sábado, 15 de junho de 2024

Estante de Livros (“Memórias do cárcere”, de Graciliano Ramos)

Durante o período que permaneceu na secretaria da educação revolucionou os métodos de ensino da época. No entanto, devido as suas ideias, consideradas "extremistas", foi demitido em 1936.

Ainda nesse ano, precisamente no dia 3 de março, é preso sob a acusação de ligação com o Partido Comunista. A acusação é falsa, pois Graciliano só entraria para o PCB em 1945. Mesmo sem acusação formal ou julgamento, é deportado para o Rio de Janeiro, onde permanece encarcerado até 1937. Dessa experiência resultou a obra "Memórias do cárcere", que só começou a ser escrita em 1946 “Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos”.

A obra "Memórias do cárcere", publicada somente em 1953, foi transformada em filme por Nelson Pereira dos Santos.

Depois de ser libertado da prisão, Graciliano ficou morando no Rio de Janeiro em um quarto de pensão, com a mulher e os filhos menores.

Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão - e provavelmente isto será publicação póstuma como convém a um livro de memórias.

Em Memórias do Cárcere, publicação póstuma, Graciliano Ramos ocupou seus últimos anos, tornando públicos, “depois de muita hesitação”, acontecimentos da sua e da vida de outras pessoas, políticos ou não, intelectuais ou não, homens e mulheres, presos durante o Estado Novo.

Nos três primeiros parágrafos do livro ele se explica, justificando a demora de dez anos. E, depois, resolvido a escrever, sabe que sua narrativa será amarga: “Quem dormiu no chão deve lembra-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”.

O intuito de Graciliano se realizou. Fiel aos acontecimentos, não escondeu, não negou, não exagerou: “Escreveu, realmente, com exatidão espantosa, com rigor excepcional. Tudo o que é negro, em sua narração, é negro pela própria natureza, o que é sórdido porque nasceu sórdido, o que é feio é mesmo feio. Não há pincelada do narrador no sentido de frisar traços, de agravar condições, de destacar minúcias denunciadoras.”(Nélson Werneck Sodré, prefácio de Memórias do Cárcere).

Em 1936, quando esteve preso no pavilhão dos primários, na Casa de Detenção, Graciliano conheceu Vanderlino, “um homem útil”, habilidoso, capaz de esculpir peças de um jogo de xadrez depois de dividir um cabo de vassoura em 32 pedaços iguais. Criminoso comum, homem humilde, foi ele quem, mais tarde, na Colônia Correcional, apresentou um amigo a Graciliano. “Admirou-me a franqueza de Vanderlino ao dizer o nome e o ofício do personagem: - Gaúcho, ladrão, arrombador.”

Gaúcho virou amigo de Graciliano, querendo aparecer em seus livros (“Eu queria que saísse o meu retrato”) e, além de personagem em Memórias do Cárcere, é citado também no conto “Um Ladrão”, de Insônia, história da ineficiência de um aprendiz seu num roubo que fizeram juntos. Esta foi uma das muitas histórias que Gaúcho contou a Graciliano, ouvinte atento. E assim a amizade entre eles cresceu, dentro dos muros, desinteressada e sincera.

Quando estuda o testemunho de Graciliano sobre a prisão, Nélson Werneck Sodré lembra que “Cubano e Gaúcho”, criminosos comuns, saltam destas páginas para adquirirem dimensões humanas, denunciam-se como criaturas, apesar de terem vivido sempre entre comparsas.” (Adaptado de Viviana de Assis Viana, em Lit. Comentada: Graciliano Ramos).

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 31

 

Coelho Neto (Pombos viajantes)

Na brenha cerrada da minha tristeza, onde os sorrisos já não fazem ninho, viviam, pousados na 
árvore seca da melancolia, três pombos carinhosos.

Dia e noite arrulhavam; ao por do sol, porém, um deles, turturinando, trazia-me ao coração mágoas; acerbas indefiníveis — era o mais escuro.

O menor, branco, niveamente branco, durante as noites de luar gemia, mas a sua voz, posto que fraca, tinha mais alegria muito mais alegria do que a voz soluçada do primeiro.

O último, um grande pombo forte, de asas triunfadoras, capazes de voos temerários, dia e noite, cantava no ramo seco, olhando ora o sol, ora as estrelas.

Para viver melhor com eles dei-lhes nomes.

Chamei ao primeiro Saudade, ao segundo Amor e Esperança ao terceiro.

Um dia, à hora mansa da tarde, tomei no punho o primeiro pombo e soltei-o no ar. Fiz o mesmo ao segundo, fiz o mesmo ao terceiro.

Voaram, ruflando as asas, foram-se, muito alto, como se tomassem o rumo do céu, como se fossem mariscar as claríssimas sementes que a noite começava a espalhar pelo espaço.

Foram-se!

