quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A. A. de Assis (Amorologia)

Deduz-se  que o ser humano, para ser feliz, precisa antes ser salvo, ou seja: recuperar a boa saúde espiritual.

São João vai direto à essência: “Deus é Amor”, de onde chegamos a um silogismo fundamental para a fé cristã: Deus é Amor; Jesus é Deus; logo, Jesus é Amor. Dizer, pois, que só Jesus salva é o mesmo que dizer que sem Amor ninguém se salva.

Tudo bem. Mas o que significa exatamente salvar? A etimologia ajuda a entender: salvar é curar, sarar, sanificar (cf. latim “sanus” / “salus” / “salvus”), daí vindo também saúde (“salud” em espanhol, “santé” em francês), tal como sanar, sanear, salutar, sanidade, santidade.

Mas salvar quem? Salvar a humanidade, visto que, embora tendo sido criados para ser plenamente felizes, até hoje continuamos distantes desse ideal. Há bloqueios vários dificultando o acesso à bem-aventurança: uma série de distúrbios, entre os quais o egoísmo, a ambição, a arrogância, a inveja, o ódio – enfermidades geradoras de toda espécie de sofrimento.

Ante tal diagnóstico, deduz-se  que o ser humano, para ser feliz, precisa antes ser salvo, ou seja: recuperar a boa saúde espiritual. Foi para isso que Jesus (o Amor em sua manifestação visível) esteve alguns anos entre nós. Veio ensinar a gente a ser feliz, começando por formar equipe com um grupo de amigos chamados apóstolos. Treinou-os e os enviou mundo afora com a missão de convidar toda gente a com ele recolocar na trilha do céu a história da terra.

Era o início de um longo processo de salvação, a ser desenvolvido passo a passo: acolhimento > eclesialização > purificação da mente e da alma > evangelização > amorização.

Com a mente limpa e a alma encharcada de ternura, bondade e paz, estaremos prontos para iniciar uma nova caminhada rumo à eterna graça, bastando, daí por diante, manter o coração permanentemente conectado com a fonte do Amor – o coração de Jesus.

Quanto maior o número de pessoas amorizadas, mais próximos estaremos todos do estado de bem-aventurança. Só assim finalmente seremos uma grande família de gente feliz.

Gente feliz é feliz por ser gente que ama.

Gente que ama tem o coração hospitaleiro e alegre, tem a mente sadia e limpa, tem a alma serena e doce. Gente que ama não se irrita, não comete injustiça, não abusa da inocência das crianças, não ofende, não agride, não calunia, não mata, não rouba, não mente, não guarda mágoa ou rancor, não deixa que alguém a seu lado sofra por falta de pão ou de cobertor ou de medicamento ou principalmente por falta de colo.

Gente que ama sorri, escuta, perdoa, ajuda, abraça, beija. Gente que ama gosta de gente, gosta dos passarinhos, gosta dos bichos, gosta das plantas, gosta das flores, gosta das águas, gosta do sol, da lua, da brisa, das estrelas. Gente que ama gosta de amar – gosta da vida.

No dia em que todos nos encharcarmos de Amor, seremos todos felizes sim, e então não haverá mais maldade no mundo, não haverá mais pobreza, não haverá mais sofrimento, não haverá mais tristeza. Seremos uma só família, unida e boa, do jeito que Deus programou.

Recordando Velhas Canções (A praia)


Em plena praia no céu azul brilhava o sol
E junto ao mar a meditar coisas de amor
Mal poderia imaginar, que ao sol se pôr,
Encontraria um grande amor

E de repente o amor aconteceu
Unindo para sempre você e eu
Um beijo então calou a nossa voz
Somente o amor falou, falou por nós.

Quando na praia novamente o sol brilhar
Lá estarei e ficarei bem junto ao mar
Perguntarei que ao sol se pôr
Em plena praia eu encontrei um grande amor

E de repente o amor aconteceu
Unindo para sempre você e eu
Um beijo então calou a nossa voz
Somente o amor falou, falou por nós.
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O Encontro do Amor na Praia
A música 'A Praia' é uma celebração do amor inesperado e profundo que surge em um cenário idílico. A letra começa descrevendo um dia ensolarado na praia, onde o eu lírico está imerso em pensamentos sobre o amor. A praia, com seu céu azul e o brilho do sol, serve como um pano de fundo perfeito para a meditação e a introspecção. É nesse ambiente sereno e contemplativo que o amor surge de forma inesperada, como um evento quase mágico ao pôr do sol.

