quinta-feira, 4 de julho de 2024

Recordando Velhas Canções (Pau de arara)


Compositores: Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

Eu um dia cansado que eu tava
Da fome que eu tinha
que eu num tinha nada
que fome que eu tinha
que seca danada no meu Ceará
Eu peguei
e juntei os restinhos de coisas que eu tinha
duas calça velha e uma violinha
e num pau-de-arara toquei para cá

E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Zanzando na praia de Copacabana
Dançando o xaxado pra moças oià

Virge Santa que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça
Que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará

Foi aí que eu resolvi comer gilete. 
Tinha um compadre meu lá de Quixeramobim, que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana.
De dia ele ia de casa em casa pedindo gilete velha e de noite ele comia aquilo tudinho pro pessoal ver. 
Eu num sei não Elis, mas eu acho que ele comeu tanto, que quando eu cheguei lá na praia, aquele pessoal já tava até com indigestão, de tanto ver o camarada comer gilete.
Uma vez, eu tava com tanta fome que falei assim prum moço que ia passando:
-Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vosmecê vê?
Então ele me respondeu assim:
- Sai prá lá pau-de-arara. Tú não te manca não?
- Oh! Distinto, só uma, que eu num comi nadinha inda hoje.
- Tú enche, hein, pau-de-arara?
Aquilo me deixou tão aperriado, que se num fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele pai-d'égua.

Puxa vida não tinha uma vida
pior do que a minha
Que vida danada, que fome que eu tinha
Zanzando na praia pra lá e pra cá.
Quando eu via toda aquela gente
num come que come, eu juro que tinha
saudade da fome, da fome que eu tinha
No meu Ceará
E daí eu pegava e cantava
e dançava o xaxado
E só conseguia porque no xaxado
A gente só pode é mesmo se arrastá

Virge Santa
Que a fome era tanta
que até parecia que mesmo xaxando
meu corpo subia igual se tivesse
querendo voar

Às veiz a fome era tanta, que vorta e meia a gente rumava uma briguinha pra ir comer a bóia no xadrez.
Êta quentinho bom na barriga! Mas, com perdão da palavra, a gente devorvia tudo dispois, porque a bóia já vinha estragada... Mas enquanto ela ficava ali dentro da barriga, quietinha... Que felicidade!
Não, mas agora as coisas estão miorando. Tem uma senhora muito bondosa lá no Leblon, que gosta muito de ver eu comer é caco de vrido. Isso é que é bondade da boa! Com isto eu já juntei uns 500 mil réis.
Quando eu tiver mais um pouquinho, vou simbora, vorto pro meu Ceará.

Vou simbora pro meu Ceará
Porque lá tenho um nome
Aqui num sou nada, sou só Zé com fome
Sou só pau-de-arara, nem sei mais cantá.
Vou picar minha mula, vou antes que tudo arrebente
porque to achando que o tempo tá quente,
Pior do que anda num pode ficar.
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A Jornada de um Migrante Nordestino: A Luta pela Sobrevivência em 'Pau De Arara'
A música 'Pau De Arara', interpretada por Ary Toledo, retrata a dura realidade de um migrante nordestino que, cansado da fome e da seca no Ceará, decide buscar uma vida melhor no Rio de Janeiro. A letra é um relato sincero e doloroso das dificuldades enfrentadas por muitos nordestinos que, na esperança de encontrar melhores condições de vida, se aventuram em outras regiões do Brasil. O 'pau de arara' mencionado no título e na letra é uma referência ao meio de transporte precário utilizado por muitos migrantes, que viajavam em caminhões adaptados, muitas vezes em condições desumanas.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, o protagonista se depara com uma realidade igualmente difícil. Ele passa as noites na praia de Copacabana, tentando ganhar a vida dançando e cantando o xaxado, uma dança típica do Nordeste. A fome, que parecia insuportável no Ceará, continua a ser uma presença constante em sua vida, e ele se vê zanzando pela cidade, observando a abundância ao seu redor e sentindo saudades até mesmo da fome que conhecia em sua terra natal. A letra transmite um sentimento de desespero e desilusão, mostrando que a migração não trouxe a solução esperada para seus problemas.

A música também aborda a perda de identidade e dignidade que o migrante enfrenta. No Ceará, ele tinha um nome e uma identidade, mas no Rio de Janeiro, ele se sente como 'só Zé com fome', um ninguém. A decisão final de retornar ao Ceará, apesar das dificuldades, reflete um desejo de recuperar sua identidade e dignidade, mesmo que isso signifique voltar à fome e à seca. 'Pau De Arara' é uma poderosa narrativa sobre a luta pela sobrevivência, a busca por dignidade e a saudade de casa, temas que ressoam profundamente na experiência de muitos migrantes nordestinos.

Carlos Lyra ainda vivia sua fase de maior criatividade — que coincidiu com o melhor período do contemporâneo Tom Jobim — quando começou a sua parceria com Vinícius de Moraes. Então, certo dia, ao entregar ao poeta uma fita com várias melodias para serem letradas, dele recebeu a sugestão de transformarem aquele repertório num musical.