Solitário, pus-me a pensar na madrugada próxima e na volta dos meus mensageiros.

Que me traria o pombo Amor de novo e os outros dois que novas me trariam?

Assim a pensar fitei os olhos no mesmo ponto — a brenha enchia-se de lantejoulas brilhantes. A proporção que a treva ia se fazendo mais espessa, apontavam mais estrelas e mais vagalumes apareciam como reflexos sidéreos.

Extrema solidão!

Meus olhos, por mais que se alongassem, não conseguiam descobrir a luz das choças; a cantiga melancólica do zagal, no alto do monte, não me chegava aos ouvidos.

Olhar o céu! Olhar o céu! Fitei a vista nas estrelas. 

Subitamente um gemido... outro mais doloroso... uma ruflalhada em torno de mim.

Voltei-me... e ia levantar-me quando alguma coisa rápida saltou para o meu ombro, depois para o meu punho, gemendo, gemendo sempre.

Corri à claridade, cheguei-me à luz da lua e olhei.

Eterna companhia! Não pôde viver longe do coração... Sombra da vida extinta, espectro das lágrimas e dos sorrisos.

Eterna companhia! Era a Saudade, o pombo escuro.

O Amor e a Esperança passam de quando em quando junto de mim, demoram-se alguns instantes, mas, pela madrugada, fogem, voam turturinando.

Ele só não me abandona, o pombo escuro, o que eu chamei Saudade, o triste, o melancólico, o dolente.

Fonte: Coelho Neto. Rapsódias. Publicado originalmente em 1891. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Pela luz dos olhos teus)


Compositor: Vinicius de Moraes

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus, me sinto incendiar

Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus
Sem mais lá-rá-rá-rá
Pela luz dos olhos teus
Eu acho, meu amor, que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus, me sinto incendiar (me sinto incendiar)

Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus
Sem mais lá-rá-rá-rá
Pela luz dos olhos teus
Eu acho, meu amor, e só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar

Que a luz dos olhos meus precisa se casar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar
Precisa se casar (precisa se casar)
Precisa se casar (precisa se casar)

Precisa se casar, precisa se casar (6x)
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O Encontro de Olhares na Poesia de Tom Jobim
A música 'Pela Luz Dos Olhos Teus', interpretada por Tom Jobim e Miúcha, é uma obra que exalta a beleza e a profundidade do encontro de olhares entre duas pessoas apaixonadas. A letra, rica em imagens poéticas, utiliza a metáfora da 'luz dos olhos' para expressar a conexão e a intensidade do sentimento amoroso. A luz, elemento que simboliza vida, conhecimento e pureza, é usada aqui para representar a essência do amor que se revela quando dois olhares se encontram.

O refrão da canção, 'Pela luz dos olhos teus', sugere uma busca pela união e pelo entendimento mútuo, onde a luz dos olhos de um ilumina e completa a do outro. A repetição da frase 'precisa se casar' ao final da música reforça a ideia de que essa união é algo essencial, quase como um destino inevitável para aqueles que se amam. A expressão 'sem mais lá-rá-rá-rá' pode ser interpretada como um desejo de autenticidade e profundidade na relação, deixando de lado superficialidades e jogos de sedução.

Tom Jobim, um dos maiores nomes da música brasileira e um dos criadores da Bossa Nova, era conhecido por suas composições que misturam melodia suave e letras poéticas. 'Pela Luz Dos Olhos Teus' é um exemplo clássico de sua habilidade em transformar sentimentos complexos em música, criando uma atmosfera romântica e ao mesmo tempo sofisticada. A parceria com Miúcha, que também era uma artista de grande expressão na música brasileira, adiciona uma camada de harmonia e beleza à interpretação da canção.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Varal de Trovas n. 603

 

Newton Sampaio (Inspiração)

Ficaram estateladas com a saída brusca do Damião. Que diabo acontecera ao rapaz?

Corria a prosa tão animada, e eis que ele se levanta e zarpa, sem pedir licença.

— Ora já se viu?...

Ficou furioso o Silvino. Mas Damião caminhou indiferente à fúria do Silvino. Mal sentiu o vento que cortava.

— Eta invernão!

Fechou cuidadosamente a porta. E, ainda de sobretudo, tomou posição.

Maciazinha, a caneta nova! Uma beleza de macia... Compraria meia dúzia delas no dia seguinte.

Imediatamente, porém, expulsou do cérebro em faiscações, essa ideia mesquinha de “compra” e de “meia dúzia”. Urgia encetar a obra.

Escreveu, devagarinho:

“O destino, esse fatal desvelador.”

Botou uma vírgula bem caprichada. E repetiu, em alta voz:

— O destino, esse fatal desvelador...

Era bem esse o começo que idealizara.

— Fatal desvelador. Fatal... Bonito adjetivo. Só que parece um pouco trágico. Mas não. Quem manda no verso é o “desvelador”.

