu caro Chaves.

Levantaram-se, saíram do jardim e o advento da noite, misteriosa e profunda, era anunciado pelo acender dos lampiões de gás e o piscar dos globos de luz elétrica, naquele magnífico fim de crepúsculo.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. 
Publicado originalmente em 1920.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 11

 féretro para uma gaveta
 
esta a gaveta do vício
rimbaud tinha uma
muitas hendrix
mallarmé nenhuma

esta a gaveta
de um armário impossível
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fazia poesia

e a maioria saía
tal a poesia que fazia

fazia poesia

e a poesia que fazia
não é essa
que nos faz alma vazia

fazia poesia

e a poesia que fazia
era outra filosofia

fazia poesia

e a poesia que fazia
tinha tamanho família

fazia poesia

e fez alto
em nossa folia

fazia tanta poesia
ainda vai ter poesia um dia
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entro e saio

dentro
é só ensaio
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a máquina
engole página
cospe poema
engole página
cospe propaganda

MAIÚSCULAS
minúsculas

a máquina
engole carbono
cospe cópia
cospe cópia
engole poeta
cospe prosa

MINÚSCULAS
maiúsculas
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas
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não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino
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o sol escreve
em tua pele
o nome de outra raça

esquece
em cada uva
a história do céu
do vento
e da chuva
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confira

tudo que respira
conspira
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ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse

vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
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riso para gil
teu riso
reflete no teu canto
rima rica
raio de sol
em dente de ouro

“everything is gonna be alright”

teu riso
diz sim
teu riso
satisfaz

enquanto o sol
que imita teu riso
não sai

Fonte:
Paulo Leminski. Polonaises. 
Curitiba: Ed. do Autor, 1980.

Rachel de Queiroz (O Telefone)


FESTA COM FOGUETE, discurso e banda de música marcou a inauguração da Companhia Telefônica na cidade de Aroeiras. Se bem não fosse grande a rede e poucos os aparelhos instalados, mais ou menos uma dúzia. Os telefones oficiais eram o da delegacia, o da estação do trem, o da Câmara e o da casa do juiz; e, entre os particulares, havia dois especialmente importantes, que uniam pelo fio elétrico o casarão do major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, com o sobrado do coronel Benvindo Assunção, chefe rabelista, ricaço, com loja grande no térreo, de onde lhe vinha a fortuna.

E, tanto numa casa como na outra, a presença do telefone, suscitando a possibilidade de uma comunicação impossível, criava uma tensão perigosa.

Imagine-se que já há umas duas gerações aquelas famílias não se falavam, a não ser em hora de briga. Em perto de cinquenta anos, o mais que um Assunção ouvia de um Leandro, eram frases assim: “Se prepare pra morrer, cabra!” ou: “Essa eleição foi roubada!” ou ainda: “Se é homem puxe a arma.”

Também nessas horas de arrebatamento, diziam outras coisas, dessas que os jornais chamam de “termos de baixo calão”.

Houve igualmente uma frase dita por um Leandro a um Assunção e que ficou célebre: na famosa briga do adro da matriz, quando Carlinho Leandro baleou de morte o moço Donato Assunção, a bela Sinhá Leandro, mulher de Carlinho, que saía da missa atrás do marido, ajoelhou-se ao pé do moribundo, disse: “Jesus seja contigo”, e depois lhe cerrou os olhos. Aí, Carlinho quis matar Sinhá no sufragante, achando que aquele “Jesus seja contigo” já era começo de adultério. Sinhá saiu correndo e gritando através da praça e se asilou em casa de um irmão; e desse caso nasceu uma briga subsidiária, que felizmente não rendeu muito. Pois Sinhá, que estava grávida, morreu de mau sucesso; e o irmão, pegou-o a febre amarela, numa viagem que fez ao Rio de Janeiro.

Um Assunção, para um Leandro, era assim uma ideia proibida, imagem proibida, palavra proibida. Nas melhores fases de tréguas, quando um Assunção ia pela calçada e avistava um Leandro, dobrava a primeira esquina ou, na falta de esquina, tomava ostensivamente a calçada oposta.

Ainda uns poucos meses atrás, passando pela rua do Carmo o coronel Benvindo, montado no seu melado campolina (de nome Dois de Ouro), e o filho de Chico Leandro chegando à calçada, o menos que pôde fazer foi cuspir no rastro dele. Frente a frente só se encontravam em hora de luta, e até na igreja tinham os seus bancos separados, um do lado do altar de são José, o outro no da Boa Morte.