O refrão da música destaca o momento em que o amor se manifesta de maneira súbita e intensa, unindo duas pessoas para sempre. O beijo que 'calou a nossa voz' simboliza a comunicação profunda e silenciosa que só o amor verdadeiro pode proporcionar. Esse momento de união é tão poderoso que transcende as palavras, deixando o amor falar por si mesmo. A simplicidade e a pureza desse encontro são enfatizadas pela repetição do tema do amor que 'falou por nós'.

Agnaldo Rayol, conhecido por sua voz potente e emotiva, utiliza essa canção para explorar a beleza do amor que surge de forma inesperada e transforma vidas. A praia, um lugar de tranquilidade e beleza natural, torna-se o cenário perfeito para esse encontro amoroso. A música transmite uma mensagem de esperança e a crença no poder do amor para unir e transformar. A repetição da cena da praia ao longo da canção reforça a ideia de que o amor verdadeiro é eterno e sempre presente, mesmo nos momentos mais simples e cotidianos.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trovas em preto e branco)

                                    


1
À pergunta: - Qual andar?
Responde o pinguço, a esmo:
- Onde quiser me levar;
já errei de prédio mesmo!
2
Ao vir "de fogo" recua
gritando, após a topada:
- Que faz um poste na rua
às duas da madrugada?!
3
Cai no trilho e a triste sina
maldiz tanto o beberrão...
"Essa escada não termina
e é tão baixo o corrimão!”
4
"Depois do jantar, o mate",
diz, ao filho, o anfitrião.
Foge, ao perigo, o mascate.
Foi sem tomar chimarrão!…
5
- É o piloto... tô em perigo!...
Tem fumaça... e um fogaréu!...
- É a torre... reze comigo:
“Pai nosso, que estais no céu...”
6
Foi o par pro beleléu...
e o fantasma, em tom moderno:
- Venho, à noite, aqui no céu,
ou você vai lá no inferno?
7
Jaz o ancião na cascata!...
Seu anjo, que é seu abrigo,
já velho e com catarata,
não viu a placa "PERIGO"!
8
Na escada, a aposta suicida
dos genros, no arranha-céu:
- Leva, quem perde a corrida,
a sogra como troféu!
9
Não houve pancadaria
nem sufoco na paquera...
“Sou homem”, disse a Maria.
Ainda bem que o Zé não era!
10
O bombeiro subalterno
morreu... e o céu foi seu rogo...
Mas, foi mandado pro inferno
porque no céu não tem fogo!!!
11
Pede a graça ao padroeiro
e promete ao santo, à beça...
É um beato caloteiro
que não paga nem promessa!
12
Querendo ver o acidente,
ele abriu caminho a murro...
Foi dizendo: "Sou parente"...
Mas quem morreu foi um burro!

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SOBRE AS TROVAS DE THEREZINHA
por José Feldman

As trovas humorísticas de Therezinha Dieguez Brisolla capturam de forma leve e irônica situações cotidianas, muitas vezes com um toque de absurdo.

AS TROVAS

1 – Ironia do pinguço: A resposta do pinguço mostra a desorientação que o álcool pode trazer, transformando uma simples pergunta em uma piada sobre confusão, refletindo uma crítica ao consumo excessivo de álcool e suas consequências.

2 – Poste na madrugada: A indignação de encontrar um obstáculo à noite ilustra a falta de atenção que todos podem ter em momentos de distração.

3 – A escada interminável: O desespero do beberrão reflete a frustração de situações que parecem não ter fim, uma metáfora para desafios da vida.

4 – Chimarrão perdido: O mascate foge do perigo sem se preparar adequadamente, uma. É uma crítica ao despreparo e à falta de atenção nas interações sociais, às próprias tradições, ironizando a seriedade que as pessoas costumam dar a eventos triviais.

5 – O piloto em perigo: A cena humorística mostra como a fé pode ser uma reação imediata ao medo, mesmo em situações absurdas.

6 – Fantasma moderno: A troca entre o fantasma e o homem traz um humor surreal, questionando o que é realmente assustador.