Desvelador vai bem. Vai bem.

Precisava de um complemento para “destino”. O destino tinha de fazer qualquer coisa. Escreveu:

“Que prevalece na paixão e predomina no amor.”

Muito comprida essa linha.

— Pre-va-le-ce... Pre-do-mi-na... Vá lá.
(Pausa).

— Amor... Paixão... Estas palavras significam o mesmo. Será o tal do pleonasmo?

Correu ao dicionário.

“Pleonasmo, s.m. (gr. Pleonasmos)”

— Vem do grego, hein?

O Dicionário Prático Ilustrado falava assim:

“Repetição de ideias ou de palavras que têm o mesmo sentido; viciosa, quando inconsciente ou devida à ignorância: legítima, quando propositada, para dar maior força à frase.”

— Legítima, quando propositada. É esse o meu caso. Eu repeti pra dar maior força à ideia. À ideia... Que ideia? O que eu queria era falar da Ofélia. Comecei com “tudo passa” pra lembrar aquilo que já passou. Qual! O melhor é atacar o assunto, diretamente.

A imagem da Ofélia cresceu dentro de si. Parecia um sonho.

— Ah! Um sonho... Direi que sonhei com ela. Isso mesmo.

A caneta nova trabalhou febrilmente.

Riscou tudo, tudo. Era o seguinte o novo texto:

“Eu te sonhei assim.”

Assim de que jeito?

Catou uma ideia. Catou. Nada. Quase desistiu.

O sobretudo já estava incomodando. Sacou-o fora.

Sem o sobretudo, teve momentos mais livres.

E foi com verdadeiro júbilo que grafou:

“Dama então pra mim desconhecida.”

— Querida... Desconhecida... Boa rima. Será que o primeiro verso pode rimar com o segundo? Acho que pode.

Corria dificílimo o parto. Em todo caso, sempre deu a terminar desse jeito o primeiro quarteto:

“Em cujo olhar todo cheio de candura,
Não lia a causa de minha desventura.”

— Candura... Desventura... Está rimado. A candura é dela. A desventura é minha.

Trabalhou mais duas horas e meia.

— Pronto, felizmente!

Não parecia mau o verso final:

“Foi assim que te sonhei, Ofélia.
Foi assim... Foi assim...”

Só então ele notou o cansaço. Doíam os rins.

Releu toda a obra, em voz alta, passeando no quarto, em diagonal.

Depois escreveu o título a lápis vermelho, letra de forma:

EU TE SONHEI ASSIM...

Nessa noite, Damião dormiu como um bem-aventurado.

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 8/11/1936.)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) A Tetéia

Pois sim! Venham-me pra cá com histórias de cachorros bem-ensinados e obedientes! Igual, pode - e ainda duvido! - porém melhor que a minha perdigueira Tetéia não há, nem houve, e talvez até nunca haja!

Contaram-me como grande coisa um caso dum barão alemão, um tal Münchausen, que possuiu uma cadela lebreira, a qual, estando grávida, mesmo assim correu uma lebre que, por coincidência estava também grávida. Correram, correram muito as duas próximas mães... e tão próximas que durante a corrida a lebre teve as lebrinhas e a cachorra os cachorrinhos. E como a raça não nega a traça, os cachorrinhos largaram-se logo a correr atrás das lebrinhas, enquanto que a cachorra recém-mãe continuava a correr atrás da lebre também recém-mãe.

Sim, senhor! Era um bom animal, não nego: mas a Tetéia era melhor.

Escutem e julguem.

Uma manhã saí a caçar perdizes e levei a Tetéia.

Eu não conhecia o campo, e isso foi a causa de um grande desgosto para mim. Mal entramos no matagal, a Tetéia amarrou, toquei-lhe com o joelho na anca, ela andou uns passos: a perdiz levantou-se no voo e flechou! Pum! Tiro dado, perdiz em terra, e Tetéia, trazendo!

E assim, de enfiada, foram-se os cem cartuchos que eu trazia: cem perdizes em meia hora. E note-se que eu errei dois tiros e cinco cartuchos falharam.

Sentei-me e comecei a atar as minhas perdizes, pelas pernas, para pô-las ao ombro e regressar.

E, distraído, esqueci-me da chamar a perdigueira e fazer-lhe compreender que estava findo o divertimento. Esqueci-me; e quando, tudo pronto, ia a marchar, só então lembrei-me da cachorra.

Chamei: Tetéia! Tetéia! assobiei, fiz os sinais de costume, nada! Estranhando o fato arriei o fardo das perdizes, e andei a procurar, sempre chamando, assobiando, e nada, nada de resposta!

Supus então - naturalmente - que a perdigueira, desobedecendo pela primeira vez, tivesse ido para casa, sozinha, antes de mim. Era um procedimento de cachorro, mas vá lá por uma vez! E assim pensando, fui-me embora.

