quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Sammis Reachers (Os caronistas)

Um dos grandes prazeres de minha infância de diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro, na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas de chão e terra socada, era um convite, um chamariz tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que éramos.

A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão tinha para-choques e poleiros como que feitos especialmente para que alguém neles se pendurasse. Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou não. Bem, o importante era a diversão.

E quando um caminhão vinha em nossa direção, enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos convidar. E lá íamos nós também.

Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão, continuávamos em frente, jamais observando-o diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”, centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar nas ferragens.

Outra carona muito praticada era a realizada nas portas dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado de fora das portas – o que nos modelos posteriores foi sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se abrem.

Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior, aceleravam à toda, sacolejando a chulapa de ferro e lata para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo tremelique do navio pirata.

O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro, de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses comentários venenosos para os maledicentes.

Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje proscrito pelo duro julgamento da lei.

Bem, certa feita as coisas não saíram como o corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes bairro adentro, para descarregar passageiros, isso apenas até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos, em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.

A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai que ninguém descesse nas seguintes? Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa democrática condução, notamos que o motorista já iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo que ninguém iria descer, que o carroção tremia em solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre, nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver o bitelão se levantando da lama, todo “borrado”. Mesmo em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar, caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a fama de “Cascão”!

Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.

Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo, devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por conta e divertimento da lei da gravidade...

Acordei com algumas pessoas sobre mim, me abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu imediatamente para avisar meus pais – o que me fez tentar levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x rotineiro. Nada quebrara, por sorte.

Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno, dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e “apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.

E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de presepadas…

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Adega de Versos 90: Carolina Ramos (O Grito)

 

Irmãos Grimm (Pele de Urso)


Há muito, muito tempo atrás, havia um jovem que se alistou como soldado, e era sempre o primeiro a avançar quando se tratava de chuvas de balas. Enquanto durou a guerra, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas assim que se a paz foi assinada, ele foi demitido, e o comandante disse para que ele fosse onde desejasse. Seus pais haviam morrido, e portanto, ele não tinha mais casa, então, ele voltou para a casa de seus irmãos, e pediu para que eles o aceitassem, e ficasse com eles até a próxima guerra.

Os irmãos dele todavia, eram duros de coração e disseram: — “O que você poderia fazer aqui? você não tem utilidade para nós, vá e viva a sua própria vida.” 
 
O soldado não possuía nada além de uma carabina, ele a colocou no ombro, e partiu para o mundo. E chegou a um grande matagal, onde não conseguia enxergar nada além de um pequeno círculo de árvores, e debaixo destas árvores ele se sentou triste, e começou a pensar no seu destino.

— “Não tenho dinheiro,” pensou ele, “não tenho profissão, só sei lutar, e agora que só existe paz, eles não precisam mais de mim, então, já estou pressentindo que vou morrer de fome.”

De repente ele ouviu um barulho, e quando ele olhou em volta, uma figura estranha estava diante dele, a criatura usava um casaco verde, tinha um olhar imponente, mas tinha pés rachados que nem de cabra o qual ela ocultava.

— “Eu sei o que você está precisando,” disse o homem, “ouro e muitas riquezas é o que você terá, tanto quanto você desejar, mas primeiro é necessário que você não seja medroso, para que eu não aplique em vão o meu dinheiro.”

— “Soldado e covardia, — como estas coisas podem andar juntas?” perguntou o soldado, “Podes me colocar a prova.”

— “Muito bem, então,“ respondeu o desconhecido, “olhe atrás de você.” O soldado se virou, e viu um urso enorme, que vinha rosnando atrás dele.

— “Uau,“ exclamou o soldado, “espera aí que vou dar uma coçadinha no teu nariz, até que você perca a vontade de rosnar,” e foi em direção ao urso e deu um tiro bem no meio do focinho, ele caiu e nunca mais voltou a se mexer.

— “Está provado que não te falta coragem!,” disse o desconhecido, “mas falta ainda outra condição que deves satisfazer.”

— “Desde que isso não ponha em risco a minha vida.” respondeu o soldado, que sabia muito bem diante de quem ele estava.

— “Se a tua vida correr perigo, não serei responsabilizado por isso. Tu deverás fazer tudo sozinho.”, respondeu o homem de casaco verde, que disse “Nos próximos sete anos, não deverás tomar banho, nem pentear a tua barba, nem o teu cabelo, nem cortar as tuas unhas, nem rezar o padre nosso.

— “Eu te darei um casaco e uma capa, os quais deverás usar. Se morreres durante estes sete anos, cairás em meu poder; se, pelo contrario, viveres além desse tempo, conquistarás a liberdade e serás rico o resto de teus dias.” 
 
O soldado pensou no abandono extremo em que ele se encontrava agora, mas que tantas vezes havia enfrentado a morte, que ele decidiu correr novamente esse risco, e aceitou o convite. O diabo tirou o seu casaco verde, e entregou para o soldado, e disse:

— “Enquanto estiveres usando este casaco nas tuas costas, e colocares as mãos dentro do bolso, sempre os encontrarás cheios de dinheiro.” 
 
Então, ele arrancou a pele do urso e disse:

— “Esta será a tua capa, e a tua cama também, pois nela dormirás, e não farás uso de nenhuma outra cama, e por causa desta roupa você será chamado a partir de agora de Pele de Urso.” Dito isto, o diabo desapareceu.

O soldado colocou o casaco, enfiou as mãos dentro do bolso, e percebeu que realmente tudo era verdade. Depois ele vestiu a pele de urso, e partiu em jornada pelo mundo, e estava feliz, e não se abstinha de nada que lhe fizesse bem e lhe trouxesse dinheiro. Durante o primeiro ano tudo veio a contento, porém, no segundo ele começou a ficar feio como um monstro. Os seus cabelos começaram a cobrir quase todo o seu rosto, a sua barba parecia um pedaço de feltro muito grosseiro, seus dedos se transformaram em garras, e o seu rosto ficou tão coberto de sujeira, que dava até para plantar agrião.

Todos aqueles que o viam, corriam dele, mas como ele sempre dava esmolas aos pobres para que orassem para que ele não morresse durante os sete próximos anos, e como ele pagava bem por tudo, ele sempre encontrava abrigo. No quarto ano, ele entrou numa estalagem, onde o proprietário não o queria receber, e não queria nem que ele ficasse no estábulo, porque ele receava que os cavalos ficassem assustados. Mas, quando Pele de Urso enfiou a mão no bolso e tirou um punhado de ducados, o anfitrião mudou de opinião e lhe ofereceu um quarto na parte externa da estalagem. Pele de Urso, no entanto, devia prometer que não seria visto, caso contrário a estalagem ficaria com má fama.

Quando Pele de Urso estava sentado à noite, e desejava do fundo do coração que os sete anos houvessem se passado, ele ouviu queixas e lamentações que vinham de um quarto anexo. Como ele tinha bom coração, ele abriu a porta, e viu que um velhinho chorava amargamente, e até punha as mãos na cabeça. Pele de Urso se aproximou, mas o homem saiu correndo e tentou escapar dele. Finalmente, quando o homem percebeu que Pele de Urso tinha voz humana, ficou mais tranquilo, e conversando amigavelmente, Pele de Urso conseguiu que o velhinho lhe revelasse a causa de sua tristeza.

Os seus recursos estavam minguando a olhos vistos, ele e as suas filhas começariam a passar fome, e ele era tão pobre que não conseguia pagar o estalajadeiro, e por isso ele seria preso.

— “Se o seu problema for somente esse,” disse Pele de Urso, “fique tranquilo, eu tenho muito dinheiro.”

E mandou que o estalajadeiro fosse trazido até ali, pagou o que o velhinho lhe devia, e pôs ainda uma bolsa cheia de dinheiro dentro do bolso do velhinho.

Quando o velhinho se viu livre de todos os seus problemas, ele não tinha palavras para agradecer.

— “Venha comigo,” disse ele a Pele de Urso, “as minhas filhas são verdadeiras maravilhas da natureza, escolha uma delas para ti como esposa. Quando elas souberem o que você fez por mim, elas não irão te rejeitar.

— “A princípio você parece estranho, mas elas saberão dar um jeito na sua aparência de novo.” 
 
Isto agradou muito ao Pele de Urso, e ele foi.

Quando a filha mais velha o viu, ela ficou muito assustada, com o aspecto dele, e ela gritou e fugiu dele. A segunda ficou parada e o media da cabeça aos pés, mas, então, ela disse:

— “Como é que eu posso aceitar um marido que não tem mais a forma humana e que parece um bicho? O urso pelado que passou por aqui uma vez e que tinha feições humanas me agradava muito mais, pois, de qualquer jeito ele usava roupas e luvas de um hussardo[*]. Se ele fosse apenas feio eu me acostumaria com isso.”