Assim surgiu “Pobre Menina Rica”, com Vinícius criando-lhe as letras, o enredo e os personagens numa estada em Petrópolis, onde também criara os versos de “Garota de Ipanema”. Com o papel título destinado a Nara Leão, a peça narrava a historinha de uma solitária menina rica, que se apaixonava por um mendigo, integrante de uma inacreditável comunidade de desvalidos, estabelecida ao lado de sua casa.

Com tal enredo servindo de pretexto para a apresentação de uma série de belas canções, como “Primavera”, “Maria Moita”, “Sabe Você” e “Samba do Carioca”, a peça foi inicialmente exibida no Teatro Maison de France, sendo depois levada para o Teatro de Bolso, quando vários atores seriam substituídos. Entre estes estava o paulista de Bauru, Ary Toledo, que pediu a Lyra para gravar “Pau de Arara”, a música que cantava no palco.

Essa composição era inspirada num tipo real, um pobre nordestino que sobrevivia dançando xaxado na praia de Copacabana e que, de repente, teve a ideia de melhorar seus rendimentos.., comendo gilete.

Em três longas estrofes, entremeadas por trechos recitados, a canção desfia espirituosamente as desventuras do personagem, que no final promete um sensato retorno às origens: “Vou-me embora pro meu Ceará / porque lá tenho um nome / e aqui não sou nada, sou um Zé-com-Fome.”

Depois de uma gravação realizada em estúdio e lançada num compacto, Ary Toledo voltou a gravar “Pau de Arara”, desta vez ao vivo, no Teatro Record, durante o programa “O Fino da Bossa”, versão que ganhou gargalhadas estrepitosas da plateia e de Elis Regina, o que acabou enriquecendo em alegria e espontaneidade a performance do intérprete.

O sucesso do disco foi tamanho, que fez muita gente pensar que Ary Toledo era realmente “um mísero cearense”, autor de “O Comedor de Gilete”, nome pelo qual a composição ficou conhecida.

Relembrando “Pobre Menina Rica”, Carlinhos Lyra conta que, ao tomar conhecimento do enredo da peça (na qual o mendigo seresteiro), ponderou com o parceiro: “Mas, Vinícius, você não acha assim meio artificial esse negócio de uma menina rica e bonitona se apaixonar por um mendigo?” Ao que o poeta respondeu: “Acontece que esse é um mendiguinho muito simpático, incrementado, arrumadinho”, e, reforçando a argumentação, fulminou: “Além do mais era primavera parceirinho, primavera, entendeu?” (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Mensagem na Garrafa = 123 =


Antonio Brás Constante 
Canoas/RS

A SIMPLES CORAGEM DE SORRIR

Sorrir é uma prova de coragem. Neste mundo pessimista e individualista, ter forças para sorrir nos faz compartilhar com nossos semelhantes à janela de nossas almas. O sorriso é um símbolo de carinho. É universal. Une as pessoas e embeleza a vida.

Pena que este gesto tão nobre e bonito, cada vez mais se perca dentro daqueles que se guiam pelo ódio e pelo preconceito. Para eles, um simples olhar já é motivo para externar toda sua raiva. Um sorriso é um sinal de fraqueza que deve ser combatido com agressividade insana, deboche ou tola antipatia. Não consideram os outros como sendo seus semelhantes, apenas intrusos aos seus domínios ilusórios. Comportam-se como animais. Não se enquadrando nas definições que conhecemos sobre humanidade. Pois preferem atear fogo em dicionários a descobrir suas definições. Pisar em sentimentos a ter que estender a própria mão.

Tais seres dantescos parecem estar sempre dispostos a tirar a luz de quem cruza o seu caminho nefasto. O único sorriso que conhecem é o do desprezo. Pobres essencialmente de espírito. São parasitas que apodrecem as relações entre as pessoas. Espalhando medo, crueldade e selvageria por onde passam. E é neste mundo louco em que vivemos, que a voz silenciosa do sorriso deve emergir com cada vez mais força. Combater o caos com civilidade, desespero com esperança, desamparo com auxilio, mas sempre com um cartão de apresentações saído de nossos corações e expresso em nossos lábios. O sorriso é uma arma de paz, que não mata, mas desarma. Encanta. Purifica sentimentos. Basta sabermos usá-lo, basta querermos usá-lo.

Enfim, mesmo vivendo em meio a uma realidade que cada vez mais nos fecha em conchas de solidão, quem sabe se esta demonstração de coragem oferecida gratuitamente e gentilmente aos nossos irmãos de vida, moradores e tripulantes desta pequena e grande nave chamada Terra, não consiga transformar as caras fechadas de tantas pessoas (meras fachadas vazias e tristes), em fachos de um singelo brilho de amizade, criando assim, um mundo onde nossos filhos tenham mais motivos para sorrir do que para chorar. O simples gesto de sorrir não depende de palavras, só depende de nós. 

Você já sorriu hoje?