Pois agora lá estava o telefone, como uma estrada franca, uma porta aberta entre as duas casas. Com o seu ar preto e sonso, pendurado na parede do corredor, bastava alguém rodar a manivela, dizer à telefonista o número inimigo, o dos Leandro era 15-22, o dos Assunção era 15-21 (pelo seguro, para não haver preferências, o vigário, presidente da Companhia Telefônica, tirou os números na sorte) — e logo, do lado proibido, alguém responderia!

Calcule só! Ali, junto ao retrato mortuário do finado Donato, debaixo do quadro do Coração de Jesus, se poderia escutar a voz de um Leandro. Era uma tentação do inferno.

E nessas coisas meditava o coronel Benvindo, balançando-se na sua rede branca, armada no alpendre do sobrado, que dava para o jardim. Aspirava o cheiro das rosas abertas depois da chuva e olhava de viés para o bicho falante, tão quieto na sua caixa envernizada. Ora, sim, senhor, ter o Chico Vinte ao alcance da voz! (O Chico Vinte assim se chamava por ser o vigésimo filho do finado Carlinho Leandro, havido da sua segunda esposa, que lhe dera quatorze filhos, depois dos seis da desditosa Sinhá.) Chico Vinte, sendo, embora, o caçula, herdara do pai a chefia, por ser o mais disposto, o mais amante da família, o mais dedicado à política, o que se deixara ficar pelas Aroeiras, criando gado e destilando cachaça na sua fazenda da Trapoeiraba. A velha casa da família, na praça da Matriz, com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão, era o seu pouso na cidade.

Sim, essas coisas pensava o coronel Benvindo, enquanto fazia a sua sesta. Pensava nelas, quando de repente o telefone tocou, como se respondesse àqueles pensamentos. Tocou, repetiu, bem alto e impertinente.

O pessoal de casa acorreu todo para ver o que seria, mas ninguém se atreveu a pegar o fone. Falar no telefone era falar em nome da casa, prerrogativa do chefe da família. E assim o coronel, quando achou que a campainha já tocara o suficiente, levantou-se da rede e atendeu. O padre lhe ensinara o que dizer:

— Alon! — berrou, pois, o velho, na sua voz fanhosa.

Do outro lado, uma fala irreconhecível, num falsete disfarçado, gritou em resposta ao alon:

— É você, Benvindão?

Assombrado com a insolência, o coronel nem soube o que responder. E então o falsete deu um riso e soltou a injúria suprema:

— Benvindão, vim te convidar! Hoje tem missa por alma da Pomba Rola!

Pomba-Rola era o gordo esqueleto de família da estirpe dos Assunção. Não vê que são descendentes do antigo vigário colado de Sant’Ana das Dores; mas o padre velho, em vez de fazer igual aos outros do seu tempo, e escolher moça de família, como tantos que chegavam a trazer uma prima para casa, vestida de noiva, dando assim origem a uma família que podia não ser legal, mas era respeitável; o padre velho, não, foi arranjar amizade com uma rapariga de ponta de rua, por alcunha a Pomba-Rola, a quem montou casa e deu estado. Verdade que, depois de ama do vigário, mãe de sua prole numerosa, na qual se distinguiram dois doutores e um alferes herói do Paraguai, Pomba-Rola assumiu o seu nome legítimo de dona Dorotéia e se tornou matrona de respeito. Ademais, agora, já estava morta há quase um século. Contudo, quando alguém queria insultar um Assunção, era só falar em pomba, em rola, ou nas duas juntas. Também usavam arrulhar de longe, imitando a rolinha fogo-pagô.

Quanto sangue correu na rua, lá nas Aroeiras, por causa dessa ave inocente, saberá são Miguel Arcanjo, que toma nota dessas coisas, e mais ninguém.

E pois o coronel, ao ouvir aquela palavra, soltou o fone da mão como se tivesse um bicho dentro, e o fone ficou balançando no fio, tal uma cobra que acabasse de morder. Mas durou pouco o assombro do velho. Com aquela rapidez de ação que lhe dera a chefia do seu clã, meteu a mão na manivela e se pôs a berrar para a telefonista:

— Quem foi o moleque sem-vergonha que falou agora pra minha casa?

Maria Mimosa, filha da professora, que fizera estágio em Fortaleza aprendendo para telefonista, honrou o ensino que recebera e respondia apenas as fórmulas regulamentares:

— Faz favor? Número, faz favor?

O coronel, cego de raiva, berrou mais alto:

— Maria Mimosa, deixe de se fazer de boba! Sou eu que estou falando! Me diga já quem foi o malcriado que ligou pra cá!

Meio trêmula, mas ainda oficial, a voz da telefonista resistiu:

— Desculpe, coronel, mas o regulamento não permite revelar o nome do assinante que pediu ligação... Temos o segredo profissional...