Porém, a mais jovem disse,

— “Querido pai, ele deve ser um bom homem por tê-lo ajudado a resolver os teus problemas, portanto, se você prometeu que daria uma noiva para ele, a sua promessa deve ser cumprida.” 
 
Era uma pena que o rosto de Pele de Urso estivesse coberto de sujeira e de pelos, pois se não estivesse, elas teriam visto como ele ficou feliz ao ouvir estas palavras.

Ele tirou o anel do dedo, dividiu o anel em dois, e deu a ela a metade, e a outra ele guardou para si. Ele escreveu seu nome, todavia, na metade que ficou com ela, e o nome dela, na metade que guardou para ele, e pediu para que ela guardasse com cuidado a metade dela, e então, ele pediu licença e saiu:

— “Eu tenho de perambular por três anos ainda, e depois disso, se eu não retornar, estarás livre, pois eu estarei morto. Mas ore a Deus para que Ele preserve a minha vida.”

A pobre noiva prometida se vestiu inteiramente de preto, e quando ela pensava no seu futuro noivo, os seus olhos se enchiam de lágrimas. As suas irmãs somente a desprezavam e zombavam dela:

— “Cuidado,” dizia a mais velha, ”se você der a mão pra ele, ele vai machucar você com as suas garras.”

— “Seja esperta,” dizia a segunda, “ursos gostam de doces, se ele simpatizar com você, ele vai devorar você inteirinha.”

— “Deves fazer tudo que ele mandar,” começou a mais velha novamente, “ou então, ele vai começar a rosnar.” 
 
E a segunda aproveitou e disse:

— “Mas vocês serão felizes no casamento, porque os ursos gostam de dançar.” 
 
A noiva ficava em silêncio, e não permitia que as suas irmãs a entediassem. Pele de Urso, todavia, viajava pelo mundo de um lugar para outro, fazia o bem quando lhe era possível, e gostava de fazer doações aos pobres para que eles pudessem orar por ele.

Finalmente, quando raiou o último dia dos sete anos, ele tirou a capa mais uma vez, e se sentou debaixo do círculo de árvores. Não demorou muito e o vento começou a assobiar forte, e o tinhoso apareceu diante dele, e olhava furioso para ele, então, ele jogou o seu casaco velho para o Pele de Urso, e pediu o seu manto verde de volta.

— “Nunca chegamos tão longe em nosso acordo,” falou Pele de Urso, ‘‘tu deves me limpar primeiro.” Se o filho do cão gostava ou não, ele foi obrigado a buscar água, e a lavar o Pele de Urso, pentear seu cabelo, e cortar suas unhas. Depois disto, ele ficou parecendo um soldado valente, e estava muito mais bonito do que havia estado antes.

Quando o diabo tinha ido embora, Pele de Urso ficou muito aliviado. Ele foi à cidade, vestiu um magnífico casaco de veludo, se sentou numa carruagem puxada por quatro cavalos, e correu para a casa da sua noiva. Ninguém o reconheceu, o pai acreditou que se tratasse de um general muito importante, e o conduziu para o lugar onde as suas filhas estavam esperando. Ele foi obrigado a se colocar no meio das duas mais velhas, que serviram vinho para ele, lhe ofereceram os melhores pedaços de carne, e ficaram pensando que em todo o mundo não existiria homem mais perfeito.

A noiva, no entanto, sentou-se de frente para ele vestida de preto, e não ousava levantar os olhos, nem tinha coragem de dizer palavra alguma. Quando finalmente ele perguntou ao pai se daria como esposa uma de suas filhas, as duas mais velhas pularam, correram para os seus dormitórios, e vestiram roupas maravilhosas, e cada uma delas ficou imaginando que seria ela a escolhida. O desconhecido, assim que ele ficou a sós com a sua noiva, trouxe a metade do anel que havia ficado com ele, e o jogou dentro de um copo de vinho que ele apanhara em cima da mesa para ela.

Ela pegou o vinho, e depois que ela o bebeu, e descobriu a metade do anel no fundo do copo, o coração dela começou a bater forte. Ela pegou a outra metade, que usava num colar ao redor do pescoço, juntou as duas partes, e viu que as duas metades se encaixavam exatamente uma na outra. Então, ele disse:

— “Eu sou o teu noivo prometido, a quem conhecestes como Pele de Urso, mas, com a graça de Deus a forma humana me foi restituída, e mais uma vez estou limpo de novo.”

Ele foi até ela, abraçou—a, e deu—lhe um beijo. Enquanto isso, as duas irmãs voltaram todas enfeitadas e quando elas viram que o belo homem já estava comprometido com a irmã mais jovem, e souberam que ele era o Pele de Urso, fugiram tomadas de ódio e furiosas. Uma delas se atirou no poço, e a outra se enforcou na árvore. À noite, alguém bateu à porta, e quando o noivo a abriu, viu que era o diabo em seu casaco verde, que disse:

— “Veja você, que eu perdi a tua alma, mas, em compensação consegui duas!”
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* Hussardo: cavaleiro húngaro, soldado da cavalaria ligeira da Alemanha e da França.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Ascânio Lopes (1906-1929) Caderno de Versos


SERÃO DO MENINO POBRE


Na sala pobre da casa da roça
papai lia os jornais atrasados.
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
A luz frouxa do lampião iluminava a mesa
e deixava nas paredes um bordado de sombras.
Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis
— desde criança fascinou-me o maravilhoso.
Às vezes, Mamãe parava de costurar
— a vista estava cansada, a luz era fraca,
e passava de leve a mão pelos meus cabelos,
numa carícia muda e silenciosa.

Quando Mamãe morreu
o serão ficou triste, a sala vazia.
Papai já não lia os jornais
e ficava a olhar-nos silencioso.
A luz do lampião ficou mais fraca
e havia muito mais sombra pelas paredes...
E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior.
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CENA DE UMA RUA AFASTADA
                         Para Martins de Almeida

A solteirona fechou as janelas com estrépito.
Uma mocinha da escola normal passou firme, sem olhar.
Um senhor gordo disse que era uma pouca vergonha
e que nossa polícia não vigiava os costumes.
Mas, indiferentes aos gritos dos carroceiros,
às pedradas dos garotos,
a lulu de D. Mariquinhas e o fox-terriê
                 [ (meio sangue) do sr. Fagundes
continuaram impudicos no meio da rua.
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MINHA NAMORADA

Seu nome era besta e ela também
mas quase não falava e só sabia olhar.
Gostei dela
fiz versos puxados
gastei tempo nas rimas raras
e na colocação de pronomes
porque ela era normalista
e gostava de gramática e não perdoava galicismos.
Mas um dia ela descobriu meus versos modernos
e percebeu que fingia
e gostava de errar nos pronomes
e que meus sonetos eram só pra ela.
Então me deu o fora e arranjou um poeta sincero
que a comparava a Marília
e que sabia de cor a "Ceia dos Cardeais"
e que sapecava todos os ritmos novos
e as poesias sem geometria e compasso.

E ficavam cinicamente amando no portão
quando não iam ao cinema delirar com as fitas
                      [ dramáticas italianas 12 atos.
Ela me deu o fora.
Também nunca mais fiz sonetos.
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SANATÓRIO

Logo, quando os corredores ficarem vazios,
e todo o Sanatório adormecer,
a febre dos tísicos entrará no meu quarto
trazida de manso pela mão da noite.

Então minha testa começará a arder,
todo meu corpo magro sofrerá.
E eu rolarei ansiado no leito
com o peito opresso e de garganta seca.

Lá fora haverá um vento mau
e as árvores sacudidas darão medo.
Ah! os meus olhos brilharão procurando
a Morte que quer entrar no meu quarto.

Os meus olhos brilharão como os da fera
que defende a entrada do seu fojo.
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Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá (MG), em 1906, mas foi criado em Cataguases, onde faleceu, em 1929. O poeta transferiu-se para Belo Horizonte em 1925, onde cursou a escola de direito. Em 1928, já doente, retornou a Cataguases.

Uma atividade marcante na curta vida de Ascânio Lopes foi sua participação no grupo que fundou a revista Verde, publicada em Cataguases 1927 e 1929. Publicação modernista, a Verde reunia jovens como o romancista Rosário Fusco e o poeta Guilhermino César. Cataguases era um polo de criação artística. Na mesma época, o cineasta Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, havia montado na cidade sua produtora, a Phebo Sul America Film.