7 – Catarata e perigo: A ironia da situação do ancião que ignora um aviso é um lembrete sobre a vulnerabilidade da idade.

8 – Aposta com sogra: A aposta arriscada entre genros e a sogra revela o humor em relações familiares e rivalidades.

9 – Confusão na paquera: A revelação sobre Zé traz um alívio cômico, jogando com expectativas em situações românticas.

10 – Bombeiro no céu: O bombeiro que, ao morrer, é enviado para o inferno porque "no céu não tem fogo" brinca com a expectativa de que heróis vão para o céu, revelando uma ironia sobre o destino das pessoas.

11 – Beato caloteiro: A figura do beato que não cumpre suas promessas é uma crítica social divertida, expõe a falta de sinceridade em práticas religiosas, mostrando como as pessoas muitas vezes não se comprometem com suas palavras.

12 – Abertura de caminho: A busca por atenção em um acidente termina tragicamente cômica, mostrando como a vida pode ser cheia de surpresas.

ESTILO E ESTRUTURA

Ritmo e Rima: As trovas têm uma cadência marcante, com rimas que tornam a leitura leve e divertida.

Personificação: Elementos como fantasmas e anjos são usados para dar vida a ideias e reflexões, criando um ambiente lúdico.

Simplicidade: A linguagem é acessível, o que permite que as mensagens sejam compreendidas por diversos públicos.

A IRONIA NAS TROVAS DE THEREZINHA

A ironia nas trovas humorísticas de Therezinha  está profundamente enraizada na cultura brasileira e se relaciona com diversos aspectos da sociedade.

As trovas refletem a oralidade e a riqueza do português falado no Brasil, utilizando expressões coloquiais que ressoam com o cotidiano das pessoas. O uso de ironia e humor é uma forma de expressar a identidade brasileira, revelando a capacidade de rir das próprias desventuras. serve como ferramenta de crítica às injustiças sociais e políticas, algo comum na tradição de humor no Brasil, desde a literatura até as manifestações artísticas.

O brasileiro tem uma tradição de usar o humor como forma de resistência, especialmente em tempos difíceis. A ironia nas trovas reflete essa capacidade de encontrar leveza em situações complicadas, pois o riso é uma parte fundamental da cultura brasileira, e as trovas humorísticas abraçam essa característica, criando um espaço para a reflexão através do humor.

CONCLUSÃO

Essas trovas ressoam por sua capacidade de fazer o leitor rir, enquanto o convida a refletir sobre a condição humana. Elas são uma forma de humor popular que preserva tradições e, ao mesmo tempo, traz à tona questões contemporâneas, cada uma com seu próprio charme e sagacidade.

Essa conexão entre ironia e cultura enriquece a compreensão das trovas, tornando-as não apenas divertidas, mas também significativas dentro do contexto social e cultural do Brasil.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Arthur Thomaz (Travessia) conto e análise

 Nota do blog: Pequena análise sobre o conto, ao final.

Era o barqueiro responsável por pilotar uma embarcação que levava pessoas para o lado de lá. Diferente do que imaginavam, não se tratava de um santo ou um enviado dos deuses. Em volta do barco, estava escrito em letras garrafais: “Lá, você encontrará o inesperado, o imponderável e o inescrutável”.

Simultaneamente, era emitido um aviso sonoro, com a voz dos pais ou de pessoas mais velhas que haviam advertido essa criatura a não ir até o lado de lá.

No início de sua carreira, o gentil barqueiro tentara também persuadir os passageiros a não embarcar, mas com o passar do tempo, percebendo a inutilidade de tais conselhos, calou-se, mesmo se sentindo contrariado com isso, limitando-se a remar e remar, tentando entender o que levava essas pessoas a aventurar-se nessa vã tentativa.

Seres que deixavam para trás estáveis situações sociais, econômicas e amorosas para lançarem-se com poucas ou nenhuma ficha em um difícil jogo, em que o próprio futuro estava em risco.

Eram indivíduos heterogêneos que possuíam em comum somente a obstinação em chegar à margem de lá. Casais apaixonados, outros já nem tanto, adolescentes guiados apenas por falsos apelos nas redes sociais, mulheres e homens solitários e iludidos com o que acreditavam encontrar no outro lado.