— Maria Mimosa, se você não contar já esse segredo profissional, eu vou aí e rebento essa joça!

Maria Mimosa gaguejou um pouco e acabou confessando tremulamente:

— A chamada partiu de 15-22...

— Casa de quem, com todos os diabos?

Mais trêmula ainda, já em prantos, prevendo a gravidade da sua revelação, Maria Mimosa confessou:

— É a residência do major Francisco de Assis Leandro...

Devagarinho, com mão firme, o coronel depôs o fone no gancho. O entrevero com Maria Mimosa lhe dera tempo para recuperar a sua famosa calma dos momentos de ação. Majestosamente, desceu até a loja. Mandou espalhar uns recados. Aos poucos foram chegando os seus homens de confiança. Dois cabras que mandara vir há tempos do riacho do Sangue. Zé Vicente, seu caixeiro, Amarílio, cabra roxo-gajeru que tinha fama de perverso e a moda de reclamar contra pau de fogo, que não é arma de macho: com ele, só no aço frio. Depois veio do cercado, no Juremal, o cavalo Dois de Ouro. O coronel montou, acompanhado por dois cavaleiros: o dito Zé Vicente e seu Pedrinho Queiroz, o genro, marido de Juvenília, a filha mais velha, meio feiosa, mas que tocava piano e lia livro em francês.

Os demais seguiam a pé, cada um com o seu rifle na bandoleira; até Amarílio carregava o seu, não por gosto, dizia ele, mas pelo “regulamento”.

Alcançando a praça da Matriz, parou a expedição para tomar chegada. Já correra, na rua, a nova da saída do grupo encangaçado, e já se apinhavam curiosos em cada esquina. O delegado de polícia trancou os praças na cadeia (era partidário do coronel Benvindo) para “evitar arruaças”.

Chegando defronte à porta da casa das dezoito portas e janelas, o coronel sofreou o Dois de Ouro. Sem desmontar, bateu palmas. Ninguém atendeu. Mas escutou-se, no lado do oitão, o fechar brusco de uma janela. O coronel então chegou mais perto, e com o cabo do chicote martelou a porta e gritou:

— Ô de casa!

A medo entreabriu-se uma rótula e apareceu na frincha o olho enviesado de uma cunhã, perguntando quem era.

— Quero falar com o dono da casa!

A cunhã abriu mais um dedo de janela:

— Major Chiquinho foi no sítio, só vem de noite.

— Pois que me apareça outro homem! Não haverá outro homem nessa
casa?

Aí a porta da rua se escancarou nos dois batentes e surgiu a magra figura de Francisquinho, também chamado o Vinte-e-Um, porque, além de ser o filho único de Chico Vinte, era viciado em baralho, no jogo do vinte e um.

Dizia-se que Francisquinho era tísico. Magrelo, nos seus dezoito anos, a mãe o queria padre, mas o seminário o expulsara depois de umas histórias mal contadas. E, no abrir da porta, também Francisquinho foi gritando:

— Homem tem! Tá falando com ele! Mas homem é que não estou vendo! Só um baiacu velho em cima de um cavalo!

Com o que dizia, queria era distrair a atenção dos atacantes. Pois no que falava, puxou a mão que trazia às costas e na mão vinha uma garrucha com que atirou na direção do coronel quase à queima-roupa. Por fortuna do velho, no momento em que partia o tiro ele levantava a mão com o chicote; a carga de chumbo passou-lhe raspando entre a costela e o braço e foi pegar bem na arca do peito do infeliz Zé Vicente, que caiu de borco por cima do cavalo. Aí Amarílio se adiantou com a faca nua na mão. Embolou com o meninote e rolaram os dois pela calçada. O coronel apeou do melado e se meteu casa adentro, sem olhar para trás nem tirar o chapéu. Subia os três degraus do corredor quando se ouviu um alarido de mulher chorando, depois uma voz severa a comandar:

— Parem com essa prantina!

E dona Joaquininha, mulher de Chico Vinte, apareceu na porta da sala a perguntar, muito calma:

— Que é que o senhor quer na minha casa, coronel Benvindo?

O velho tirou o chapéu:

— Minha senhora, eu só quero punir um criminoso.

Dito isso, passou pela dona, entrou na sala, localizou o telefone e o indicou para os dois cabras que o seguiam na pisada:

— Arranquem esse bicho daí.

E quando os homens puxaram a faca para cortar os fios, o coronel recomendou:

— Não. Arranquem. Quero com tripa e tudo.