Modernista de primeira hora, Ascânio Lopes se correspondia com Mário de Andrade e escrevia poesia, prosa, ensaio. Seus versos, como não podia deixar de ser, têm muitos traços do modernismo anos 20. O poema "Serão do Menino Pobre" até lembra o lirismo drummondiano de "Infância" (de Alguma Poesia, 1930). Ascânio: "Na sala pobre da casa da roça / papai lia os jornais atrasados. / Mamãe cerzia minhas meias rasgadas."  Drummond: "Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia."

Em textos como "Cena de Uma Rua Afastada" e "Minha Namorada", Ascânio Lopes mostra a irreverência da fase heroica do modernismo, com uma irresistível inflexão para o poema-piada. No primeiro, trata de um tema que jamais poderia ser motivo de poema nos padrões tradicionais. No outro, numa ironia bem ao estilo do "Desafinado" bossa-novista, queixa-se de uma namorada normalista que colocava bem os pronomes e detestava versos modernos.

Em "O Chefe", o poeta se volta para a crítica aos desmandos dos potentados interioranos. Por fim, vem a nota mais doída. É a crônica amarga de um jovem que se vê definhar num hospital sem esperança de cura. "Sanatório", poema autobiográfico, é a página mais citada de Ascânio Lopes.

Com a morte do poeta, a revista Verde se dissolveu. Os remanescentes publicaram ainda um último número, exatamente para homenagear o amigo morto. Sobre Ascânio escreveram nomes como Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade.

Em vida, Ascânio Lopes publicou apenas um livro, chamado Poemas Cronológicos (1928). Ao todo, sua obra resume-se a 48 poemas, um fragmento de novela, três ensaios e quatro resenhas. Todo esse material, mais outros documentos sobre o autor, está reunido no volume Ascânio Lopes – Todos os Possíveis Caminhos, do romancista cataguasense Luiz Ruffato.
Carlos Machado


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 02

 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXIV

A austeridade de outrora,
começava ao namorar,
hoje, ninguém mais namora,
todos pensam em "ficar".
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A família sempre acolhe
o filho que dela evade,
nunca a punição o tolhe
mesmo sendo só saudade.
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A vida tem se mostrado
tal sorvete a ser sorvido,
no início, doce e gelado,
mas no final, derretido.
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Da inveja, somada ao ódio,
nasce a divisão renhida,
multiplicando o episódio
de subtrair paz à vida.
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Entre a dor e o desespero
há um pedregoso caminho,
tal um amargo desterro
que o ser palmilha sozinho.
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Há quem mude a todo instante
conforme o que lhe convém,
Ignora o seu semelhante
como se fosse ninguém.
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Muitas pedras espalhadas
no leito e fora dos rios,
podem ser consideradas
base para os desafios.
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Não pretendo ser lembrado
apenas por um "ninguém",
mas por ter colaborado,
nesta vida em ser alguém.
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Nas trevas do isolamento
o homem se insula e padece,
aumenta o padecimento
e à sombra abissal fenece.
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Nenhuma estrela pereça
sem transmitir seu fulgor
e à luz, com garbo se aqueça
a alma que buscar calor.
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Ninguém gosta de adentrar
num local sem ar nem luz,
a não ser para encontrar
a fonte que à vida aduz.
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O frio se intensifica
e a temperatura cai,
a paisagem modifica
e o vivente se contrai.
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O que faz a humanidade
aumentar de forma errada,
se esconde à curiosidade,
cada vez mais explorada.
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Perdemos tempo testando
métodos e alternativas
e acabamos encontrando
frustrações nas tentativas.
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Pra que se ater na matéria
quando for inerte ou vil?
Se a ilusão gera a miséria,
a queda, um sonho senil.
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Rente o fim da caminhada,
o andante retrai seus passos,
oxalá encontre na estrada,
mais conquistas que fracassos.
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Se faltar no campo a planta
e o seu fruto a fervilhar,
não terá almoço, nem janta.
sobre a mesa familiar.
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Sem jamais titubear
ao responder, se indagado,
até no solo lunar
diz pousar, já tem sonhado.
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Sê tu mesmo a solução!
Jamais, parte de um problema.
Muito mais que proteção,
a supressão do dilema.
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Também me sinto envolvido
num processo de mudanças,
como um soldado aguerrido
que não perde as esperanças.
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Toda a pedra à mão guardada,
não sabe como termina,
poderá ser lapidada
ou tornar-se uma assassina.
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Tudo o que começa mal
termina igual, ou pior,
planejar bem é vital,
para alcançar o melhor.
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Tudo o que há na natureza
tem um meio a lhe prover,
na condição de defesa
se um ataque acontecer.
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Tudo o que tens nesta vida
jamais deves desprezar,
se ajudou-te na subida,
pode ao descer, dor causar.
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Um bom prato de alimentos
posto à mesa, a fome abate,
mas após alguns momentos,
retorna a mais um combate.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Mia Couto (Amor à última vista)

Enquanto vestia o morto, seu obituado marido, Dona Faulhinha mantinha uma conveniente lágrima. Era sempre a mesma lágrima, a única que ela derramara depois que Ananias Xavier se decidira defuntar. Se a lágrima merecia desconfiança, o falecimento não era menos fiável. A mulher deitava dúvida em Ananias, mesmo no trespasse fatal. O homem invocara uma suspeitosa doença. Pouco contava, agora, a verdade do motivo. Certo é que a suspeita ruminava em seu peito. Na penumbra da sala, Faulhinha recebia as condolências. Para efeito das visitas, ela exibia a lágrima, prova da sua tristeza, rebrilhando no fundo negro do rosto.

Quando ficou sozinha com o cadáver, Faulhinha chorou de verdade. Não por pena do falecido. Mas com desgosto de não ter sido ela a levada. Com inveja de o dedo de Deus não ter revirado sua página no livro dos viventes. Que lhe restava, agora? Ser uma réstia, sobra do nada que fora a sua vida? Durante o casamento nunca fora feliz. Mas, ao menos, ela se nutria de ódio por seu esposo, supremo mulherengo, mestre das malandragens.

Depois de chorar, lhe pareceu que qualquer coisa eclodira dentro de sua alma. Se sentiu vazada, mas não vazia. Porque o seu dentro se fez fora: lhe veio o irreparável desejo de morrer. Sempre fora mulher de sombra, no quieto subúrbio do seu viver. Se nunca tomara o pulso à vida como podia, agora, decidir pôr termo a si mesma? Não, ela nunca teria coragem para o derradeiro gesto.

Faulhinha foi a um canto do quarto e retirou a gaiola com o pássaro de estimação do falecido Ananias. Um papagaio de cabeça cinzenta que sempre a irritara e cujo trato ela declarara estar fora das suas domésticas obrigações. Mas que ela prometera tratar, com respeito, após a morte dele. Ficou olhando a gaiola e mais o incompetente bicho sobre a mesa de jantar. Viu uma tristeza nos olhos do pássaro. Simples impressão, papagaio é bicho enganoso, bem apropriado para o malandro do Ananias. Depois, a mulher ficou parada como se nela aflorasse, por fim, a mais antiga decisão de toda sua vida.

Então, se ajoelhou, ela que nunca se havia prostrado. Sofria dos ossos e das junções.

— Um dia que me ajoelhe nunca mais sairei do chão — sempre dizia.

Mas, desta vez, demorada e custosamente, ela se dobrou, joelhos na nudez da pedra. E pediu a Deus que emendasse tal morte. A levasse, sim, a ela, Dona Faulhinha da Conceição Dengo. Que ela não daria nenhum trabalho. Os anjos não necessitariam de cumprir horas extra. Morreria com tanta modéstia que nem se daria conta que se havia retirado da vida. A morte, naquela noite, nem lhe haveria de doer. Engoliria a última gota de ar, em deslize da vida para o nada. Sem suicídio, sem golpe, sem autoria. Como porta que se fechasse sem gesto nem vento. Ausentemente. Nem morrer aquilo seria: o nenhum verbo.

Vale a pena ouvir as palavras de Faulhinha Dengo. Ela que vivera sempre calada, agora, no extremo momento, se empenhava na mais cuidada oratória. Seu fito: encantar o próprio Senhor dos céus, Ele que, coitado, estaria saudoso da beleza da palavra.

Escute-se, pois, a estranha oração de Faulhinha, com a devida vênia:

— Estou a pedir licença a Deus para sair da vida hoje. Sim, me encomendo, certa e deserta. Me deixe passar para lá da margem, senhor Deus. É que, nesse outro lado, eu podia ajudar Ananias a se vestir, servir seu prato, remendar seus trapos.

Num repente, um ruído no quarto a sobressaltou. Um ranger de leito, um estalar de ossos, a fez arrepiar. Olhou de viés, que o medo não a autorizava a mais. Levou as mãos à boca para não gritar. Ali sobre o féretro, o cadáver emendava sua morte, erguendo-se e começando a falar:

— Florzita: não fale assim com Deus!