Atletas em fim de carreira em busca de um time que os fizesse ouvir novamente os aplausos de torcedores, artistas em decadência à procura de um palco qualquer que lhes devolvesse o assédio antigo de fãs. Idosos inconformados, almejando retornar à mocidade, e jovens querendo uma precoce maturidade.

Tinham ainda velhas raposas políticas, sonhando com a vitória na próxima eleição, para apagar a última e desastrosa derrota nas urnas. Incompreendidos, querendo reconhecimento, e desajustados, tentando retomar o rumo perdido.

Mesmo sendo um rio caudaloso, cheio de correntezas e bancos de areia, o barqueiro dominava inteiramente a rota a seguir. Mas, às vezes, uma inesperada onda derrubava algum passageiro e o desespero deste em chegar ao outro lado era tanto, que o fazia nadar em direção à distante margem, sem pensar em retornar à embarcação, causando-lhe a morte.

Ao chegar e desembarcar os passageiros, o barqueiro aguardava pacientemente por horas o retorno de alguns deles. 

Infrutífera espera, nenhum jamais voltou.

Esta rotina ocorreu por décadas (cerca de três gerações de barqueiros), até que certo dia, a embarcação rompeu-se na colisão com um recém-formado banco de areia.

Nesse naufrágio, mais do que as vidas, perdeu-se também a inútil esperança dos desesperados mortais transformarem-se em algo superior aos seus limites, dádiva reservada somente aos deuses.

Por ironia do destino, o Olimpo situava-se do lado de lá, muito perto, mas invisível e inexpugnável.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
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Breve Análise do conto “Travessia”, 
por José Feldman

O conto de Arthur Thomaz, "Travessia", utiliza a figura do barqueiro como uma metáfora poderosa para a transição e a busca humana por significado.

O barqueiro, que deveria ser um guia, acaba se tornando um mero transportador, simbolizando a frustração das expectativas humanas. As promessas de um "lado de lá" repleto de esperanças contrastam com a dura realidade da travessia, evidenciando a futilidade de muitas aspirações.

A obstinação dos passageiros em buscar algo melhor, apesar dos avisos, revela a ironia da condição humana. A determinação em buscar o desconhecido, mesmo com a consciência do risco, reflete a natureza muitas vezes irracional das decisões humanas.

O barqueiro aguarda o retorno dos passageiros, mas nunca os vê voltar, simbolizando a ironia da esperança. A busca por algo maior muitas vezes resulta em desilusão, mostrando como as aspirações podem levar à perda.

A proximidade do Olimpo, invisível e inalcançável, intensifica a ironia. O que se busca está tão perto, mas é inatingível, destacando a tragédia da condição humana em sua incessante busca por um ideal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa reflete aspectos da cultura brasileira, como a busca contínua por melhores condições de vida e a esperança de transformação, mesmo em face de adversidades. A ironia serve como uma crítica sutil às promessas não cumpridas da sociedade, que frequentemente leva indivíduos a arriscarem tudo por um futuro incerto.

No fundo, "Travessia" é um convite à reflexão sobre as motivações humanas e as ironias da vida. Através da figura do barqueiro e de seus passageiros, Thomaz explora temas universais que ressoam profundamente na experiência humana, especialmente em um contexto cultural rico e complexo como o brasileiro.
Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos contos. Maringá/PR. IA Open.
 Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Recordando Velhas Canções (Velho realejo)


(Valsa, 1940)

Compositor: Custódio Mesquita/Sady Cabral

Naquele bairro afastado
Onde em criança vivias
A remoer melodias
De uma ternura sem par

Passava todas as tardes
Um realejo risonho
Passava como num sonho
Um realejo a cantar

Depois tu partiste
Ficou triste a rua deserta
Na tarde fria e calma
Ouço ainda o realejo tocar

Ficou a saudade
Comigo a morar
Tu cantas alegre e o realejo
Parece que chora com pena de ti

Ficou a saudade
Comigo a morar
Tu cantas alegre e o realejo
Parece que chora com pena de ti
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Saudade e Melancolia em 'Velho Realejo'
A música 'Velho Realejo', é uma obra que evoca sentimentos profundos de saudade e melancolia. A letra nos transporta para um bairro afastado, onde o eu lírico relembra sua infância e as melodias ternas que ouvia de um realejo. Esse instrumento musical, que passava todas as tardes, é descrito como risonho e capaz de transformar a realidade em um sonho, trazendo uma sensação de nostalgia e simplicidade.