Os cabras fizeram força, a caixeta do telefone se largou dos pregos, junto com pedaços de reboco; e as entranhas da coisa falante ficaram indecentemente à mostra.

— Levem pra rua.

Puseram o telefone no chão da praça, no meio do capim-de-burro, todo eriçado de fios, como se fosse uma aranha-caranguejeira. E aí o coronel mandou acender fogo com os paus arrancados à cerca de um terreno baldio.

A chama subiu. “Em cima do bicho! Em cima do bicho!”, recomendava o coronel. E o telefone ardeu muito tempo, exalando um cheiro ruim de celuloide e borracha queimada. Por fim, só ficaram os pedaços de ferro e louça dos isoladores, entre as cinzas.

O coronel se manteve imóvel e calado, assistindo, enquanto os seus cabras, de armas na mão, guardavam o fogo. Ao acabar tudo, o velho correu os olhos pelo povo que espiava medroso e disse bem alto:

— Foi pra aprender a não soltar má-criação a homem.

Vinte-e-Um não morreu, embora a facada de Amarílio lhe houvesse ofendido os bofes. Morrinhou, morrinhou, acabou escapando, sempre magro e amarelo. Quem morreu foi o pai, Chico Vinte. Veio-lhe uma paixão tão grande, ao saber da desfeita, que lhe deu um ar. Entrevou-se e, com poucos meses, era finado.

E o Leandro defunto, o filho fraco do peito, a guerra entre as duas famílias se amainou. Benvindão ficou chefe absoluto e fez o prefeito e seis oitavos da Câmara, na primeira eleição. Agora, teve uma coisa: nunca mais, em casa de um Leandro ou de um Assunção, na cidade de Aroeiras, se viu um telefone.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Silmar Böhrer (Croniquinha) 22

Se me fosse dado comparar e descrever musicalmente este dia, eu começaria dizendo que pela manhã - cedo - a orquestra tomava o seu lugar no palco do espaço para a grande apresentação de hoje (ouvia-se o barulho de instrumentos, viam-se luzes que se cruzavam, sentia-se que algo de muito importante seria apresentado).

Como intróito os músicos encenaram uma melodia de ritmo bastante rápido - uma sinfonia de Beethoven, talvez - e então passaram para um huapango mexicano, no melhor estilo do Caribe. Como o ritmo foi se tornando mais suave, executaram um sublime bolero, daqueles que fazem lembrar as casas noturnas de Acapulco.

Após a apresentação destas melodias, por volta da onze horas, os grandes músicos instalados no proscênio do espaço iniciaram uma valsa vienense, no mais puro sabor europeu, e alcançaram a tarde neste ritmo entre dócil e sonífero que, penso, embalará meus sentimentos ao longo das horas.

Quase desnecessário dizer-se que a sinfônica é composta por elementos respeitáveis - as nuvens, os ares, a gravidade - e os instrumentos têm acústica e sonoridade formidáveis, todos com um desempenho perfeito dentro do conjunto do tempo - parte integrante da orquestra da natureza.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Voltaire (Sonho de Platão)

Platão sonhava muito, e não menos se tem sonhado até agora. Imaginava ele que o ser humano era outrora duplo e que, como castigo de suas faltas, foi dividido em macho e fêmea.

Demonstrara que não pode haver senão cinco mundos perfeitos, porque, na matemática, só há cinco corpos regulares. A sua República foi um de seus grandes sonhos. Sonhara ainda que o dormir nasce da vigília e a vigília do dormir, e que se perde infalivelmente a vista contemplando um eclipse, a não ser numa bacia d’água.

Eis aqui um de seus sonhos, que não é dos menos interessantes. Fantasiou que o grande Demiurgo, o eterno Geômetra, depois de povoar o infinito de globos inumeráveis, quis experimentar a ciência dos gênios que haviam testemunhado o seu trabalho. Deu a cada um deles uma pequena porção de matéria para que a afeiçoasse a seu modo, da mesma forma que Fídias e Zeuxis distribuiriam a seus discípulos o material para fazerem estátuas e quadros, se é permitido comparar as pequenas coisas às grandes.

Demogórgon recebeu, como partilha a porção de lama que se chama a terra; e, tendo-a arranjado tal como hoje a vemos, julgava ter feito uma obra-prima. Pensava haver subjugado a inveja e esperava elogios, até mesmo de seus confrades; muito surpreso ficou de ser recebido com forte vaia.