Era uma ordem? Não, era uma súplica. Pela primeira vez, ele lhe pedia alguma coisa, com humildade.

— Não faça isso, mulher, não peça para ir.

— Não se meta, marido!

— Eu preciso que fique aí, nessa outra banda. É que não tenho nenhum vivo que continue tratando de mim.

Mas Faulhinha continuou, após o susto, proferindo suas orações, encomendando a pouca réstia de alma. Ela estava pensando com o corpo no universo: como o mundo seria melhor se todos os mortos tivessem sido enterrados sorridentes. A gente chegaria até ouvir gargalhadas dos defuntos, saídas da terra quando a lua lustrasse em cima, arredondadinha. É que, da maneira que se retiram contrariados, os mortos sentem ciúme da Vida, carecendo de substância.

Cansado de escutar, o falecido agravou seu tom. Ele já não pedia. Voltava a seus modos de vivo. E berrou, ameaçou. Impassível, a esposa suspirou:

— Cale-se, Ananias. Se não, eu não consigo ouvir a voz de Deus.

— Escusa... Deus não vai falar consigo.

A esposa não dava ouvidos. E regressava às rezas. Ananias seguia, fermentando fúria. A dado momento, ele até se riu. De novo, sua risada desvalorizava a mulher. Mas depois, ele se retomou patrão, sisudo mandador.

— Eu só tenho um instante, mulher, me escute. É que tenho tarefas para você ir executando por aqui.

— Bem pode falar. Já lhe escutei demasiado quando você era vivo.

— Na nossa raça quem não respeita os mortos? Eu.

— Está armada em branca?! Pois lhe pergunto.. você está falar para qual Deus? Os nossos antigos ou esse de agora?

— Escuta, Ananias. Você não morreu?

— Sim, morri.

— Então deixe-se estar morto.

Se calasse. Mais ainda: deixasse de ter voz, deixasse sequer de deixar memórias. Que ele há muito já a tinha feito extinguir. A ela que nascera de mais. Nascera tanto que pensara que seria para sempre. Não se adivinhava mas Faulhinha tivera o seu reino. Não parecia mas ela tinha sido menina feliz, com infância farta. Era isso que a tinha salvado: o estar guarnecida de lembranças de um tempo que só há fora do Tempo.

Casara para ser duas, acabara sendo nenhuma. Asa esquecida, sua alma já esquecera o perfume do voo. Culpa dele, o Ananias. Por isso, ele a deixasse sair da vida, como ela bem queria.

O morto escutava, alarmado, as palavras de sua esposa. Falasse Faulhinha tão lindo: ele nem sabia. Antes, ela sempre se apagara em silêncio. E agora, escutando a rendeada oração, Ananias a desconhecia. Por exemplo, suas estas palavras:

— Eu quero entrar no chão antes que acabe a terra.

E, de novo, Faulhinha dirigia suas petições para ouvidos divinos. Enterrada fosse ela de cara visando o chão. Olhos fitando o céu. Agora já não lhe bastava amar as flores: necessitava ser haste e pétala, florescer por aí, fazer, por fim, justiça a seu nome.

De repente, o morto fez menção de avançar sobre a esposa. Aproveitou ela estar de joelhos e a segurou pelo pescoço. Mas a mulher respondeu com raiva e a força de seu braço reconduziu o falecido ao seu último leito. Quando falou, debruçada sobre o espantado Ananias, Faulhinha cuspia rancores:

— Não entende, sacana? Não entende que eu não quero ser sua viúva?

Pior que ter sido esposa seria carregar o luto dele. Podia ser viúva de qualquer um. Menos dele, saturada de ser sombra, ausência, espera. O morto, surpreso, ainda falou:

— Mas ainda há pouco você pedia a Deus que queria tratar de mim, aqui nos aléns...

— Pois mentia.

O falecido Ananias voltou a se entornar no leito. Ficou imóvel, categoricamente falecido. A última sílaba se enroscou nos seus olhos. Com as próprias mãos baixou as suas pálpebras. E refaleceu. Desressuscitado.

Sem se erguer, apenas arrastando os joelhos para perto da mesa, a mulher puxou a gaiola para junto de si. Abriu a porta. O papagaio não saiu logo da clausura. Esperou que o corpo da mulher se vertesse no chão inteiro. Faulhinha se derramou, abraçada pelo chão. O pássaro ainda esperou um tempo mais. Paciente, como se esperasse que o chão se convertesse em terra. Ou como se soubesse assuntos só dele. Depois, sacudiu as asas enquanto lançava um derradeiro olhar sobre a mulher. Se Faulhinha ainda ali estivesse teria reconhecido, com estranheza, aqueles olhos. Só então o pássaro voou, adentrando-se no seu primeiro céu.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

domingo, 4 de setembro de 2022

Adega de Versos 89: Renato Alves

 

José Roberto Balestra (Versos Avulsos)


O tempo acelera, mas... PACIÊNCIA; a vida é tão rara...

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência

O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo, e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que me falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber?
A vida é tão rara (tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, eu sei, a vida não para (A vida não para, não)
A vida não para

A vida é tão rara...
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Há mais no céu de hoje do que se imagina…

O sol que fica perto de lá... bemol
Neblina que vem d’manhã... é sol
Dó de si o é porque foi... sustenido
E si de dó na volta é bemol... sustentado

Advertiu Riobaldo; viver é muito perigoso!
Então hoje vou estar mais preocupado.
Porque quando não aparece o tinhoso
Costuma vir o secretário atentado.

Preciso me benzer com muito sal:
Hoje tem Lua mais longe de noite
E também eclipse lunar penumbral
Acho muito pr’um só dia de açoite

Assim peço, e me sinto consolado:
- Valei-me meu São Serapião,
Protetor dos órfãos e abandonados,
Tira-me os pés das más coisas do chão
De hoje…

Fonte:
Blog A Balestra
https://zerobertoballestra.blogspot.com/

sábado, 3 de setembro de 2022

Milton S. Souza (A melhor coisa do mundo)


A pergunta que aquela professora de quarta série de uma escola municipal de Santo Antônio da Patrulha fez para os seus alunos deixou a classe inteira agitada. Ela deu dez minutos para eles responderem por escrito “Qual a melhor coisa do mundo?”. Depois de diversas consultas entre eles, com a formação de grupinhos, os alunos baixaram a cabeça e começaram a escrever as suas respostas. Quando todos terminaram, a professora recolheu as folhas, separou por assuntos, e começou um debate em sala de aula.

A grande maioria dos alunos colocou a saúde como melhor coisa do mundo. Mas alguns pensaram diferente.

Para aquela menininha de tranças, olhar triste e perdido, “a melhor coisa do mundo é ter um pai e uma mãe”. Ela completou dizendo que “não é fácil viver jogada no mundo e ser criada por estranhos”.

O garoto mais bagunceiro da classe afirmou que “a melhor coisa do mundo é  matar aula para jogar futebol”.

A garota de óculos “fundo de garrafa” que sempre sentava na primeira fila ressaltou que “A melhor coisa do mundo é enxergar bem”.

O menininho raquítico e esfarrapado, que já havia sido ajudado várias vezes pelo atendimento social da escola, garantiu que “a melhor coisa do mundo é ter o que comer”.

E aquela garota gordinha, que seguidamente trazia flores ou maçãs para a professora, esbanjou puxa-saquismo dizendo que “a melhor coisa do mundo é ter uma professora como a senhora”...

Nem é preciso dizer que o debate na sala de aula rendeu muito. O grupo que apostou na saúde enfrentou todos os outros dizendo que “sem saúde não adianta ter comida, casa, mãe e pai ou qualquer outra coisa”. Ao defender a ideia, eles até conquistaram os apoios de vários daqueles que pensavam diferente. Até o matador de aulas concordou que sem a saúde não dava para jogar futebol. Mas o grupo não conseguiu convencer a menina de tranças de que saúde é melhor do que ter pai e mãe: “Se alguém não tem saúde, mas tem um pai e um mãe para lhe cuidar, pode superar os seus problemas. Se alguém tem saúde, mas não tem pai e mãe, pode ficar doente por viver atirada no mundo”. A lógica da menina chegou a emocionar a professora. No final da aula, ela explicou para os alunos que a melhor coisa do mundo seria aquela que a gente estivesse necessitando com urgência naquele momento, seja a saúde, uma casa, um pai ou uma mãe e até um copo de água para matar a sede.