De chegada indaguei. Não, não tinha aparecido. Causou-me espécie aquela demora; depois, quem sabe, algum namoro.

Esperei, chegou a noite, o outro dia; e nada de Tetéia!

Tive então um pressentimento funesto, nem me restava mais dúvida: a honesta perdigueira certamente havia sido picada por cobra, alguma cascavel, alguma viradeira medonha, e a esta hora! Pobre, pobre infeliz bicho! Fiquei realmente paralisado, triste.

Para distrair as mágoas e variar de comida e emoções, andei caçando veados para outro rumo; marrecas, nos banhados; quatis, tatus, etc.; e fiz várias batidas num tigre fugido de gaiola, que não apareceu nunca, talvez assustado da minha fama.

Foi até uma imprudência esta batida ao feroz tigre; eu não tinha cachorros próprios e os companheiros falharam-me à última hora, alegando cada qual a sua razão; um que tinha de arrancar batatas, outro que a mulher estava para cada hora, outro que fincara um estrepe no pé enfim, deixaram-me sozinho, justamente quando ali perto, à vista, o tigre urrava tremendamente, como desafiando!

Pois fui, sozinho: eu e a minha faca de mato; apenas por segurança, para ter o alarme certo, levei um gato num cesto, porque o gato é um animal muito elétrico e de longe já sente a catinga do tigre, e dá logo sinal que não engana, nunca. Se é de dia, fica de pêlo eriçado e duro, como arame, e mia duma forma muito particular; são dois miadinhos curtos e um comprido, dois curtos e um comprido; se é de noite, apenas bufa e lambe as barbas, ficando então o pelo fosforescente, como vaga-lume. É claro, pois, que quem leva gato não corre o risco de ser surpreendido por tigre; muito antes deste aproximar-se, já o caçador está avisado e tem tempo de sobra de preparar-lhe a espera.

Deste fato, creio mesmo que e que nasceu a expressão vulgar de que - quem não tem cão, caça com gato.

Com estas distrações e outros afazeres, passou-se o tempo; de vez em quando e sempre com pesar e saudade, Lembrava-me da desaparecida Tetéia.

Dediquei-me então a ensinar um cachorrinho, filho dela, o seu retrato escrito e escarrado, que me havia ficado.

Há dias - meses passados - levei o cachorrinho ao campo, para exercício. E andando, andando, sem dar por tal, fui ter ao lugar certo daquela malfadada caçada em que se sumiu a minha maravilhosa perdigueira.

E, dum lado para outro, eis senão quando, o cachorrinho para, amarra, levanta a pata, sacudindo a cauda! Chego-me, toco-lhe com o joelho, e quando espero que o totó vai levantar a perdiz, ele volta-se para mim, desarrumado, humilde, com os olhos arrasados de lágrimas... Surpreso, dei três passos, estiquei o pescoço e vi.

Vi, sim, o esqueleto da Tetéia ainda de coleira, firme, correto, na posição de amarrar; adiante, um esqueleto de perdiz, na posição de preparar o voo; ao lado, num ninho quase desfeito, sete esqueletinhos de filhotes, na posição de piar, com fome!

Querem mais claro? E agora, coisa notável, foi ainda o faro filial que guiou o cachorrinho e fê-lo descobrir e chorar perante os ossos da mãe!

Pois, e então?

A cachorra do Münchausen será acaso superior à Tetéia? Só se for porque ele era um barão, e eu sou apenas o Romualdo.

Fonte: João Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado em 1914. Disponível em Domínio Público 

Recordando Velhas Canções (Tarde em Itapoã)


Compositor: Vinicius de Moraes

Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar
Depois na praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E numa esteira de vime
Beber uma água de coco

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

Enquanto o mar inaugura
Um verde novinho em folha
Argumentar com doçura
Com uma cachaça de rolha
E com o olhar esquecido
No encontro de céu e mar
Bem devagar ir sentindo
A terra toda a rodar

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

Depois sentir o arrepio
Do vento que a noite traz
E o diz-que-diz-que macio
Que brota dos coqueirais
E nos espaços serenos
Sem ontem nem amanhã
Dormir nos braços morenos
Da lua de Itapuã

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã
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A Poesia de Uma Tarde em Itapoã
A canção 'Tarde Em Itapoã', composta por Vinicius de Moraes, é um retrato poético e sensorial de um dia tranquilo na praia de Itapoã, localizada em Salvador, Bahia. A letra descreve com simplicidade e beleza a experiência de desfrutar de momentos de lazer e contemplação à beira-mar, evocando uma sensação de paz e conexão com a natureza.