Um deles, que não poupava gracejos, disse-lhe: — Na verdade, fizeste um excelente trabalho: dividiste o teu mundo em dois e puseste um grande espaço d’água entre os dois hemisférios, a fim de que não houvesse comunicação entre ambos. Os humanos vão enregelar-se nos teus dois polos e morrer de calor na tua linha equatorial. Distribuíste prudentemente, pelas terras, grandes desertos de areia, para que os viajantes morressem de fome e de sede. Estou muito satisfeito com os teus carneiros, as tuas vacas e as tuas galinhas; mas, francamente, não vou muito com as tuas cobras nem com as tuas aranhas. As tuas cebolas e alcachofras são excelentes; mas não concebo qual foi a tua intenção ao cobrir a terra de tantas plantas venenosas, a menos que tivesses o desejo de envenenar seus habitantes.

Parece-me, por outro lado, que formaste umas trinta espécies de macacos, muito mais espécies de cães e apenas quatro ou cinco espécies de homens; é verdade que deste a este último animal aquilo a que chamas razão; mas, para te falar com toda a sinceridade, essa tal razão é demasiado ridícula e muito se aproxima da loucura.

Parece-me aliás que não fazes grande caso desse animal de dois pés, visto lhe haveres dado tantos inimigos e tão pouca defesa, tantas doenças e tão poucos remédios, tantas paixões e tão pouca sabedoria. Pelo que se vê, não queres que fiquem muitos desses animais sobre a face da terra: pois, sem contar os perigos a que os expões, arranjaste de tal modo as coisas que um dia a varíola arrebatará regularmente todos os anos a décima parte dessa espécie e a irmã dessa varíola envenenará a fonte da vida nos nove décimos restantes; e, como se ainda não bastasse, fizeste de modo que metade dos sobreviventes se ocupará em demandas e a outra metade em matar-se. Eles, sem dúvida, muito te ficarão devendo, e fizeste na verdade uma bela obra.

Demogórgon enrubesceu: bem sentia que na sua obra havia mal moral e mal físico; mas sustentava que havia mais bem que mal.

— É fácil criticar – disse ele, – mas achas tão fácil fazer um animal que seja sempre razoável, que seja livre, e que jamais abuse da sua liberdade. Pensas que, quando se tem de nove a dez mil plantas para fazer proliferar, seja tão fácil impedir que algumas dessas plantas tenham qualidades nocivas? Imaginas que, com certa quantidade de água, de areia, de lama e de fogo, não se possa ter nem mar nem deserto? Acabas, senhor trocista, de arranjar o planeta Marte; veremos como te houveste com os teus costados e que belo efeito não hão de fazer as tuas noites sem lua; veremos se entre a tua gente não há nem loucura nem doença.

Com efeito, os gênios examinaram Marte e caíram de rijo sobre o galhofeiro. Nem o grave gênio que modelara Saturno foi poupado; seus confrades, os fabricadores de Júpiter, de Mercúrio, de Vênus, tiveram cada um de suportar censuras.

Escreveram grossos volumes e brochuras; disseram frases de espírito; fizeram canções, ridicularizaram-se uns aos outros; as facções se desmandaram na linguagem; até que o eterno Demiurgo impôs silêncio a todos:

— Fizestes (lhes disse ele) coisas boas e coisas más, porque tendes muita inteligência e sois imperfeitos; as vossas obras durarão somente algumas centenas de milhões de anos; após o que, já possuindo mais experiência, haveis de fazer coisa melhor: só a mim é dado fazer coisas perfeitas e imortais.

Eis o que Platão ensinava aos discípulos. Quando parou de falar, um deles disse-lhe:

– E aí então vós acordastes.
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Conto escrito na segunda metade do século XVIII.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) VI, pantuns


AMOR INFINITO


Trova-tema:

Tudo é tão encantador,
Nosso amor é tão bonito,
"que em cada noite de amor
Ultrapassa o infinito."
(Gislaine Canales - RS +)


Nosso amor é tão bonito!
Até nos leva a cantar...
Ultrapassa o infinito
nossa vontade de amar.

Até nos leva a cantar
baladas e cavatinas...
Nossa alegria de amar
vem das paragens divinas.

Baladas e cavatinas,
canto para ti, querida;
Vêm das paragens divinas,
nos ternos sonhos da vida.

Canto para ti, querida,
meus versos de trovador...
Nos ternos sonhos da vida,
tudo é tão encantador!

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MAU CAÇADOR

Trova-tema:

-Caçador, foste pra o mato,
mataste mil passarinhos,
e eu te pergunto, insensato:
Quem leva comida aos ninhos?
(José Amaral - Natal/RN)

Mataste mil passarinhos
sem a menor piedade.
Quem leva comida aos ninhos,
onde impuseste a orfandade?

Sem a menor piedade,
foste aos sítios inocentes,
onde impuseste a orfandade
e a fome, que tu não sentes.