E você, leitor, que resposta daria para aquela pergunta? Eu, por exemplo, teria muita dificuldade para responder. São tantas as coisas boas e valiosas que Deus coloca todos os dias na minha vida que seria quase impossível optar por apenas uma. Talvez eu ficasse com o amor daquela pessoa que mais amo. Talvez colocasse nesta resposta a minha família inteira. Talvez tivesse que pensar muito antes de retirar das opções as minhas duas maiores manias: ler e escrever. Qualquer resposta, por certo, ficaria incompleta. Por isso, vou apostar em uma mais simples que, no meu modo de ver, consegue englobar todas as outras: “A melhor coisa do mundo é, mesmo, viver”…

Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/84963

Fabiano Wanderley (Glosas) - 6


BEHRING LEIROS, O POETA,
PÕE NO VERSO, O CORAÇÃO.


Com o esmero, que secreta,
sabe expor, seu sentimento,
faz fluir o seu talento,
Behring Leiros, o poeta.

Quando na alma, ele arquiteta,
uma grande inspiração,
trás no afã dessa emoção,
todo o ardor da sua essência,
com ternura e sapiência,
põe no verso, o coração.
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CADA QUAL TEM SEU ALGOZ
NESTE MUNDO DE MORTAIS


É próprio, de todos nós,
seja rico ou seja pobre,
preto escravo ou senhor nobre,
cada qual, tem seu algoz.

Quem não teve um dia atroz?
Se, ante a Deus, somos iguais.
Não esqueçamos, jamais,
que os ricos também padecem,
que afinal todos perecem,
neste mundo de mortais.
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ESSE CARA NUNCA MENTE,
PORÉM VERDADE NÃO DIZ.


Se escuta, frequentemente,
que ele é dono da verdade,
que adora a sinceridade,
esse cara nunca mente.

Eis que sabe muita gente,
cá, do café São Luiz,
que o mesmo, se contradiz,
nas coisas que ele comenta,
se, de fato, não inventa,
porém verdade não diz.

(A um cidadão, que gosta muito de contar vantagem, mas, que fica furioso, se acha, alguém que o discorde)
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O SENHOR JÁ ME OFERTOU
SETENTA ESTRADAS DE VIDA.


Amigos me premiou,
me deu luz, felicidade,
um grande amor de verdade,
o Senhor já me ofertou.

Também me presenteou
nesta estrada prometida,
uma família querida,
com muita paz e carinho,
marcando, no meu caminho,
setenta estradas de vida.
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PELAS ANDANÇAS DA VIDA,
ME VI, NA TRILHA DO TEMPO.


Buscando sempre guarida,
ante os prazeres do mundo,
vivi meu tempo fecundo,
pelas andanças da vida.

Essa fase tão vivida,
como um mero passatempo,
sem hora, sem contratempo,
sem queixas ou desenganos,
levou consigo, meus anos,
me vi, na trilha do tempo!
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TÃO SOMENTE POR AMOR
CAPOTOU MEU CORAÇÃO...


Fez-se um servo, um servidor,
se entregou de corpo inteiro,
se tornou prisioneiro,
tão somente por amor.

Quase em meio a um torpor,
sem conter tanta emoção,
desprendeu sua paixão,
seu amor tão inerente
e aos pés da Deusa, fremente,
prostrou-se o meu coração.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Arcanjo renegado)

VOCÊ CHEGOU até aqui, não sei vinda de onde, ou a mando de quem. Sei apenas que apareceu do nada, a procura de uma vaga de emprego. Deixou um currículo simples sobre a minha mesa, com foto, telefone de residência, celular, três pessoas conhecidas para discorrerem sobre o seu caráter. Enfim, um portfólio simples, resumido, com os acessórios necessários para um contato posterior, caso eu optasse por eleger o seu nome ao cargo vago na empresa da qual exatos vinte anos tenho sido o insubstituível diretor de recursos humanos. Aconteceu que junto com a pequena apresentação por você trazida, veio algo mais forte embutido no contexto. Na verdade, de roldão, caiu de dentro do envelope rosa, um elo forte, mais robusto que a sua própria vontade de querer trabalhar.

Diria que junto com aquela folha de papel, um perfume inebriante (cuja essência entrou pela sala) se fez mais fornido (*1). Grudou nas paredes. Em contínuo, aderiu aos quadros, se anexou aos móveis e, deles, partiu direto se “adjuntando” (*2) para dentro de mim, indo, por consequência, se alojar sorrateiro num lugarzinho secreto existente em meu âmago e também no centro nevrálgico do meu coração. Você deixou, melhor dito, não deixou... ficaram de você, pedacinhos de sua beleza entrelaçados com estilhaços do seu carisma. Igualmente fragmentos de sorrisos bonitos e indescritíveis permaneceram gravados na minha retina. De contrapeso, um mistério bucólico se projetou no ar, e junto, um segredo perene, um mimo cresceu imensamente a partir do momento em que, dado por encerrada a entrevista, você se levantou, me desejou um bom dia, sorriu brejeira e maviosa.

Em seguida, a sua beleza ímpar virou as costas e foi embora. Partiu, e quando me dei conta, percebi que o calor abrasante da sua presença havia se incrustrado em minhas entranhas. O seu cheiro de mulher se fez retido no HD da minha memória. E não foi só. O seu cheiro de fêmea à flor do cio, persistiu veemente, e, logo em seguida, se propagou ensandecendo o meu franzino de homem literalmente esfanicado (*3). A sua voz, ainda agora, tanto tempo passado, ouço, serena e calma, tranquila e deliciosa, “caliente” e fagueira nos meus sonhos, de onde, aliás, nunca mais consegui apagar. Digo tudo o que me vai na alma, nesse exato momento e, tal fato, jogado no ar, assim abertamente, tem o condão de extravasar de dentro da alma o que antes se fez convicção, porque depois daquela despedida, algo inusitado mudou os destinos e os rumos da minha vidinha pacata.

O meu “eu” passou a viver exclusivamente para fortalecer o seu absentismo (*4).  Lembro, dias depois, voltei a ligar e marcamos um apontamento, ou melhor, você me fez um convite que considerei excêntrico e original. Pediu que na sexta-feira, por volta do meio dia, fosse até a sua casa almoçar e, na oportunidade, conhecer a sua mãe. Pior que não resisti à tentação. Não é que não aguentei. Simplesmente não me furtei ao impulso incitante do chamamento. Fora de mim, alvoroçado pelo que sentia, me coloquei em brios de um sujeito sério e respeitoso e meu Deus, lá fui eu, embasbacado, lustrando as presas para o golpe da fera adormecida, caso atonasse. Brincadeira, modo de dizer. Apareci como combinado, de cara limpa, a única, aliás, que me acompanhou desde que me entendi por gente. Surgi assim como você em minha sala, exceto pelo atraso. Quase às duas da tarde, para o tal almoço. Demorasse mais um bocadinho, certamente mataria a sua mãe de fome e a Frigidaire azul dos tempos de Belchior de vergonha (*5).

Depois dos comes e bebes, sentamos na sala. Conversamos, tomamos café, lanchamos e, quase às dez horas da noite chegou a hora de tirar o time de campo.  Passado a magia do inaugural, na segunda-feira voltamos a renovar tudo o que havíamos feito. Lanchamos na padaria perto da empresa. Na terça-feira, você sumiu de vez. Não sei para onde. Escafedeu. Liguei por diversas vezes e ninguém atendeu, nem a sua mãe o telefone fixo. Nessa brincadeira infeliz, um mês se passou. Não mais tivemos contato, nem pessoalmente, nem por WhatsApp. Por esse motivo, bem por esse motivo, acredito, me favoreço com a nostalgia ingrata da sua dispersão. E, por ela, creio, permaneceu no ar, desde sempre, um vazio muito grande, um oco doentio que se tornou maior com o passar das horas e das semanas subsequentes.

Cinco meses hoje. Acabou. Agora entendo, a cabeça ainda doendo, os batimentos acelerados, todavia os pés firmes assentados no chão. Percebo, tudo o que vivemos em tão curto espaço de tempo, virou saudade. O que foi dito e o que não saiu pelas nossas bocas escancaradas, naqueles encontros me faz pensar que coloquei cupim na Santa Cruz. Sinto, em paralelo, no calor destilado da minha emoção, as risadas que demos, os abraços trocados, os beijos permutados, o amor disparatado dentro do carro na garagem da sua casa... me recordo sobremaneira, despindo a goles poucos, o seu corpo diante de uma expressão contumácia. Recapitulo as nossas pernas enclausuradas qual cadeado emperrado... enfim, final de tudo, nossos suores ajoujados como dois gatos selvagens brigando por um ratinho de esgoto. Tudo acabou em coisa alguma, atrelada numa sequência degenerativa que se transformou nessa lacuna enorme e de inconsequente solidão.