O início da música nos apresenta a um cenário de descanso, onde o eu lírico veste um 'velho calção de banho' e se prepara para 'vadiar', ou seja, desfrutar do ócio sem preocupações. A menção ao 'mar que não tem tamanho' e ao 'arco-íris no ar' sugere a vastidão e a beleza do lugar, enquanto a referência à 'praça Caymmi' homenageia o famoso músico baiano Dorival Caymmi, conhecido por suas canções sobre o mar e a vida na Bahia.

A música também aborda a interação harmoniosa com o ambiente, como 'beber uma água de coco' e 'sentir preguiça no corpo', elementos que remetem ao relaxamento e ao prazer simples da vida. O refrão, que se repete ao longo da canção, reforça a ideia de que é bom 'passar uma tarde em Itapuã', destacando a beleza do sol, do mar e do amor que se pode vivenciar nesse lugar. A canção termina com uma imagem noturna, onde o 'arrepio do vento que a noite traz' e o 'diz-que-diz-que macio' dos coqueirais embalam o eu lírico em um sono tranquilo 'nos braços morenos da lua de Itapuã', uma metáfora para a noite acolhedora e misteriosa.

Irmãos Grimm (O Rei “Bico de Tordo")

Um rei tinha  uma filha lindíssima, mas tão orgulhosa que não encontrava nenhum pretendente a seu gosto. Rejeitava todos e ainda por cima se divertia à custa deles.

Certo dia, o rei deu uma festa muito grande e convidou todos os rapazes casadouros, de longe e da redondeza. Pediu que se colocassem em fila, por ordem de categoria: primeiro os reis, depois os duques, os príncipes, os condes e barões e, finalmente os cavaleiros. 

A princesa passou-os em revista, encontrando, em cada um, algo a criticar: O primeiro era gordo demais. "Parece um barril!" - exclamou. O segundo, pelo contrário, alto e magro demais. "Muito desengonçado!" O terceiro, muito baixinho: "Um fracasso! " O quarto, excessivamente pálido. " Até parece a morte!" O quinto, corado demais. " É que nem uma crista de galo! " O sexto não lhe parecia bastante aprumado. "Lenha verde, secada atrás da estufa!" E assim descobriu em todos um defeito. Porém, de quem mais ela riu foi um bondoso rei, cujo queixo era um pouco saliente.

- Ah! - exclamou a princesa às gargalhadas. - Esse tem um queixo que parece o bico de um tordo!

E, por isso, daí por diante dera-lhe o apelido de "Bico de Tordo".

O velho rei, porém, vendo que sua filha não fazia outra coisa senão ridicularizar e humilhar a todos os pretendentes, irritou-se de tal maneira que jurou casar a princesa com o primeiro mendigo que chegasse à sua porta.

Decorridos alguns dias, apareceu um músico ambulante, que se pôs a cantar debaixo das janelas do palácio, para conseguir uma esmola. O rei, quando soube disso, ordenou:

- Tragam-me esse homem!

O músico apresentou-se, sujo e esfarrapado, e foi cantar perante o rei e a princesa. Quando terminou sua canção, pediu uma recompensa. Disse-lhe o rei:

- Gostei tanto de tua canção que vou dar-te minha filha por esposa.

A princesa assustou-se, mas o rei insistiu:

- Jurei casar-te com o primeiro mendigo que se apresentasse e vou cumprir meu juramento.

Não adiantaram súplicas. O padre foi chamado e a moça, quisesse ou não, teve de casar com o músico. Terminada a cerimônia, disse o rei:

- Não é justo que, sendo a mulher de um mendigo, continues vivendo em meu palácio. Vai-te com o teu marido.

O mendigo tomou-a pela mão e os dois saíram andando. Quando passaram por um belo bosque, ela perguntou ao marido:

- A quem pertence este bosque tão maravilhoso?

- Ao Rei Bico de Tordo que quis ser teu esposo. Se o tivesse aceito, agora seria teu!

- Ai, pobre de mim, por que não me casei com tão rico e poderoso rei?

Logo depois passaram por um  vasto prado e ela tornou a perguntar:

- A quem pertence este grande e belo prado?

- Ao Rei Bico de Tordo, que por ti foi desprezado! Se o tivesse aceito, agora seria teu!

- Ai, pobre de mim, por que não me casei com tão rico e poderoso rei?

  E ao chegarem a uma cidade  muito grande, perguntou ela de novo:

- A quem pertence esta cidade tão bela e populosa?

- Ao Rei Bico de Tordo que quis por esposa. Se o tivesse aceito, agora seria tua.

- Ai, pobre de mim, por que não me casei com tão rico e poderoso rei?

- Não me agrada - resmungou o mendigo - que estejas sempre desejando a outro homem para esposo. Não basto eu?

Por fim chegaram a uma casa, bem pequenina, e ela perguntou:

- Santo Deus, que casinha estranha! A quem pertence esta cabana?

- É a minha casa e a tua, onde viveremos.

A princesinha foi obrigada a curvar-se para entrar na porta, tão pequena era.