Contos das Mil e Uma Noites (O falso cego e os cegos de nascença)

Meu irmão Kafat é cego de nascença e era um dos chefes da confraria dos mendigos em Bagdá. Um dia, Alá levou-o a uma mansão. Bateu com seu cajado na porta. Perguntaram do interior da casa: “Quem é?” Meu irmão não respondeu.

Devo dizer-lhe, ó Comandante dos Fiéis, que meu irmão Kafat, que era o mais astucioso dos mendigos, tinha um sistema. Batia na porta, mas nunca respondia a quem perguntasse: “Quem está aí”?” Ficava calado até que alguém abrisse a porta, sabendo que se dissesse: “É um mendigo pedindo esmola”, os moradores não abririam, mas gritariam: “Que Alá tenha pena de ti”, e o mandariam seguir seu caminho. 

Assim, quando, naquele dia, alguém perguntou: “Quem é?” meu irmão não respondeu. Após um momento, a porta foi aberta por um homem de cara tão amarrada que, se meu irmão a pudesse ter visto, com certeza teria ido embora sem nada pedir. Mas cada um carrega seu destino pendurado ao pescoço.

O homem perguntou: “Que queres?” 

Kafat respondeu: “Alguma esmola em nome do Compassivo.” 

– És cego? perguntou o homem.

- Sou cego e muito pobre.

- Dá-me a mão e conduzir-te-ei.

Meu irmão estendeu a mão, e o homem conduziu-o, uma escada após a outra, até um alto terraço. Kafat estava sem fôlego, mas animava-o a esperança de receber as sobras de um grande festim.

Finalmente, o dono da casa perguntou: “Que queres, ó cego? 

- Esmolas, pelo amor de Alá, respondeu meu irmão, surpreso.

- Possa Alá abrir outra porta para ti.

- Ó coisa, disse Kafat com indignação, não me podias ter dado essa resposta quando estávamos embaixo?

- Ó sujeira mais vil, retrucou o outro, não podias responder quando perguntei quem estava batendo na porta?

- Se não quiseres ser chutado como uma bola, trata de sair daqui por ti mesmo, ó desastrado conjunto de misérias.

Meu pobre irmão, cego como é, teve que descer as escadas sozinho. Quando faltavam vinte degraus, escorregou, rolou pelo restante da escada e bateu a cabeça no chão. Saiu pela rua, queixando-se amargamente. Breve, dois de seus companheiros juntaram-se a ele e perguntaram-lhe o que tinha. Contou-lhes, e acrescentou: “Agora, meus amigos, devo ir para casa apanhar algum dinheiro para comprar comida neste dia funesto. Terei que mexer em nossas economias, as quais já são bastante gordas, como sabeis, e foram colocadas sob minha guarda.”

Ora, durante todo esse tempo, o homem que havia tratado meu irmão com tanta vileza - e que era um grande bandido seguia-o pela rua sem ser visto nem por ele nem pelos dois amigos cegos que o acompanhavam. Continuou a segui-los até a casa de meu irmão; e quando os três entraram lá, insinuou-se atrás deles antes que fechassem a porta. Meu irmão retirou o dinheiro da confraria do esconderijo, e os três verificaram que já somava 10 mil dinares. Ficaram com algumas moedas e recolocaram o tesouro no seu esconderijo. Só então sentiram a presença do intruso. Pegaram-no e, mesmo cegos, conseguiram dominá-lo e começaram a gritar: “Ladrão! Ladrão! Socorro, ó muçulmanos, socorro!” 

Muitos vizinhos acorreram. Vendo isto, o bandido cerrou os olhos, fingindo ser cego também, e começou a gritar: “Por Alá, ó amigos, sou um mendigo cego, sócio destes três. Eles estiveram tentando matar-me para ficarem com minha parte nas economias que fizemos juntos e que já somam 10 mil dinares. Juro-o por Alá, pelo sultão, pelo emir! Levem-me, oh, levem-me ao uáli.”

Nesse ínterim, os guardas já haviam chegado e arrastaram os quatro querelantes até o palácio do uáli. “Quem são esses homens?” perguntou o uáli. 

O ladrão respondeu logo: “Justo e penetrante uáli, ouve-me e saberás a verdade. Contudo, como irias acreditar em mim antes de submeter-me à tortura? Manda bater em mim, primeiro, depois nestes três companheiros meus e então contar-te-emos toda a verdade.”

- Estendei este homem no chão e batei nele, já que o deseja tanto, ordenou o uáli.

Os guardas apanharam o homem, estenderam-no no chão e cobriram-lhe o corpo com chicotadas. Após um momento, o homem começou a gemer e abriu um olho. Após outros golpes, abriu deliberadamente o outro olho. 

Vendo isso, o uáli gritou furioso: “Que vergonha é essa!” 

O ladrão gemeu: “Parai de bater em mim, e contarei tudo.”