Foste aos sítios inocentes
com a morte, de surpresa,
e a fome que, que tu não sentes,
para espalhar a tristeza!

Com a morte, de surpresa,
ficou provado em teu ato:
Para espalhar a tristeza,
caçador, foste pra o mato!

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SOM DA VIOLA

Trova-tema:

Na execução de meus dedos,
toco na viola bela;
Ela guarda meus segredos
e eu guardo os segredos dela.
(Chico Mota)


Toco na viola bela,
buscando as rimas do além,
e eu guardo os segredos dela
sem revelar a ninguém.

Buscando as rimas do além,
tanjo a viola querida;
Sem revelar a ninguém,
ela embala minha vida.

Tanjo a viola querida,
ao som que há muito me encanta;
Ela embala minha vida,
faz milagre sem ser santa.

Ao som que há muito me encanta,
ela relembra segredos;
Faz milagre sem ser santa,
na execução de meus dedos.
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SONHO TRISTE

Trova-tema:

– Disfarço meu sonho triste
Nas cordas do bandolim,
porém o chorinho insiste,
sem querer, fala por mim.
(Selma Patti Spinelli – São Paulo/SP)


Nas cordas do bandolim,
eu busco a tranquilidade.
Sem querer, fala por mim
um som de antiga saudade.

Eu busco a tranquilidade
de um coração de criança;
Um som de antiga saudade
me traz querida lembrança.

De um coração de criança,
a flor do sonho mais lindo
me traz querida lembrança,
na aurora que vem sorrindo.

A flor do sonho mais lindo
em minha alma ainda existe...
Na aurora que vem sorrindo,
disfarço meu sonho triste.

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SONHOS DE CRIANÇA

Trova-tema:

– Em meus sonhos de criança,
desejei pescar a lua,
e pus anzóis de esperança
nas poças d'água da rua.
(Delcy Canalles – Porto Alegre/RS)

Desejei pescar a lua
pela imagem refletida
nas poças d'água da rua
que, para mim, tinha vida.

Pela imagem refletida,
embalei doce quimera,
que, para mim, tinha vida
como a flor na primavera.

Embalei doce quimera
buscando o que sempre quis,
como a flor na primavera,
e fui, de fato, feliz.

Buscando o que sempre quis,
fiz com Deus uma aliança,
e fui, de fato, feliz
em meus sonhos de criança.

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TEMPOS DE CRIANÇA

Trova-tema:

– Nos meus tempos de criança,
sem-dores nem pesadelos,
tinha a brisa da esperança
pra brincar nos meus cabelos.
(Antônio Roberto - Campos/RJ)


Sem dores nem pesadelos
no meu coração liberto,
pra brincar nos meus cabelos
minha mãe ficava perto.

No meu coração liberto,
na ternura de meu ninho,
minha mãe ficava perto
pra me apontar o caminho.

Na ternura de meu ninho,
havia um anjo do bem
pra me apontar o caminho...
Fui feliz como ninguém.

Havia um anjo do bem,
a vida era linda e mansa...
Fui feliz como ninguém
nos meus tempos de criança.


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Luís Fernando Veríssimo (Sissica)

Não sei se fecha com a estatística geral, mas, naquela sala de espera do aeroporto, entre trinta pessoas, uma tinha telefone celular. E ele tocou.

— Alô? Eu. Oi, querida.

As outras vinte e nove pessoas continuaram fazendo o que se faz numa sala de espera de aeroporto quando o avião atrasa. Lendo, tentando dormir, olhando fixo para nada. E fingindo que não ouviam a conversa.

— Não, ainda estou no aeroporto. O avião atrasou. Sei lá. Devo chegar pela meia-noite.

Um homem mais velho sacudiu a cabeça com leve irritação. Saco, ser obrigado a ouvir a conversa dos outros daquele jeito. E não poder ouvir o que estavam dizendo do outro lado.

— Você vai me esperar acordada? Ah, é? Quero só ver. Qual, aquele curtinho? Ai meu Deus. Já estou vendo. E o que é que você vai me dar? Hein?

Houve uma certa inquietação em torno do homem que falava. Um certo mexe-mexe nas cadeiras e arrastar de pés. Um casal que já conversara muito e ficara em silêncio retomou a conversa, animadamente, agora falando mais alto. Alguns olharam para as duas freiras que, a poucos metros do homem do celular, mantinham os olhos baixos e não se mexiam.

— O quê? Estou levando, sim. Está aqui na maleta. E com pilha nova. É. Te prepara, Sissica.