Tenho consciência que embarquei numa canoa furada e somente eu careço urgentemente de encerrar essa viagem. Colocar um ponto final definitivo bem sei, demanda, o mais depressa possível à minha consciência desequilibrada. Necessito antes que morra de nostalgia pelo silêncio iracundo (*6) que se perpetuou em derredor da minha vida, me restabelecer à normalidade. De resto, esquecer a sua vinda ao meu quadrado, ao meu mundo. Rasgar o seu currículo em pedacinhos e jogar no lixo o seu retrato. Apagar do meu celular os seus telefones, as conversas e mensagens que trocamos. Tenho que olvidar, igualmente esquecer a sua rua, o seu bairro, a sua mãe, a casa, o almoço, o lanche na padaria, o amor inesquecível que fizemos no banco traseiro do automóvel. Ou isso... ou, em patente hostil e nocivo, acabarei louco... um tresloucado varrido desorbitado e à mercê da própria imbecilidade.   
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* Notas de rodapé:
1 – Fornido: O mesmo que abastecido, robusto, corpulento
2 – Adjuntando: Aquilo que está próximo, contíguo, agregado
3 – Esfanicado: Despedaçado, esmigalhado, esfarrapado
4 – Absentismo: O que falta com seus deveres e obrigações
5 – Frigidaire: Geladeira, refrigerador
6 – Iracundo: Pessoa cheia de ira, encolerizado, violento


Fonte:
Texto e notas de rodapé enviados pelo autor.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 38

 

Humberto de Campos (As camisas)

Há muitos dias que o Dr. Abelardo insistia com a mulher, a encantadora D. Silvia, para que usasse umas camisas de seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe deviam assentar admiravelmente sobre a pele clara, macia, cetinosa. Apaixonada pelo marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura Luizita Corrêa, D. Silvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do quarto de vestir, em que guardava as suas roupas de interior e, tirando as dezenas de camisas que ali estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a uma, ao esposo:

- É assim?

- Não.

- É dessas, de seda, enfiadas de fita?

- Não.

- É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?

- Também não!

E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.

- Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?

D. Silvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:

- Camisas de dia, de seda, para senhora; n. 3.

- Que cor? - indagou, solicita, a moça que o atendeu.

- Cor de rosa.

A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato, exigente.

- Não são destas? - consultou.

- Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.

- Ah! Já sei! - exclamou a mocinha, sorrindo.

E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.

- Julieta!

Apareceu, em cima, no balaústre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.

- Manda-me dali, por favor - pediu - a caixa de camisas n. 8.645.

E, particularizando, alto:

- Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?

Quando as camisas desceram das nuvens, D. Silvia tinha subido.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Jaqueline Machado (A cor púrpura)

Cellie, a instigante personagem da obra: A Cor Púrpura, da incrível autora Alice Walker, não nasceu para a vida. Nasceu sim, para a dor, para o horror e para a aceitação do que é inaceitável.

A jovem negra, nascida numa fazenda, quase sem estudos, nunca teve direito a nada. Passou por todos os tipos de torturas, inclusive a de ser violentada pelo próprio pai. Pai, não, um monstro que a engravidou duas vezes e vendeu as crianças logo após nascerem.
 
Cellie era muito apegada à sua irmã Nety, mais jovem e mais estudiosa. Com ela, tentava desenvolver alguns estudos, mas com a sua mente cansada e sem propósitos, quase nada conseguia assimilar. Seu coração triste, mais sombrio ainda ficou depois que sua irmãzinha tão jovem, casou-se com um viúvo que tinha idade para ser seu pai.
 
Pobre Cellie, só lhe restava os constantes desabafos que fazia diariamente escrevendo cartas para Deus, com as suas rudimentares mal traçadas linhas.

Com mais ou menos vinte anos, ela é vendida a Albert, um homem cheio de filhos. Era mais escrava do que esposa. Cuidava da casa, das crianças, do roçado e, como se não bastasse, ainda teve que abrigar e cuidar da amante do marido, uma cantora chamada Avery Shug, que estava doente. Mas para surpresa geral, as duas ficaram amigas. Avery era uma mulher ousada, livre em seus pensamentos e ajudou a mudar a mentalidade abnegada da esposa - escrava.
 
A cantora gostava de Albert, mas, com a saúde estabelecida, passou a gostar mais ainda da mulher do seu amante, com quem viveu um romance. Antes da chegada de Avery, Cellie não conhecia prazer e vontades. Direitos humanos, para ela, pertencia ao pós- morte. Pensava: “A vida aqui na Terra passa rápido, mas o paraíso é eterno”.
 
Porém, mais tarde passou a ter voz e fazer valer as suas opiniões numa sociedade norte-americana, onde a utilidade da mulher negra era apenas servir.

História triste e ao mesmo tempo bela. Sua mensagem reflete as problemáticas sociais do passado e do nosso presente.
 
Fonte:
Texto enviado pela autora

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 4: O Voo da Sereia

 

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo aconteceu no silêncio de um instante)

DE REPENTE você se fez real, palpitante, verdadeiro e incontestável. A sua vinda triunfal se misturou ao bulício inquietante de uma espera auspiciosa e vibrou dentro de mim em particular, como uma música suave que encantou o meu espírito e inebriou o que, num piscar de olhos, se tornou imensurável. Por conta de fenomenal milagre, me peguei em transe contínuo. Vibrei o âmago como se estivesse em uma roda da Cumbiamba (*1).  E não parei por aí. Vi-me, a partir de regalos auspiciosos, viajando envolto em nuvens sedentas de paz e aconchego, como se devaneasse num sonho fascinante, um embevecimento que nunca antes havia descoberto dentro da minha galopante e tola obscuridade. Pequeno ser recém-chegado de um mundo distante, bem longe da Terra, você se materializou em flor botão.

Se abriu sempiterno e imarcescível, se fez jubiloso, como na reencarnação de um ser engrandecido, se aconchegou de forma magistral em meu peito, se transformou como uma esperança nova a tecer no quadro da minha vida pregressa, caminhos novos, estradas e sendas que até então eu não sabia existirem em meu destino. O seu rostinho moldado nas asas de um amor angelical, se propagou em uma cópia justa e perfeita, tal como se em seu semblante eu revisse, num filme da infância longínqua, a minha Narjara (*2) em melodiosa ascendência no florido trinta de junho de mil novecentos e oitenta e nove.

Faço menção aqui, meu neto Miguel, e quero que você saiba, desde agora, um dia, quando tiver entendimento, a sua mãe, minha filha, quando ainda, na sua inocência mal desabrochada, brincava por ruas descalças nos meus anseios e eu nem sabia direito o que se constituía ser um “pai de verdade”.

Em outras palavras, eu não tinha pontos de referências robustos para entender, em todo o esplendor, o verdadeiro significado do que meus familiares me apontavam como o folguedo da tal Felicidade. Via-me meio sem juízo, como Holden Caulfield (*3) aos dezessete anos. Agora, meu lindo, nada do que ficou na partícula da distância importa. O que faz toda a diferença é que você se fez viçoso e luxuriante, assim do nada, e, agora, descansa envolto em um berço de fronhas e lençóis recheados de muito amor e carinho. Pois é, meu Príncipe! Você veio de mansinho. Viajou nove longos meses agasalhado em um lugarzinho secreto e, ao chegar, me abriu, no âmago do coração despedaçado, lembranças de outros tempos.

Trouxe, na bagagem, ao meu agora, velhos rascunhos amarrotados de um “tenebroso passado” que dormitava quieto e anônimo dentro da minha imaginação sequiosa e à espera do momento certo e oportuno de vingar, coroar e me fazer voltar a ser avô novamente. O milagre, pois, se fez real. Eu não sou mais aquele garoto que conversava com um pé de Laranja Lima e morava num palácio japonês bem longe da terra. Por isso, agora, de fato, vovô (seu avô), me vejo prestigiado e vivo, saudável e de bem com o aconchego dessa exortação, como se renascesse das cinzas, não como a Fênix mitológica, todavia, dentro de uma prerrogativa próriga (*4) e condescendente, tipo um afago inexorável até então acanhado e enlanguescido.

Num passe de mágica vasto e desmedido, enquanto uma música se esvaia no ar, voltei às carreiras e nos solavancos do tempo (do meu tempo) e me restaurei, por inteiro, a alma e todo o meu “eu oculto” aos prazeres indescritíveis da sua apropinquação aos contornos do meu mundo. Por conta de tamanho evento, num instante obumbrado, me faço real. Aliás, me fiz real. Não me vejo sindromeado, como se vivesse às loucuras de Diótrefes (*5). Tenho consciência que me soergui fundido num relicário de poemas novos, atrelado num ofertório agraciado pelas mãos santas do Pai Maior. Talvez, por conta de tamanho segredo, oculte ainda mágoas, sofridas, intempéries possivelmente advindas do meu pretérito trilhado à desvãos da má sorte.