O uáli deu as ordens devidas, e o homem pôs-se de pé e disse:

“Somos quatro ladrões que fingimos ser cegos para extorquir esmolas e entrar nas casas e olhar as mulheres na intimidade. Então, corrompemo-las e agarramos elas. Depois, roubamo-las e preparamos planos para os assaltantes. Estivemos fazendo isso por muito tempo, e já juntamos 10 mil dinares. Hoje, pedi minha parte; mas eles se recusaram a entregá-la e teriam batido em mim até me matar se os guardas de nosso senhor uáli não me tivessem socorrido. Essa é toda a verdade que meus companheiros confirmarão quando forem submetidos à tortura. Eles são bastante duros e manterão os olhos fechados por muito tempo.”

Enganado pelo audacioso ladrão, o uáli mandou bater em meu irmão até que perdeu os sentidos. Quando voltou a si, recebeu mais trezentas chicotadas, não obstante seus gritos de que era cego de nascença. Seus dois companheiros foram submetidos ao mesmo tratamento, sem abrir, naturalmente, os olhos. Por excesso de perversidade, o ladrão exortava-os a abrir os olhos, repetindo:

“Respeitai nosso senhor uáli. Abri os olhos. Confessai a verdade.”

O uáli mandou apanhar o dinheiro da confraria na casa de Kafat, entregou a quarta parte, isto é, 2.500 dinares, ao bandido e ficou com o saldo.

Finalmente, dirigiu-se a meu irmão e a seus dois companheiros nestes termos:

“Miseráveis embusteiros, comeis o pão que é uma dádiva de Alá e cometeis os piores delitos em seu santo nome, fingindo ser cegos. Dai o fora daqui e não sejais mais vistos em qualquer parte de Bagdá.”

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Corcovado)

 
Compositor: Tom Jobim

Um cantinho e um violão
Este amor, uma canção
Pra fazer feliz a quem se ama
Muita calma pra pensar
E ter tempo pra sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo

Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama

E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você, eu conheci
O que é felicidade, meu amor
O que é felicidade, o que é felicidade

E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você, eu conheci
O que é felicidade, meu amor
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A Serenidade do Amor em 'Corcovado’

Provedor de melodias para versos alheios, Tom Jobim é também o autor das letras de alguns de seus maiores sucessos. Este é o caso do samba “Corcovado, um cartão postal do Rio de Janeiro, poética e musicalmente impregnado pelo espírito da bossa nova: “Um cantinho, um violão /esse amor, uma canção / pra fazer feliz a quem se ama / muita calma pra pensar / e ter tempo pra sonhar / da janela vê-se o Corcovado / o Redentor, que lindo.”

Sobre esta letra há duas curiosidades a assinalar: originalmente o primeiro verso dizia: “um cigarro, um violão.” Nos ensaios para a gravação, João Gilberto convenceu Tom Jobim a mudá-lo para “um cantinho, um violão”. Já os versos “da janela vê-se o Corcovado / o Redentor, que lindo”, foram inspirados pela paisagem vista das janelas do apartamento em que o autor morava na ocasião. “Pouco depois, a construção de um edifício em frente acabou com a paisagem”, comenta Paulo Jobim, filho de Tom. Por sua vez, esse apartamento, situado na Rua Nascimento Silva, 107, em Ipanema, acabou entrando para a letra do samba “Carta ao Tom 74”, de Toquinho e Vinícius de Moraes.

Começando com uma introdução que o identifica de imediato e é parte integrante da composição — um desenvolvimento melódico sobre a harmonia dos compassos iniciais do tema principal — , “Corcovado” encantou dezenas de músicos e cantores no Brasil e no exterior. Daí a sua vasta discografia, que o faz figurar entre as canções mais conhecidas de Antônio Carlos Jobim, destacando-se entre os seus intérpretes João Gilberto (o primeiro), o próprio Tom (em quatro versões, uma delas com a participação de Elis Regina) e, com o título de “Quiet Nights of Quiet Stars”, um vasto elenco de cantores (Sinatra, Ella Fitzgerald) e músicos de jazz (Stan Getz, Miles Davis, Teddy Wilson).

Em 1987, num levantamento realizado por Jairo Severiano e Vera de Alencar, “Corcovado” ostentava a terceira colocação entre as canções mais gravadas de Jobim, superado apenas por “Garota de Ipanema” e “Samba de uma Nota Só” (A Canção no Tempo - Vol. 2 - Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello- Ed. 34).

A música 'Corcovado', composta por Tom Jobim, é uma das pérolas da Bossa Nova, gênero musical que surgiu no final dos anos 50 e início dos anos 60 no Brasil. A letra da canção reflete uma simplicidade serena e um contentamento profundo com as coisas simples da vida, como um cantinho, um violão e a companhia de alguém amado. A referência ao Corcovado, com a estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, evoca uma imagem icônica de beleza e tranquilidade, que se alinha ao estado de espírito proposto pela canção.

A música também aborda a transformação pessoal do eu lírico, que de uma condição de tristeza e descrença no mundo, passa a conhecer a felicidade ao encontrar o amor. Essa mudança é um testemunho do poder do amor de transformar a visão de mundo de uma pessoa, trazendo um novo significado à existência. A repetição da pergunta 'O que é felicidade?' sugere uma reflexão sobre a natureza da verdadeira felicidade, que, na perspectiva da música, parece estar nas pequenas coisas e momentos compartilhados com quem se ama.