- Onde estão os criados? - perguntou.

- Criados ? - replicou o mendigo. - Tu mesma terás de fazer os serviços de que precisares. Acende o fogo, põe água a ferver e prepara a comida, que eu estou cansado.

Mas  a filha do rei nada entendia de cozinha, nem sabia como acender o fogo. E o mendigo não teve outro remédio senão ajudar para que as coisas saíssem mais ou menos. Depois da parca refeição foram dormir e de manhã ele a obrigou a levantar-se muito cedo, pois devia atender aos afazeres da casa. Assim viveram por alguns dias, consumindo todas as suas provisões e, então, disse o homem:

- Mulher, não podemos continuar deste jeito, gastando sem ganhar coisa alguma. Terás de trançar cestas.

E saiu a cortar vimes, que trouxe para casa. A jovem começou a trança-las . Mas os vimes eram duros e acabaram lhe pisando as delicadas mãos.

- Bem vejo que não dás para isso! - disse o marido. - Se tu puseres a fiar. 

Mas o fio duro não tardou a ferir-lhe os dedos, fazendo brotar o sangue.

   - Estás vendo?! - disse-lhe o homem. - Não serves para trabalho algum. Mau negócio fiz eu contigo. Tentamos negociar com panelas e potes de barro. Irás sentar-te no mercado e oferecer a mercadoria.

"Meu Deus ! - pensou ela. - Se por acaso passarem pelo mercado pessoas do reino de meu pai e me virem ali sentada, vendendo potes, como irão rir de mim!"

Mas não houve remédio. Teve de conformar-se, para não morrer de fome. Da primeira vez a coisa foi bem, pois a beleza da jovem atraía pessoas que lhe pagavam o preço exigido, sendo que alguns até lhe davam o dinheiro sem levar a mercadoria. O casal viveu algum tempo desses ganhos e, ao terminar o dinheiro, o homem comprou outra partida de potes e panelas. A princesa foi sentar-se numa esquina do mercado, com os objetos em seu redor. 

De repente, aproximou-se um oficial, a cavalo, e que parecia embriagado. Passou a galope por entre os potes e, num instante, os reduziu a cacos. A jovem começou a chorar amargamente e, de tão angustiada, não sabia o que fazer.

- Que será de mim? - exclamou .- Que dirá meu marido?

Correu para casa e lhe contou a desgraça.

- Também, que ideia é essa de ir sentar-se numa esquina do mercado, com potes de barro para vender? - zangou-se o marido.- Bem, deixa-te de lágrimas, pois vejo que não serves para realizar um trabalho decente. Hoje estive no palácio de nosso rei, indagando se precisavam de uma criada de cozinha e me prometeram dar-te o emprego. Assim terás comida de graça.

E a princesa, então, passou a ser uma criada de cozinha, ajudando o cozinheiro e fazendo os trabalhos mais rudes. Meteu umas vasilhas nos bolsos e nelas ia guardando o que lhe davam das sobras. Levava aquilo  para casa e os dois viviam disso.

Aconteceu que um dia celebraram o casamento do filho mais velho de rei, e a pobre mulher, desejosa de presenciar a festa, colocou-se na porta do salão.

Depois de acesas as luzes, começaram a entrar os convidados em ricos trajes, cada qual mais belo que o outro. Ela, ao ver tanta pompa e magnificência, lembrou-se, com amargura, do seu destino e maldisse seu orgulho e petulância, que a tinha levado a  humilhação e a miséria. Dos pratos, tão apetitosos que eram trazidos e levados pelos camareiros, e cujo aroma chegava até ela, os criados lhe atirava, de vez em quando, alguns bocados. Ela, então, os guardava em suas vasilhas, afim de levá-los para casa.

Entrou o príncipe, vestido de veludo e seda, com correntes de ouro ao redor do peito. Ao ver a linda mulher de pé junto a porta, tomou-a pela mão para dançar com ela. 

A princesa, porém resistiu assustada, pois reconheceu no jovem o Rei "Bico de Tordo", que fora seu pretendente e a quem recusara e ofendera com suas ironias. De nada lhe adiantou a resistência, pois ele a obrigou a entrar no salão. Nisto o cinto da moça, onde estavam presas as vasilhas, rompeu-se e estas caíram no chão, despejando o seu conteúdo pela sala. Todos os presentes romperam em gargalhadas e dichotes, deixando-a  profundamente envergonhada. A pobre princesa desejou que a terra se abrisse para tragá-la. Correu para a porta tentando fugir, mas na escada um homem a alcançou, obrigando-a a retroceder. Quando ela o olhou, viu que era o rei "Bico de Tordo", que lhe disse afetuosamente:

- Nada temas: Eu e o músico com quem estás vivendo na cabana somos o mesmo homem. Foi por amor a ti que me disfarcei assim. O cavaleiro que te partiu os potes também fui eu. Tudo isso fiz para quebrar o teu orgulho e castigar tua altivez, que te fizeram rir de mim.