Em paralelo, ao desalinho dos caminhos da fatalidade e, ainda, por via de mãos incertas, me debatia, à deriva, fustigando a vida de maneira errônea, pelejando, porém, para que ela se fizesse, a cada segundo, mais plena e confiável, acordando sempre de uma pasmaceira-letárgica antiga, à chegada nova de um porvir que se aproximou saudável e triunfante. Claro, obviamente, sem me importar com as cores dos matizes que ainda insistem em se manterem espessas, carregadas de incertezas, prontas para turvarem a minha verdadeira realidade dos meus tempos de agora.  Por tudo o que acima deixo exposto, você, meu neto, será o meu grito de vitória. Igualmente, a euforia ímpar das boas vindas que circulam dentro das minhas expectativas de um porvindouro repletado de bons presságios.

Sobretudo, meu pequeno Miguel, seja a sua estada em meu trilhar, o curso auspicioso, o reverdejar constante e avigorado de uma condição espiritual que acredite, imaginava degenerada, desfalecida, apesar do meu pedido de socorro “incessantear” (*6) na esfera do meu paroxismo que ainda, neste exato momento, aflora incansável e majestoso, grandiloquente e monumental, como a intensidade febril de uma alma literalmente acampada em benfazejo clima de festa.
      
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* Notas de rodapé:   
(1) Cumbiamba - dança de roda colombiana, muito popular na costa atlântica.
(2)  Narjara - minha filha com Carla Laranja.  
(3) Holden Caulfield - personagem do romance “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger, lançado em 1951.
(4) Próriga - sem rodeios ou desvios.
(5) Diótrefes - Homem ambicioso e inóspito, citado na 3ª epístola de João v. 9-11.
(6) Incenssantear – ser esforçado, quase repetitivamente.


Fonte:
Texto, fotos e notas enviadas pelo autor.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 13

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 60

Noite para dormir quentinho. Frio de renguear cusco, como se diz nas querências do sul. Ventos de agosto seguem intangíveis, mas sentidos até nas entranhas dos viventes. Céu e terra e ares por testemunhas.

A noite chegou imensa na lua cheia, na frialdade, nalgum ranger de dentes. Na verdade o povo que habita a parte meridional do país está bem acostumado com as temperaturas do inverno.

Os meses de intempéries - geada, ventos gelados, frio, neve - dão origem a uma diversidade de prazeres nas pessoas. Alguns gostam de dormir no frio, outros, de levantar cedo, os enófilos, de bebericar os vinhos, e há aqueles que gostam de viajar para locais frios os mais tradicionais. E os apreciadores de vestir agasalhos mais pesados, sobretudo sobretudos.

E como nos envolvemos e implicamos com o tempo em nossas vidas, sempre há uma frase a nosso favor: "É tão bom deitar e ouvir o barulho do vento lá fora. No frio não é difícil acordar, difícil é sair da cama. Frio e cobertor é tudo que eu preciso para ser feliz ".

Pois entre os meus regalos há aquele que diz que o inverno é gostoso porque a gente dorme quentinho.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Marcos Neves (Literalismo)


A mais famosa pergunta dos cafés portugueses permite-nos conhecer um erro linguístico: o literalismo.

Que se acuse quem, depois de usar a palavra «queria», nunca enfrentou a pergunta: «Queria? Já não quer?».

Uma inocente piada de café, dirão. Talvez. Mas não deixa de ser um bom exemplo de um erro linguístico muito comum: o literalismo.

Admito: quando estou a pedir um café com «queria» estou a usar uma forma verbal do passado para fazer um pedido no presente. Um horror!

A verdade é que a língua é mais complexa do que parece à primeira vista:

– Usamos o pretérito imperfeito para fazer pedidos com mais delicadeza: «era a conta, por favor».

– Usamos o futuro para falar de algo incerto do passado: «ela terá lá ido ontem».

– Usamos o pretérito perfeito composto para falar do que fazemos várias vezes: «tenho falado com ele todos os dias»…

Podia continuar por aí fora…

A língua é assim: cheia de sutilezas que usamos sem reparar. Pisando sem vergonha tais sutilezas, há quem interprete literalmente uma palavra ou expressão e declare que tal palavra ou expressão é um erro.

Fonte:
Montargil Acção Cultural – Boletim em Linha – n.111 – agosto de 2022.
Enviado por Lino Mendes (coordenador).

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 16: Rumores

 

Nilto Maciel (Uma Página de Robbe-Grillet)

Quando Jean Denis Lanson esteve no Brasil, o repórter Guido Mocho foi incumbido de entrevistá-lo para o Diário da Tarde.

Segundo o editor, só Guido poderia realizar uma boa entrevista. “Você sabe francês, e basta”.

O repórter quis se esquivar. Ora, não entendia nada de literatura. Quando estudante, havia lido meia dúzia de romances, sem qualquer prazer. Alencar, um chato. Machado, enfadonho. E sempre confundiu Manoel Antonio de Almeida com Joaquim Manuel de Macedo. A Moreninha e Memórias de um Sargento de Milícias lhe pareciam do mesmo autor. “E quem lhe disse que o homem é literato?”

Lanson acabara de publicar o livro Il est tard. Um jornal falava em romance. Aliás, no nouveau roman.

O editor do Diário explicou: não se tratava de literatura, mas de obra sobre ecologia.

Um colega de Guido riu de todos: andavam fazendo uma grande confusão. Estivera na França e ouvira falar do grande físico Jean Denis Lanson. Il est tard  tratava da questão nuclear.

Guido dirigiu-se à Embaixada da França. Precisava esclarecer aquilo. Como fazer a entrevista, se só sabia o nome do personagem da entrevista? Receberam-no com excessiva cordialidade. Contudo nem o Embaixador sabia mais do que a imprensa brasileira sobre o tal Lanson. “Que s’est-il passé?” Talvez o visitante fosse Gustave Lanson, o grande crítico literário. Não, não. Este havia morrido em 1934.

Com horas de atraso, Guido chegou ao hotel onde se hospedava o francês. O livro? Não, não sabia de que livro falava o repórter. “Je ne sais rien, mais je voudrais savoir quelque chose”.

Passada a primeira hora, ainda não haviam chegado a qualquer acordo. Lanson só lia literatura de entretenimento. Nunca conseguira ler mais de uma página de Robbe-Grillet. E de Natalie Sarraute? Desconhecia. E Claude Simon? O deputado acusado de...? Guido mudou de assunto. E a Amazônia? Se pudesse, passaria alguns dias lá, nas praias, olhando as garotas e seus magníficos biquínis. E ria, esfregava as mãos. “Dieu me pardonne! Ah! que je suis content!”

O repórter passou à guerra nuclear. O que seria da humanidade, após a catástrofe? Lanson sorveu sua bebida e quase nada falou. “De quoi parles-tu?” Guido olhou para o teto, como para o céu, e imitou bombas explodindo: bum-bum-bum. Sim, sim, viagens pelos espaços siderais. Adorava Uma Odisséia no Espaço. Que filme! Logo, porém, desceram às nuvens, que também não podiam ver. Depois, à fumaça de seus cigarros. E flutuaram, quase mudos. Por fim, baixaram a si mesmos e, atônitos, abraçaram-se. “Au revoir!”

Cabisbaixo, Guido tomou o rumo do jornal.

A entrevista deu muito o que falar. O Diário da Tarde vendeu mais de um milhão de exemplares. Guido Bezerra Mocho ganhou abraços, aplausos, prêmios. Fez-se glorioso, de repente.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 12

 

Aparecido Raimundo de Souza (A amiga que se contenta com um simples toque de dedos)


QUANDO ELE CHEGOU, ela estava na sala, sentada confortavelmente no sofá de frente para o novo aparelho de televisão. Assim que a avistou foi logo soltando as cachorras:

— Como é que faço para me livrar de você?

Ela se ajeitou de um modo que ele pudesse ver os fundilhos no reflexo do abajur encostado num canto em cima da mesinha do telefone.

— Não vejo como! Por favor, tome assento. Não mordo.

— Deve haver uma maneira... disse ele desmoronando o corpo moído ao lado dela.

— Se ao menos você morasse numa casa que comportasse um aparelho de energia solar...

Ele ficou furioso com a desditosa observação:

— Casa, para mim é impossível. Você sabe disso melhor que ninguém. Mas não conte vantagens, mocinha. Encontrei a solução.

— Posso saber qual?