A canção é um convite à apreciação dos momentos de calma e contemplação, longe da agitação do dia a dia. A imagem do 'apagar da velha chama' pode ser interpretada como o fim de um período de vida menos feliz, que se encerra com a chegada do amor. 'Corcovado' é uma ode à beleza da vida cotidiana e ao amor como fonte de alegria e significado, encapsulando a essência da Bossa Nova com sua melodia suave e poesia lírica.

Fontes:

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Daniel Maurício (Poética) 70

 

Humberto de Campos (A derradeira "morada")

O administrador do cemitério de São Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia há anos, na rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o Comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo logo, sem circunlóquios:

— O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis contos de réis, de "luvas".

Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o Comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para não se ver de uma hora para outra, lançado à rua com a família.

Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o Comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a ideia de uma represália: chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da sepultura.

Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.

— Pronto! — apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. — Que desejam?

— A chave! — explicou um parente do defunto.

— Suspendam a tampa do esquife! — ordenou o administrador.

Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado capitalista.

Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:

— E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as "luvas"?

E não entregou a chave!

Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  

Aluísio de Azevedo (Uma lição)

Era uma saleta ao lado de uma sala de jantar; ao fundo um reposteiro corrido com ares burocráticos; ao centro uma banquinha de charão, conspurcada de cinza de charuto e nicotina diluída em saliva. É noite e a luz que vem de cima, transbordando de um globo de gás, iluminando o grupo de três velhotes, mais ou menos barrigudos, que conversavam em voz baixa e com voluptuoso interesse.

Um deles acabou de contar alguma coisa que ainda faz rir aos outros dois. E, tal é o riso, que os três amigos, segurando cada qual a competente barriga com ambas as mãos, deixam-se cair para as costas do sofá e arfam ao som uniforme da mesma gargalhada.

– Ora o Silveira …. Ora o nosso Silveira!… dizia um, aproveitando as curtas intermitências da hilaridade. Não sabia, desembargador, que você em rapaz fora tão levado! Ora o demo!

O desembargador, limpando as lágrimas do riso, ia talvez contar mais alguma das suas, quando o terceiro velhote segredou ao grupo:

– Homem, deixe lá falar! Todos nós pagamos o nosso dízimo ao diabo! Aqui onde me veem, pai de dois filhos homens, avô por aí naturalmente, e em vésperas de conselheiro do Estado; eu, acreditem, também tive as minhas rapaziadas…

Estas palavras acalmaram, como por feitiço, o riso dos outros dois, que se voltaram para quem as pronunciou, já dispostos a saborear a nova anedota.

– Uma ocasião, isto vai há coisa de uns trinta anos, – principiou o quase conselheiro - uma ocasião, recolhi-me para o meu quarto de estudante, um pouco apressado pelo mau tempo, quando dou com uma rapariga muito bem parecida, que vinha em sentido contrário e sem guarda-chuva.

Instintivamente parei defronte dela. O demônio da pequena tinha uns olhos!… Parei e logo em seguida retrocedi, acompanhando-lhe o passo.

Ela não deu resposta.

No fim de três minutos acrescentei:

– Por que não aceita o meu chapéu?… Não posso ver uma dama apanhar chuva deste modo!

– Obrigada. - volveu ela, sem me voltar o rosto.

E apressou o passo.

– Ingrata!

E apressei o passo também.

– Mau! – exclamou a perseguida, estacando em frente de mim e desferindo-me um olhar, tão sobranceiro, imponente e tão digno, que eu abaixei as pálpebras e pedi-lhe perdão com um gaguejo.

– Não tive intenção de a magoar… disse. Vossa excelência apanhava chuva e entendi que era do meu dever oferecer-lhe uma parte do meu chapéu.

– E se eu fosse para muito longe?…

– A verdadeira cortesia não olha distâncias!…

Ela, ao que parece, compreendeu a sinceridade das minhas palavras, porque interrogou logo, desfranzindo o rosto:

– Foi então por mera delicadeza que…?

– Juro-lhe que sim, minha senhora. Uma vez, porém, que vossa excelência se julga ofendida, peço-lhe mil perdões e sigo de novo o meu caminho…

Nisto, uma formidável rajada de vento passou por entre nós, e a chuva recrudesceu tempestuosamente.

– E, para provar que não minto, acrescentei, entregando-lhe o chapéu, tenha a bondade de levá-lo, e depois me restituirá…

– E o senhor?…

– Ali! Eu moro muito perto, naquele sobrado de alugar cômodos. Vossa excelência fará o obséquio de remetê-lo para o nº 5. Aqui o tem.

Ela consultou o tempo, mediu-me de alto a baixo e depois, tomando uma resolução, disse:

– Não! Dê-me o seu braço e acompanhe-me ao canto da rua. Talvez apareça um carro.