Ao som de “Sissica” o homem mais velho empinou a cabeça num espasmo involuntário e duas outras pessoas levantaram-se rapidamente e dirigiam-se para o bar, para a livraria, para qualquer ponto longe daquele celular e do seu dono. As freiras continuavam de olhos postos no chão.

— Cê vai fazer o quê? Ah, é? Tá bom. Só acho que hoje eu não vou poder, não. Tou com um furúnculo.

Uma mulher soltou uma espécie de grito e depois tentou disfarçar com tosse. O homem mais velho também se levantou, olhou para o relógio, exclamou “Não é possível” e foi procurar alguém da companhia para reclamar do atraso. Afastou-se quase correndo.

— Sei lá. Apareceu hoje. E acho que está supurando. Ta um roxo meio esverdeado.

Mais pessoas saíram de perto, procurando o que fazer. O casal aumentou o volume da sua conversa, tentando falar mais alto do que o homem. Outros também começaram a falar. Pessoas que nunca tinham se visto antes agora puxavam conversa uma com a outra e todas falavam ao mesmo tempo. Mas o homem do celular falava mais alto.

— Onde? É, lá mesmo. Bem na dobra.

Uma das freiras olhou para o alto com um sorriso triste enquanto a outra se encurvou para olhar o chão mais de perto. Um homem, fora de si, veio perguntar se as duas não gostariam de ir ao banheiro. Ele as acompanharia. As duas sacudiram a cabeça. Ficariam firmes, o Senhor lhes daria força.

— Como é que eu sei que ta roxo? Eu olhei, né Sissica. Com um espelho. Rá, cê pensou o quê?

Várias pessoas estavam agora de pé, tomadas de uma súbita revolta com aquela demora no embarque. Caminhavam de um lado para o outro. Por que o avião não saía?

— Cê pensa que eu pedi pra camareira olhar, é? Dá uma olhadinha aqui no meu furúnculo, minha filha, pra ver que cor é. É só levantar o...

Houve uma debandada. Algumas pessoas se precipitaram para o balcão de informações e começaram a bater com os punhos no balcão, exigindo embarque imediato ou explicações. Outras se dispersaram pelo aeroporto, em pânico. Só as duas freiras continuaram sentadas, com os olhos fechados e uma expressão de martírio, entre doce e dolorida, no rosto. Finalmente o homem despediu-se da Sissica, guardou o celular no bolso e disse para as freiras:

— Minha filhinha. Estou levando um joguinho eletrônico para ela e...

Então o homem se deu conta de que a sala de espera estava vazia e perguntou:

— Ué, já chamaram?

Fonte:
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Novas comédias da vida privada. 
Porto Alegre: L&PM, 1996.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Adega de Versos 15: Daniel Maurício

 


Milton S. Souza (Corações floridos)

A Primavera começou, para nós, no dia 23 de setembro. Antes disso, porém, ela já nos manda mensagens coloridas e perfumadas através das flores que nascem exatamente para anunciar que está chegando a mais bonita estação do ano. Flores que mais parecem obras de arte, com suas pétalas macias, seus perfumes inigualáveis e suas cores inimitáveis. Flores que nascem cultivadas, nos jardins, canteiros ou vasos, ou que simplesmente aparecem do nada, no meio da campina ou nos mais improváveis lugares. Flores que invadem todos os nossos sentidos, deixando nos corações e nas almas aquelas mágicas sementes de ternura e de sensibilidade.

Muita gente não se dá conta do quanto as flores falam. Elas conseguem falar coisas que nós, mesmo exercitando ao máximo a faculdade da oratória, não conseguimos exprimir. As flores falam de amor de um jeito que nem o mais apaixonado dos amantes consegue imitar. As flores falam de amizade, daquele jeito simples que só os verdadeiros amigos entendem. As flores falam de saudade, conseguindo dizer, em algumas horas duras, aquelas palavras que ficam presas na nossa garganta sem coragem para sair. As flores passam mensagens de felicidade, carinho e muita alegria. As flores falam a linguagem da ternura, que é entendida imediatamente por todos os corações.

As flores conseguem falar tudo isso. Mas, infelizmente, ainda não nos acostumamos a brindar com flores mais seguidamente aquelas pessoas que nós amamos ou que nos enfeitam com as suas amizades. Quando morre alguém, imediatamente nos lembramos de enviar flores para marcar presença. E muitas vezes não nos damos conta que aquela pessoa falecida conviveu conosco por tanto tempo e, enquanto era viva, jamais recebeu uma simples rosa de presente. E agora, depois que partiu para a eternidade, que já não pode sentir o perfume das flores, que já não pode tocar com os seus dedos a maciez das pétalas, enviamos para a sua última morada as flores mais lindas...