— Vou sair deste apartamento e morar no morro. Estou na dúvida: Se Rocinha ou Complexo do Alemão.

— Sozinho ou com a família?

Ele pareceu hesitar antes de responder:

— Não é da sua alçada.

— Bem, se vai sozinho ou com a família, isso não importa realmente. O fato é que estarei lá.

— Numa favela bem longe daqui do centro de Vila Isabel? Duvido!

— Não esqueça que me faço presente nos lugares mais longínquos do planeta.

— Maldita.

— Posso até ser, mas necessária.

— Não para mim.

— Sem a minha presença em sua vida você não é nada.

— Sem a sua presença minha vida é tudo.

— Prove!

— Já que não quer entregar os pontos, deixa que eu mesma direi.

Para início de conversa, não terá seu banhozinho quente depois de um dia estafante no serviço.  Esqueceu dele?

— Sempre tomei banho frio.

— Não poderá usar o barbeador elétrico que ganhou de sua filha.

— Os aparelhos de barbear descartáveis são mais baratos e seguros.

— Terá que subir escadas.

— Faz bem para o coração...

— Não na sua idade. Escute, meu velho. Esqueça as mágoas. Reflita comigo. Sem mim não poderá ver seu time preferido no dia que for jogar...

— “Grande droga”. No dia que meu time for jogar, paro em frente a uma dessas muitas lojas que vendem aparelhos eletrodomésticos espalhadas por todos os cantos da cidade.

— Viu só? Nesse momento você lembrará de mim. Estarei lá, olhando para sua cara, e rindo do mico que você estará pagando. Vai deixar o conforto do seu sofá para ficar de pé no meio da rua? Faça-me o favor. Ponha na sua cabeça uma coisa: você depende de mim para tudo, tudo, tudo, T-U-D-O.

— Não, não, não.

— Sim, sim, sim...

— Ah! Ia esquecendo. Sexta-feira agora tem corrida de Fórmula Um...

— Acompanho pelo radinho de pilha. É até mais emocionante.

— Sábado também é dia do Caldeirão do Mion. Você ama o “Caldeirola...”.

— Não me interesso mais pelo programa daquele maluco.

— Hum! Seus filmes preferidos, esqueceu?  

— Já vi todos.

— Sua tevê a cabo... depois que as crianças e a sua esposa se recolhem... você não terá mais o canal pornô. E você é amarradão num filminho mais apimentado. É ou, não é?

— Deixei de assinar. Tudo não passa de bobeira.

— Bobeira maior é você querer se livrar de mim...

— E conseguirei, esteja certa.

— Como fará com sua mulher e filhos?

— Já são todos grandinhos. Saberão se virar sozinhos...

— Sua mãe doente. Além de precisar de você, do seu carinho e dos seus cuidados, necessita, igualmente, de mim. Penso até mais de mim que de você. Desculpe, só estou lembrando. Nada pessoal.

— Olhe, sua vagabunda. Me deixa em paz.

— Mas é exatamente o contrário. Você não me dá sossego. Sou sua escrava. Você me faz de cachorrinha. Me usa, abusa da minha bondade, dos meus préstimos. Em troca, meu amigo, em troca eu lhe dou paz. Trago tranquilidade a seu lar. Proporciono momentos bons e alegres para toda a sua família.

Ela faz uma pausa e continua, a língua solta:

— A um comando seu, me abro num leque de prazeres ilimitados. Faço das tripas coração só para ficar perto de você. Diria que estou preso e acorrentado a você, como o ar que corre em seu nariz, como os movimentos das suas mãos e das suas pernas. Resumindo: sem eu por perto, você é um zero à esquerda.

— Comprarei um monte de caixas de velas e fósforos.

Risos.

— Vai fazer algum despacho? As pessoas... seus amigos... sua esposa... até seus filhos pensarão que você perdeu o juízo de vez...

— Perderei realmente o juízo de vez se continuar aqui sentado falando com você feito um bobo da corte.

— Preste atenção. Você mandou cortar o telefone. Como a sua esposa controlará as crianças na escola? Suponhamos que aconteça algum imprevisto? Sua mãe... sua mãe tem que tomar remédios controlados, de duas em duas horas... como vocês – quero dizer, como a infeliz da sua esposa (que fica o dia inteiro com ela) fará para ligar para o farmacêutico vir aplicar as injeções?

— Que use o telefone do vizinho... ela não é quadrada.

— Acha justo? É correto incomodar os demais albergados? Tire por você. Odeia perturbações. Lembra de quando o filho do morador aqui do lado se machucou? Você ficou uma fera quando o pai do moleque tocou a sua campainha...

— Ele atrapalhou o meu jornal...

— Se ponha, por um momento, no lugar da criatura: é correto você interromper o jornal, a novela, ou o filme dos outros? Esqueceu que onde seus direitos acabam começam os do seu próximo? Desde o começo do mundo tem sido assim e continuará indefinidamente. O melhor que tem a fazer é fechar a boca.

— Fechar a boca?

— Perdão. O certo seria controlar os dedos...

— Os dedos?

— Exatamente.

— Não entendi.

— Serei clara. Aliás, sou sempre clara e transparente. Meu nome deveria ser Clara ou Claridade. Você não acha?

— Não mude de assunto.

— Eu falava dos dedos. Você, aliás, vocês deveriam aprender a controlar os dedos. A começar pelo seu casal de filhos. Concordo que eles se aproveitam de mim... fazem da minha pessoa gato e sapato... igualzinho você. Todavia, particularmente tenho em mente que se você tiver uma conversinha de pé de ouvido com os dois... evidentemente... obterá sucesso. Ensine a seus diabinhos pequenas normas corriqueiras... no final do mês, seu bolso não sentirá muito o peso da minha presença...

— Continue...

— Sua esposa, tenho notado, é muito dedicada e controlada. Gasta extremamente o necessário. Não fosse por ela, você estaria no mato sem cachorro, com um nabo desse tamanho enterrado no...

Tomou fôlego em nova interrupção e, em seguida, concluiu:

— Acho que não preciso mencionar onde exatamente o papo... sua mãe, coitada, vou deixá-la de fora de nosso papo. É a única que não contribui em nada para que você acabe no buraco. Sem falar no dinheiro da pensão que ela recebe da aposentadoria e todo mês você embolsa. Que vergonha! Que falta de hombridade! Eu ficaria vexada de me olhar no espelho...

— Está desvirtuando a prosa de novo.

— Não está mais aqui quem falou. Voltando aos dedos. Ensine a seus filhos, quando forem à cozinha, durante o dia, usarem os dedinhos e desligarem os respectivos televisores. Para que dois aparelhos tagarelando em espaços diferentes se ambos vêm os mesmos desenhos nos mesmos canais?

Ela mais uma vez imprimiu uma estancada curta ao bate papo:

— Não podem fazer certas coisas juntos, sentados aqui na sala, como nós estamos agora?  Se você está no quarto, use o dedo e apague a cozinha, se está na varanda, use o dedo e apague o corredor. Para que tantas lâmpadas acesas por aí à fora, sem razão? No fundo, meu amigo, no fundo quero seu bem. Sei que vai dizer que a nota fiscal de energia elétrica vem alta. Concordo. Controle, pois, tudo com seus dedos. Faça uma experiência. Pense que não é só o seu consumo de lâmpadas acesas aqui dentro que aumenta as despesas dos talões a serem pagos. Tem as cobranças de terceiros, iluminação publica, juros por atrasos nos pagamentos, multas, I.C.M.S, ajuste de centavos e outras coisinhas que aparecem escritas numas letrinhas desse tamanho que nem Cristo consegue enxergar. Lembre sempre: quero ser sua amiga e mais ainda, amiga de seu bolso. Promete, ao menos, que vai parar e meditar com mais atenção no assunto?

— Fiquei convencido. Você está com a razão.

— Amanhã procure acertar um dos talões que estão jogados no meio dos papéis dentro de sua pasta. Você está no terceiro mês sem pagar. Não demora o sujeito da companhia vem lá embaixo e passa os dedos, digo, a tesoura no seu medidor. Se não levar o relógio, o que poderá ser pior. Se tal ocorrer, você carecerá, de fato, de muitas caixas de velas e fósforos.

— Obrigada pelos conselhos. Você realmente provou nessa nossa conversa que é minha amiga. Eu diria que é você é a luz do meu caminho...

— Estarei na sua vida para sempre. Agora, por favor, movimente a sua poupança gorda deste sofá, caminhe até o interruptor do banheiro, use o dedo indicador e me apague. Espie. Estou sendo gasta desnecessariamente iluminando um local vazio, e o mais chato, vendo a bacia da privada falando besteiras ao celular. Me poupe, me poupe.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.