A princesa, chorando amargamente, disse:

- Fui muito injusta e não mereço ser tua esposa.

Mas ele retrucou:

- Tranquiliza-te; teus dias maus passaram e agora celebraremos devidamente o nosso casamento.

E entraram as camareiras e lhe vestiram um lindo traje; seu pai compareceu com toda a corte e felicitou-a por seu casamento, foi tudo satisfação e alegria. 

É uma pena que nós dois não estivéssemos na festa.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Entre bugios

Quando, no norte do país, houve uma seca espantosa, que durou um par de anos e alarmou o governo e o povo todo, a farinha de mandioca encareceu, porque quanta se fabricava toda ia para aqueles infelizes flagelados.

Por essa época andava eu caçando antas nas serras do Paraná, e aí tive notícia da seca e da necessidade de mantimentos para os socorros.

Eu estava dentro dos pinheirais: tive uma ideia, isto é, tive uma pilha de ideias, porém uma prevaleceu: em três tempos montei um engenho e comecei a fabricar farinha de pinhão.

Pinhões, havia, às centenas de carretas; o que dava trabalho era descascá-los.

Ora, mas também havia muito bugio.

Preparei a minha gente e fiz algumas batidas, apanhando uma caterva de bugios, que são uns macacões ruivos, fortes e muito práticos de comer pinhões.

Estão querendo perceber?

Colhíamos os pinhões e os entregávamos aos bugios, amarrados em volta do terreiro - homens a um lado, mulheres a outro, para evitar rusgas - por imitação do que nós fazíamos, os bichos aprenderam a pelar os pinhões, atirando as cascas para um monte e as amêndoas limpas para dentro de cestos.

É verdade que eles comiam muito: mas o pinhão sobrava!

Eu tinha mais de duzentos macacos - bugios e bugias - mestres de pelar pinhão, e tudo gente moça, porque os velhos não tinham metido a mão na cumbuca, e lá andavam no mato, passando vida de cachorro.

Ora, pois, não é nada, mas cada dia preparava minhas sete arrobas, mais ou menos, de farinha de pinhão, que era logo ensacada e mandada para a comissão da fome da seca.

Fabricada, ensacada e mandada de graça! Confesso a minha verdade: eu esperava ser recompensado com uma comendazinha... Era o meu fraco: poder um dia enfrentar uma onça, de comenda no peito!

Cada um com a sua fraqueza.

Nesse meio tempo apareceu o gafanhoto, uma praga monstruosa, que derrotou tudo quanto era pinhão que havia na serra: não se encontrava um, para remédio.

Vi-me então obrigado a licenciar os bugios e soltei-os, dando-lhes conselhos e recomendando-lhes juízo.

Foi um grande dia para aqueles bichos.

Estou convencido que se durasse mais tempo o serviço, muitos deles, os mais inteligentes, acabariam, não digo - falando - porém - mastigando - alguma coisinha que se entendesse.

Por exemplo: havia um, que com alguns exercícios já dizia - mual! mual! - o que parece-me que seria - Romualdo -, que era o nome que ele mais ouvia na roda do dia.

Pouco antes de retirar-me daqueles lugares, andava eu no mato, aborrecido por não encontrar caça alguma que me satisfizesse.

Embrenhado num cerrado, encostei-me a uma árvore, à espera do que aparecesse.

Nisto senti ali por perto um - hã, hã, hã! - muito compassado e "monátono" (sic). Hã! hã! hã! Lembrei-me da cantoria das amas, embalando crianças.

Por instinto de caçador, apurei o ouvido e percebi donde vinha o som; olhei, e por entre as ramarias lobriguei um vulto amarelo-vermelho; levei a arma à cara, fiz pontaria, e ia desfechar.

Quando senti que puxavam-me pela aba do casaco voltei-me, e qual o meu espanto, dando de cara com um bugio, que ria-se e dizia - Mual! Mual!

Abaixei a arma; ele e não, sempre puxando-me pela aba do casaco, foi-me levando em direção ao vulto que eu descobrira; mais perto vi então que era uma macaca, sentada, com um macaquinho ao colo, dando-lhe de mamar!

O lugar onde ela estava era uma espécie de rancho, mal feito, é verdade, mas mostrando já alguma civilização, havia um porongo d'água pendurado num galho, e, numa forquilha, espetado, um ninho de sabiá cheio de guabijus, parecendo uma fruteira.

O bugio pôs uma mão no ombro da bugia, a outra sobre a cabeça do macaquinho e com a outra bateu no peito, como a dizer:

- Minha mulher! Meu filho!

Oh! senti toda a poesia daquela felicidade!