Mal, porém, avançamos alguns passos, por tal forma recresceu a chuva, que era quase impossível prosseguir.

E esta?… – resmungou ela, muito contrariada. – Esta só a mim sucede!… A maldita chuva aumenta, e nada de aparecer um carro!…

Ao chegarmos à esquina, tivemos de parar defronte da grande enxurrada que cortava a rua. Não era possível ir mais adiante. De carro, nem sinal! As casas fechavam-se todas, se bem que não passasse de nove horas da noite; os relâmpagos repetiam-se num bruxulear elétrico, os trovões abalavam os prédios e faziam tremer os vidros gotejantes dos lampiões. Já ninguém se animava a afrontar o tempo; os próprios cães escondiam-se pelos batentes das portas trancadas.

E o meu belo par, muito impaciente, mordia os beiços e marcava compassos, espaçando a lama debaixo dos pés, sem dar palavra.

Eu também não dava.

Entretanto, não podíamos ficar ali: a peste da chuva crescia… crescia…

Em breve teríamos água até ao meio da canela. De vez em quando passava um carro, mas ao longe, com as rodas a levantar água, como as de um vapor.

– E agora?… – perguntou-me a desconhecida, com raiva.

Eu sacudi os ombros.

Decorreu mais um instante.

– Se vossa excelência quisesse…

– Quê?

– É verdade que não tenho mais do que um pobre quarto de estudante, todavia…

– Entrar numa república?… Ora!…

– Perdão! Não é uma república, minha senhora. Moro naquele sobrado; casa muito séria, ocupo um quarto da frente, e…

– Que não pensariam seus companheiros?

– Moro só, vossa excelência não seria vista, nem desacatada por ninguém…

– Ainda assim seria estúrdio!…

– Em todo o caso, sempre me parece mais razoável do que ficar aqui, com este tempo!… A chuva não durará toda a noite… eu poderia arranjar um carro, e…

– Diga-me uma coisa: O senhor dá-me a sua palavra de honra em como será cavalheiro?

– Oh! Minha senhora!…

– Jura que se portará condignamente comigo?… Jura que não me faltará ao respeito?…

– Dou-lhe minha palavra de honra!

– Bem. Aceito o seu convite. Estou certa de que o senhor não quererá desmerecer da confiança que me inspirou! E vamos, vamos que já me sinto resfriar até aos ossos!

Dei-lhe de novo o braço e voltamos ambos por onde tínhamos andado.

Na ocasião em que eu acendia a vela que costumava ficar atrás da porta da rua, a senhora ainda insistia, cravando-me um olhar muito sério!…

– O senhor promete então quê …

– Pode entrar descansada, minha senhora!

E as nossas duas sombras estenderam-se juntas pelo fundo esvazamento de corredor.

Chegamos ao primeiro andar, abri meu quarto, dei luz ao gás, ofereci uma cadeira à bela hóspede e fui buscar a um canto uma garrafa.

– Acho que vossa excelência fará bem em tomar uma gota de conhaque… – propus, enchendo dois cálices. – Está frio e talvez vossa excelência sinta os pés molhados.

– Não, os pés estão enxutos, trago galochas. Mas aceito.

Bebido o conhaque, a senhora começou a correr com os olhos uma silenciosa revista no aposento. Em seguida ergueu-se e foi, um pouco apavorada, contemplar de perto o meu esqueleto de estudo, que jazia pendurado ao fundo do quarto; depois encaminhou-se para a minha pequena mesa de trabalho, abriu os compêndios que aí estavam, fez uma careta de indignação à vista das gravuras de um tratado de fisiologia, que lhe caiu às unhas; e ficou muito espantada encontrando sobre o criado-mudo um revólver e um carregamento de balas inglesas.

– Isto então é o que se chama uma república?… – perguntou afinal, abrangendo com um gesto o que seus olhos lobrigavam.

E depois da minha resposta:

– Mora inteiramente só?!

– Inteiramente.

– E tem família?

– Em Minas.

– Ah! É da província. Está há muito tempo na corte?

– Há cinco meses.

– Apenas?…

E aproximou-se de mim.

– É exato. – disse eu - Ainda não conheço bem isto por aqui…

– Tem gostado?

– Nada posso dizer por enquanto. Minha vida tem sido tão pouco divertida… Saio de casa para as aulas, das aulas para o restaurante e do restaurante para casa. Ainda não tenho amigos…

– Deve então sentir muita saudade da família…

– Pudera! Vivi sempre em companhia dela, e agora, de um momento para outro, ficar assim tão só.. tão…

– Por que não mora com outros estudantes?

– Ainda não descobri um bom companheiro… Além disso, sou mesmo um pouco esquisito de gênio. Prefiro estar só.

– Ah! Mas há de ter algumas relações…

– Muito poucas, e essas poucas em consideração a meu pai.

– E por que não frequenta os teatros?

– Vou de vez em quando. Não posso perder noites seguidas: quero ver se faço dois anos em um só.