A partida de uma pessoa querida é um ponto central na canção. A rua, que antes era animada pela presença dessa pessoa e pelo som do realejo, agora está deserta e triste. A ausência é sentida profundamente, e o realejo, que antes trazia alegria, agora parece chorar, refletindo a dor da perda. A música utiliza essa metáfora do realejo para expressar a dualidade entre a alegria do passado e a tristeza do presente, criando uma imagem poética e tocante.

Orlando Silva, conhecido como o 'Cantor das Multidões', era famoso por sua voz emotiva e interpretação apaixonada. 'Velho Realejo' é um exemplo perfeito de seu estilo, que combina lirismo e emoção para tocar o coração dos ouvintes. A canção fala sobre a permanência da saudade e como as memórias podem ser tanto uma fonte de consolo quanto de dor. A melodia do realejo, que antes era um símbolo de alegria, agora é um lembrete constante da ausência e da saudade que ficou. https://www.letras.mus.br/orlando-silva/125899/ 

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 22


 


Eduardo Martínez (Aurelino, o empertigado)

Era desagradável por natureza. Alguns não gostavam das gravatas que usava, outros implicavam com o sotaque carregado de erres. No entanto, todos não suportavam o seu modo de dizer as horas.

— 18 menos 5.

Empertigado que nem pavão, Aurelino desfilava soberba por onde passava. Ninguém se atrevia a dizer coisa que o desabonasse, mesmo que o vaidoso merecesse ser achincalhado. Era homem de posição, e prudência era necessária para não ser alvo de perseguição por tolice. Um biltre, é verdade. Todavia, biltre com o alforje repleto de poder. 

O traste empoderado, além da canalhice e da maneira de dizer as horas, era mais pontual que bexiga de velho durante as madrugadas frias. E ai de quem não estivesse pronto na hora marcada.

— Seu Jorge, amanhã passo aqui às 10 menos 15 para que você me apare o bigode.

— Não vai querer cortar o cabelo, doutor?

— Semana que vem.

O barbeiro, que era bom na tesoura, mas ruim em matemática, se desdobrava para descobrir a que horas o freguês iria aparecer. Por sorte, naquele dia, estava por ali o pequeno Juliano, menino afeito a contas. 

— 9h45!

— Tem certeza?

— Se duvida, por que o senhor não faz as contas?

Sem tutano para tanto, Jorge tratou logo de colocar a desconfiança de lado. Pegou o caderno de espiral debaixo do balcão e anotou o compromisso. 

No dia seguinte, na hora marcada, lá estava Aurelino para cortar as pontas do bigode. Cumprimentou o barbeiro, que ligeiro foi dar algumas espanadas na cadeira para o ilustre freguês se acomodar.

Corta daqui, corta dali, eis que, de repente, a cabeça do Aurelino tombou para o lado. O corpo seguiu caminho idêntico. 

Jorge, a princípio, imaginou que o mais ilustre cliente estaria lhe pregando uma peça. Que nada! O coração do homem havia cansado de bater exatamente às 10 menos 10.

Fonte: Blog do Menino Dudu. 18 agosto 2024.

Recordando Velhas Canções (Se eu morresse amanhã de manhã)


(Samba-Canção, 1953)

Compositor: Antônio Maria 

De que serve viver tantos anos sem amor
Se viver é juntar desenganos de amor
Se eu morresse amanhã de manhã
Não faria falta a ninguém
Eu seria um enterro qualquer
Sem saudade, sem luto também
Ninguém telefona, ninguém
Ninguém me procura, ninguém
Eu grito e um eco responde: "ninguém!"
Se eu morresse amanhã de manhã
Minha falta ninguém sentiria
Do que eu fui, do que eu fiz
Ninguém se lembraria
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A Solidão e a Efemeridade da Vida em 'Se Eu Morresse Amanhã De Manhã'

A música 'Se Eu Morresse Amanhã De Manhã', de Antônio Maria, é uma reflexão profunda sobre a solidão e a efemeridade da vida. A letra aborda a sensação de insignificância e a falta de conexão emocional com outras pessoas. O eu lírico questiona o valor de viver muitos anos sem amor, sugerindo que a vida sem afeto é repleta de desenganos e desilusões. Essa perspectiva melancólica é reforçada pela ideia de que sua morte não faria falta a ninguém, destacando um sentimento de invisibilidade e abandono.