A poetisa Gabriela Mistral é autora de um pequeno poema que diz mais ou menos assim: “Me dê uma flor em vida, uma flor bem colorida para aliviar meus ais. Depois que eu virar saudade, eu não quero mais vaidade: quero prece, e nada mais”. E Gabriela tem toda a razão: por melhor que seja a nossa intenção, quem já partiu não precisa mais de flores. Porém estas pessoas que estão vivas, ao nosso lado, nos brindando com o seu amor ou com a sua amizade, nos fazendo favores e nos ajudando a viver com mais alegria, estas pessoas, sim, merecem receber flores. E poucas vezes nos damos conta disso...

Quem sabe agora nós aproveitamos a Primavera que está iniciando para brindar as pessoas que nos são caras com muitas flores. Um botão de rosa, um ramalhete de amor-perfeito ou um buquê de qualquer flor sempre faz acender um sorriso de gratidão na alma de quem recebe. E nem é preciso esperar a chegada de alguma data especial: uma flor é presente certo em qualquer ocasião, qualquer dia e qualquer hora. Quem dá flores de presente, sem notar, está conseguindo plantar um jardim dentro do seu próprio coração. E nada melhor do que um coração florido para nos transformar em pessoas melhores, mais doces e mais sensíveis. Pessoas que até conseguem entender a magia das flores e da Primavera...

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 1

SALSA-ARDENTE*

"Oh! esta é a voz do meu amado!"
(Ct. 2.6)


O amor que vibra em meu peito
Já não tem mais dimensão!
Tomou conta do meu ser,
No meu ser há explosão.

É núcleo de sol em chama,
Doce delícia sem dor;
Vulcão ativo de estrela
- É assim que sinto o amor.

É o fogo da salsa-ardente,
Que arde em brasa incolor;
Vulcão que abrasa e não queima
– Oh, que delícia é o amor!

As vezes, me faz chorar
E de saudade morrer;
Mas, quanta felicidade
Traz o amor em meu ser!

Ele é presente em você,
Foi ele o manjar de Zeus*;
E todo aquele que ama
Tem um pouquinho de Deus.

Com ele, o nada é tudo,
Sem ele, o tudo é nada;
Quem ama só quer amor
E, além do amor, mais nada.
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* Salsa-ardente: Vulcão.
* Zeus: Principal deus da mitologia grega.

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TEUS OLHOS
"Os teus olhos são como
os das pombas."(Ct.1.15)


Que doce expressão!
Olhar sem malícia,
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.

Teus olhos são lindos,
Têm puro fulgor,
São cheios de vida,
Traduzem amor.

O amor dos teus olhos,
Tão meigo e tão puro,
É o sonho dos sonhos,
Meu porto seguro.

Se rola uma lágrima,
Eu sinto tua dor;
Recolho-a na alma
Por causa do amor.

Se tenho eu angústia,
Se sofro de tédio,
Procuro teus olhos,
Pra ter meu remédio.

Que doce expressão!
Olhar sem malícia,
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.

Mas quanto sofreram
Teus olhos, querida,
E quantas injúrias
Já viram na vida.

Já foram bem tristes.
Sem vida e calor;
Agora estão vivos
– Milagre do amor.

Que cor têm teus olhos?
São claros, escuros?
– A cor é segredo,
Segredo, eu te juro!

Embora distante,
Em meio ao pavor,
Eu penso em teus olhos
E vivo de amor.

Que doce expressão!
Olhar sem malícia!
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.
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O TELEFONE
"Vou levantar-me e percorrer
a cidade "(Ct. 3.2)


Naquela noite estava angustiado,
Queria ouvi-la no telefone;
Meu coração, tão inconformado,
Olhava atento o calado fone.

"Corre, ponteiro! Silêncio, passa!"
Silêncio aquele me perturbava;
Eu pressentia perder a graça,
Ao ver minh'alma que soluçava.

Era soluço com dor silente,
Queria tanto meu bem distante;
Aquela dor torturava a mente,
Enlouquecendo-me num só instante.

Estava assim a entregar-me à dor,
Pra mim dizia: "Que infeliz eu sou!
Está bem longe o meu doce amor!"
Foi quando, enfim, o fone tocou...

- "Alô, amor! Meu amor, sou eu!"
Minh'alma foi delirar em riso;
Com a esperança que se acendeu,
Você tornou-se meu paraíso.

Falou-me tanto - doce paixão!
Que foi difícil dizer o adeus:
- "Tchau, meu amor", foi dizendo, então,
"Um beijo, um beijo!.. Fique com Deus!"

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. 
Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.