– Ah! é estudioso!…

– Não sou dos mais vadios…

– Bom será que continue assim. Esta cidade é muito perigosa para os rapazes…

– Ora! não é tanto como se diz… Eu, pelo menos, confesso que supunha outra coisa!… Sempre imaginei gozar no Rio de Janeiro uma vida mais divertida…

– Em que sentido?

– Em todos. A respeito de amores, por exemplo, sou de um caiporismo!…

– Creio que levantou o tempo!… – observou a senhora, afastando-se de mim escrupulosamente e lançando o olhar para a janela.

Eu supliquei perdão com um gesto de ternura e humildade.

– Tenha a bondade de ver se levantou o tempo. - exigiu ela batendo com o pé.

– Chove a cântaros! Ah! mas pode ficar tranquila, que eu sei respeitar a quem o merece.

Ela deixou-se cair numa cadeira, soltando um suspiro de resignação.

– Vossa excelência toma uma xícara de café?… - perguntei, indo buscar a máquina e a garrafa de espírito de vinho.

– Não se incomode por minha causa.

– Costumo fazer café todas as noites.

– Nesse caso…

– Tenho também requeijão e doce. Se vossa excelência quisesse… O que nos falta aqui é pão!

Ela sorriu à simplicidade destas palavras.

– E estou quase aceitando… – respondeu já de bom humor, e vindo assentar-se perto da mesa, depois de tirar o chapéu e o mantolete.

– Bem. Vou num instante arranjar o que falta!…

– Com este tempo? Não! não consinto!

– É um momento! Não me molho! Há uma confeitaria na esquina! Ora! quantas vezes não tenho feito o mesmo com tempo ainda pior!…

Ela tornou a sorrir.

– Quer ver?… – perguntei, lançando sobre a cabeça uma grande capa de borracha, sacando as botinas e as meias e enrodilhando as calças nos joelhos. – De um pulo estou lá e de outro cá!

Ela soltou uma risada.

Voltei daí a meia hora, não com os pães simplesmente, mas também com uma empada de camarões, uma galinha assada, alguns pastéis de Santa Clara, duas garrafas de Borgonha e outra de moscatel de Setúbal.

– Que é isto, Nossa Senhora! – exclamou a moça, largando o livro, que ficara a ler durante a minha ausência.

– Pareceu-me melhor cearmos juntos… Eu estou com tanto apetite!

– Que extravagância! Por isso é que vocês estudantes andam sempre atrapalhados no fim do mês!… Se esbanjam a mesada logo nos primeiros dias!…

– Mas eu faço nisto tanto gosto… Espero que vossa excelência aceitará uma asa desta galinha, que me parece deliciosa. Vamos! Arranja-se a mesa aqui mesmo.

– E eu posso ajudá-lo. - declarou a senhora, afastando os meus livros e os meus papéis para um canto do quarto.

– Tenha a bondade de não segurar o tinteiro desse modo. Está quebrado…

– Estes estudantes! Ainda chove muito lá fora?

– Chih! Horrorosamente! Um dilúvio!

– E eu aqui!…

– Não terá motivos para arrepender-se, verá! Bom! Agora, faz favor? Dê-me aqueles embrulhos que eu trouxe.

– Pronto!

– Obrigado.

– Três garrafas! -… Para que tanto vinho?

– Fica aí, se sobrar.

– Vocês!

– Muito bem! O diabo é que só temos um talher… Ah! posso arranjar-me com esta espátula e este canivete. Felizmente há dois pratos e não faltam copos. Principiemos!

– Isto contado não se acredita!

– Não sei onde esteja o mal!… Creio que não praticamos até agora nenhuma ação feia…

– Não digo que haja mal, nem que praticássemos ações feias, mas parece-me extraordinário, imprevisto pelo menos, achar-me neste momento ceando ao lado de um rapaz, que eu há duas horas não conhecia…

– Rapaz que procura merecer essa honra, esforçando-se para cumprir com os seus deveres de cavalheiro…

– O senhor como se chama?

– João Carlos do Souto. E a senhora?

– Não lhe posso dizer. Compreenderá que…

– Está claro, e não insisto.

– Espero mesmo que se algum dia nos encontrarmos noutro lugar, o senhor guardará toda a discrição sobre estas casualidades de hoje…

– Oh! Certamente, minha senhora!

– Sim, porque afinal de contas não me pesa na consciência o que sucedeu… Se não fosse esta maldita chuva!…

– Diga antes: esta chuva abençoada!…

– Mal! Não vá por esse caminho, que vai mal! Nada de galanteios!…

– Já aqui não está quem falou!

E calamo-nos os dois por um instante, a mastigar em silêncio, enquanto lá fora o vendaval esfuziava contra as janelas.

– Vossa excelência bebe tão pouco… não gosta de Borgonha?

– Gosto, e este me parece bem bom, mas não convém abusar. O senhor já tomou quase uma garrafa!… Cuidado!

– Ora, este vinho é inocente!

– Fie-se nisso!

– Quer mais um pouco?

– Vá lá!

– Além de que a chuva não parece disposta a parar tão cedo… Ainda sente muito frio?

– Já vai passando.