Antônio Maria, conhecido por suas composições que frequentemente exploram temas de amor e tristeza, utiliza uma linguagem simples e direta para expressar a dor da solidão. A repetição da palavra 'ninguém' enfatiza a ausência de pessoas que se importem com o eu lírico, criando uma atmosfera de desespero e desamparo. A imagem de um enterro sem saudade ou luto também reforça a ideia de que sua existência não tem impacto significativo na vida de outras pessoas.

A música também pode ser vista como uma crítica à superficialidade das relações humanas e à falta de empatia na sociedade. O eu lírico sente que suas ações e sua presença não são valorizadas, o que leva a uma reflexão sobre o sentido da vida e a importância de se sentir amado e lembrado. A canção, portanto, não é apenas um lamento pessoal, mas também um convite à introspecção sobre como tratamos e valorizamos as pessoas ao nosso redor.                              https://www.letras.mus.br/antonio-maria/282880/ 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Daniel Maurício (Poética) 74

 

Lima Barreto (A chegada)

Quando o senador Bastos voltou de Poços de Caldas, onde esteve a espiar a maré dos acontecimentos e a ler pela décima segunda vez As democracias da América, de García Calderón — o evangelho da ditadura militar — e chegou à Cascadura, esperou que os seus amigos o fossem buscar acompanhados da banda de música da linha de tiro 69.

Tal, porém, não aconteceu e só o foi buscar o seu amado discípulo Anófeles que estudava com Sua Excelência, direito constitucional e a criação de galos de briga.

O senador disfarçou o aborrecimento e continuou a viagem olhando os subúrbios sem encanto, que a locomotiva atravessava.

Em dado momento, Anófeles, dirigiu a palavra ao mentor:

— Vossa Excelência certamente imaginava que outros admiradores o viessem buscar, não é verdade?

O discípulo sagaz dissera isto para realçar bem a sua dedicação ao antigo chefe poderoso.

Bastos empertigou-se melhor no banco e respondeu com aquela sua voz sacerdotal:

— Menino, quem é coerente com os princípios republicanos não se admira de levar coices.

Ele gostava muito dessas coisas de cavalos e sempre que podia fazia comparações e metáforas com os fatos que lhes dizem respeito.

— Como devemos entender esses princípios republicanos?

Bastos tossiu, acendeu o cigarro de palha mais uma vez e explicou:

— Primeiro: devemos entendê-los como sendo eu chefe absoluto do país, tal e qual o czar da Rússia; segundo: considerando que somos no Brasil um único povo, um estado tem o direito de reter cereais de que não precisa, para esfomear os outros; terceiro: para favorecer a liberdade, temos a obrigação de decretar um estado de sítio permanente; quarto (e este é o mais importante dos itens): as eleições ou a escolha dos representantes da nação não devem ser feitas pelo povo, mas por uma camarilha que vela como muezins na catedral gótica da República. Podia dizer mais; creio, porém, que isto basta.

O trem chegava à gare da Central e Bastos foi ultimar a sua toalete de desembarque. Quando voltou e olhou pela portinhola, viu que só o esperavam duas dúzias de correligionários.

Pode ainda dizer a Anófeles:

— Antes fosse como em Cartago, meu caro Anófeles. Lá, ao menos, se enforcavam os generais derrotados.

E não pôde olhar o céu, porque a abóbada de zinco da estação escondia-o dos seus olhos.

Fonte: Lima Barreto. Marginália.  Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.