Tirei do bolso o meu lenço de ramagens e dei-o de presente à bugia, dizendo:

- Toma! Faze fraldas para o pequeno!

O Iadrãozinho parece que entendeu e engraçando com a corrente do meu relógio, pôs-se a brincar com ela; e eu, para divertir-me, ainda encostei-lhe a "cebola" ao ouvido, para ele apreciar o tique-taque da máquina.

O casal saltou de contente, berrou -mual! mual! - umas quantas vezes, e quando me despedi, veio acompanhar-me até a beira do mato. Nunca mais os vi.

Quem nos diz a nós que, com tempo e paciência e pinhões, os bugios.

Ah! antes que esqueça: da minha farinha e da tal comissão também nunca mais tive notícias.

E da comenda, menos!

Fonte: João Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado em 1914. Disponível em Domínio Público 

Renato Frata (Régua de medir língua)

Circunspecto, mal-humorado e de forte personalidade, quando meu pai chegava, recolhiam-se os filhos. Não era monstro, mas no quarto sentíamo-nos seguros. O respeito por medo impunha silêncio, perfil não agradável a se fazer do pai. Soubemos, depois, das decepções por ele nunca absorvidas: a morte de filhos, falta de expectativa.

Amargava o amargo viver.

Nos gestos, fugas ao boteco amparador de cotovelos. E companheiros bons de ouvidos e de garganta a ouvirem e dizerem lamúrias.

Nunca esperança.

Para o mal dos pecados, uma vizinha fofoqueira de nome Filó, volta e meia buscava, por empréstimo, xícaras de farinha, açúcar, arroz, raramente os pagava. E ele odiava falatório inútil, especialmente os que vinham de comentários ouvidos ou criados por ela que, das respostas ouvidas, sairiam notícias falsas a inundar ouvidos outros, municiando-se para produzir fofocas perigosas.

Por isso ele alertou:

- Não lhe deem trela, é inconsequente e se abastece de fatos que viram difamação. É perigosa!

Tinha lá suas razões.

Estando ele ocupado com relatórios das vendas que fazia, a vizinha pediu feijão e, enquanto minha mãe a servia, danou falar mal da mulher do prefeito, esperando respostas que lhe dessem fôlego para alongamento do disse-que-disse. Ele se levantou e foi à cozinha de posse de um embrulho pequeno, que o estendeu à visita.

- Para mim? - perguntou sorrindo.

Ao desfazer o invólucro, diante da surpresa, admirou:

- Uma régua?

- Sim, dona Filó, para medir sua língua.

Diante do espanto, completou:

- Vá fazer fofocas em outro lugar, não na nossa casa!

Resposta clara, mal-educada, mas objetiva. Nem é preciso dizer do constrangimento geral.

O fato é que ela, de régua na mão, saiu e bateu a porta. Para não mais voltar nem para pedir, nem para devolver, quanto mais, falar.

Guardadas as proporções, consequências e ajustes de conceito, considerando as trapalhadas de certos pessoas (de todos os escalões e esferas), a inconveniência de Dona Filó ficaria nos
calcanhares.

Talvez a régua de meu pai devesse ser distribuída às grosas, pelo país... Com todo o respeito a quem tem a língua medível a centímetros e polegadas.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Recordando Velhas Canções (Ave Maria no Morro)


Compositor: Herivelto Martins

Barracão de zinco
Sem telhado, sem pintura
Lá no morro
Barracão é bangalô

Lá não existe
Felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu

Tem alvorada, tem passarada
Alvorecer
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer

E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece ave Maria
E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece ave Maria

Ave Maria
Ave
E quando o morro escurece
Elevo a Deus uma prece
Ave Maria
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A Simplicidade do Morro e a Fé em 'Ave Maria no Morro'
A canção 'Ave Maria no Morro', composta por Herivelto Martins, é um clássico da música brasileira que retrata a vida simples e a fé dos moradores dos morros. A letra descreve o barracão de zinco, uma moradia humilde sem luxos, mas que é comparada a um bangalô, sugerindo que, apesar da simplicidade, há uma beleza singular naquela vida.

A música contrasta a vida no morro com a dos arranha-céus, destacando que a felicidade verdadeira não está na riqueza material, mas na proximidade com a natureza e com o céu, tanto no sentido literal quanto espiritual. A alvorada e a passarada, assim como a sinfonia dos pardais, são elementos que trazem a ideia de harmonia e paz, elementos essenciais da vida no morro que são valorizados pelos seus moradores.

O aspecto religioso é fortemente presente na música, com a comunidade do morro se unindo ao final do dia para rezar a 'Ave Maria'. A oração, que é uma das mais conhecidas no cristianismo, simboliza a fé e a esperança dos moradores, além de representar um momento de união e contemplação. A repetição da prece no final da música reforça a importância da espiritualidade na vida daquelas pessoas, independentemente das adversidades.