– Está aborrecida?

– Não. E a graça é que me chegou o apetite… Quer saber? Vou repetir a empada!

– É tão bom comer em companhia, não é verdade? E agora, são bem poucas as vezes em que eu não como sozinho!… Isto para quem estava acostumado com família!… Por meu gosto, casava-me…

– Já tem noiva?

– Qual!

– Podia ter deixado alguma na província…

– Ninguém me quer…

– É porque ainda é cedo; quando chegar a ocasião…

– Estarei velho…

– Velho? Tem graça. Que idade é a sua?

– Vossa excelência não acredita. Dezoito anos.

– Só?

– Mostro ter mais, não é?

– Parece ter vinte e tantos. Mas está criança; eu sim é que me posso chamar velha…

– Tem vinte, aposto!

– Acrescente mais cinco.

– Vinte e cinco… Ninguém dirá.

– E então que idade represento?

– Aí dezoito, quando muito…

– Lisonjeiro…

– Afianço-lhe que não sou…

E, com o pretexto de servir-lhe o doce, fui aproximando a minha cadeira da sua.

– Quê… Pois o senhor ainda vai abrir essa terceira garrafa?…

– Não nos havemos de servir de Borgonha para o doce…

– Não lhe faça mal!…

– Qual! Sou de cabeça muito forte!

– Então, à sua saúde!

– Obrigado. Toque!

– Sim; mas não precisa chegar-se tanto ….

– Eu não me estou chegando…

– Deixe-se disso! Lembre-se do que me prometeu!…

– Tem razão. Desculpe, e bebamos à saúde do feliz mortal que possui o seu coração…

– Não sei quem seja, mas acompanhado. Passe-me aquele queijo.

Em vez do queijo, o que lhe passei foi o braço em volta dos quadris, chamando-lhe a cabeça para junto dos meus lábios.

– Mau, mau, mau! – exclamou ela, defendendo-se– . O senhor parece que bebeu demais! Já não estou achando muita graça!

– Não são os vinhos que me embriagam… A senhora bem o vê.

– Não quero ver coisa alguma…

– Então, bem o sente…

– Não sinto nada!

– Adivinhe então, minha senhora, adivinhe o que não tenho ânimo de dizer, meu anjo!

– Ora bolas! Isso já passa de desaforo! solte-me! Se eu desconfiasse disto, não tinha entrado!

– Que queres?… A gente nem sempre se governa em certas ocasiões! És tão bela! Tão bela! Eu te amo! Sim! eu já te amo, minha flor!

E, como acompanhasse estas palavras com uma gesticulação em extremo correlativa, ela ergueu-se de improviso e fez menção de sair.

Alcancei-a já na porta do quarto e caí aos seus pés, envolvendo-a nos braços.

– Perdoa, perdoa, minha santa! – exclamara, a cobrir-lhe de beijos as duas mãozinhas, que nessa ocasião me pareciam mais bonitas, sem luvas.

– Perdoa! Sou um bruto, sou um grosseiro, mas…

– Quero sair! Já! Não fico aqui nem mais um instante! Deixe-me! Deixe-me!

– Pois sim, mas hás de sair depois de haver perdoado! Juro que estou arrependido do que fiz!

– Não sei! Deixe-me!

– Oh! Ainda chove tanto! Espere ao menos que chegue o carro que mandei buscar pelo caixeiro da confeitaria.

– Um carro?…

– Sim, e não deve tardar. É mais um segundo! Um segundo apenas!

– Mas se o senhor está com tolices!.

– Prometo não fazer nada!

– Jura!

– Juro!

– Ora, vamos a ver!

Acabamos de tomar café, quando a carruagem parou à porta.

– Ei-la aí! – disse a tirana pondo-se de pé.

– Ainda chove… – observei eu timidamente.

– Não faz mal!…

– Ao menos não se vá, fazendo de mim um juízo desfavorável, creia que…

– Não. Adeus. Não vou fazendo juízo algum! Adeus, obrigada!

– Jura que não está ressentida?…

– Pode ficar descansado. Adeus.

– Acredite que…

– Adeus!

– Não. Diga primeiro se ainda está contrariada! Com franqueza!

– Com franqueza – estou!

– Não me perdoa?…

– Não. Boa noite!

Acompanhei-a ao corredor e, já na porta da rua, ainda lhe pedi perdão.

***

Dois dias depois, entrando num hotel, habitado só por mulheres, fugiu-me da garganta um grito de pasmo:

– Que vejo?!... Pois é a senhora?! A senhora aqui?!

Ela soltou uma gargalhada e apontou-me com o dedo a três companheiras que lá se achavam.

– É o tal!…

– Ora esta!… – resmunguei. – Para que então me iludiu daquele modo?

– Iludi! Ó filho, eu estava no meu papel, fazendo o que fiz; tu é que não estavas no teu acreditando! Quem te mandou ser tolo?…

– É boa! – disse um dos velhotes. – É muito boa!

E as três barrigas tornaram-se a agitar nas convulsões do riso.

Fonte: Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público.