Carolina Ramos, Princesa dos Trovadores (Trovas em preto e branco)

 


1
Alforriada, ela passa
gingando frente ao feitor
e o dengo de sua raça
faz dele escravo do amor!
2
Bendigo o dom da poesia:
- num mundo de tais perigos,
deu-me a serena alegria
de achar um mundo de amigos!
3
Como pode haver poesia
nos rumos da humanidade,
se tarda tanto esse dia
da paz ser PAZ de verdade?
4
Ele chega de mansinho,
velho cão ressabiado...
mas, se conquista um carinho,
nos dá carinho dobrado!
5
Filho, a montanha da vida,
escala devagarinho,
que há muita flor escondida
entre as pedras do caminho!
6
Há contraste em nossas vidas
mas, perfeito é o desempenho:
luz e sombra, quando unidas,
dão força e vida ao desenho…
7
Liberdade de calar
todos têm, mas, cuida, pois,
ser livre é poder falar
e seguir livre depois!
8
Mente com tal propriedade,
que ao mentir jamais hesita
e quando diz a verdade,
nem ele mesmo acredita.
9
Na vida, quanta maldade
não punida, se repete!
E, em nome da liberdade,
quantos crimes se comete!
10
O mundo é paisagem triste,
chora o rico e o pobre chora...
- Meu Deus, se a ventura existe,
onde será que ela mora?!
11
Pobre pássaro!... é de crer
que a prisão não mais suporta
- e vale a pena viver
se a liberdade está morta?!
12
Ser mau é fácil... insiste
em ser bom, sempre a lembrar:
- bondade, às vezes, consiste
em ver, ouvir... e calar!…
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SOBRE AS TROVAS DE CAROLINA
por José Feldman

As trovas de Carolina Ramos mostram temas profundos como amor, liberdade, e a dualidade da vida. Cada uma revela questões sociais e emocionais que levam à reflexão. A seguir observações sobre elas:

Amor e escravidão: a primeira mostra como o amor pode transformar as relações, fazendo com que uma pessoa fique vulnerável ao outro. Essa dinâmica é comum em relacionamentos, onde um se torna "escravo" do sentimento.

Poesia e amizade: A segunda trova destaca a poesia como base de amizade e alegria em tempos difíceis. A arte serve como um escape e uma forma de conexão entre as pessoas.

Busca pela paz: A terceira é um tom de desespero na busca pela paz verdadeira, mostrando uma realidade onde a harmonia parece distante.

Carinho e afeto: Na quarta, o carinho é mostrado como um caminho para o afeto mútuo, mostrando a importância das relações humanas.

A vida como um caminho: A quinta destaca a importância de apreciar as pequenas coisas da vida. A jornada da vida, sugerindo que, apesar dos desafios (as "pedras"), sempre há beleza (as "flores") a ser descoberta.

Luz e sombra: A sexta é sobre a harmonia entre opostos. A luz e sombra não são opostos, mas complementos que dão vida e profundidade à experiência humana.

Liberdade de expressão: Na sétima Carolina discute a liberdade de expressão, lembrando que ser livre também implica responsabilidade nas palavras e ações.

A verdade e a mentira: A oitava mostra a complexidade da verdade e da mentira, revelando como as pessoas podem se perder em suas próprias narrativas.

Maldade e liberdade: A nona conecta a liberdade à repetição de injustiças.

Tristeza universal: A décima mostra a dor compartilhada entre diferentes classes sociais.

A nona e a décima abordam a dor e a injustiça no mundo, questionando a verdadeira natureza da felicidade em uma sociedade marcada por desigualdades.

Liberdade do ser: A décima primeira provoca uma reflexão sobre o valor da vida sem liberdade, um tema central em muitas discussões sobre direitos humanos.

Bondade silenciosa: A última sugere que a bondade pode ser sutil, destacando a importância de saber quando ouvir e quando falar, um aspecto muitas vezes negligenciado nas interações sociais.

Essas trovas são um convite à reflexão sobre a condição humana e as contradições da vida.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Recordando Velhas Canções (Nega do cabelo duro)


(batucada/carnaval, 1942)

Compositores: David Nasser e Rubens Soares

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Ondulado, permanente
Teu cabelo é de sereia
E a pergunta sai da gente
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Quando tu entras na roda
O teu corpo bamboleia
Teu cabelo esta na moda
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Teu cabelo, a couve-flor
Tem um quê que me tonteia
Minha nêga, meu amor
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Mise en plis à ferro e fogo
Não desmancha nem na areia
Tomas banho em Botafogo
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
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A Celebração da Beleza Negra em 'Nega do Cabelo Duro'
A música 'Nega do Cabelo Duro', é uma celebração da beleza e da singularidade dos cabelos crespos e cacheados. A repetição da pergunta 'Qual é o pente que te penteia?' destaca a curiosidade e a admiração pela forma como a mulher negra cuida de seu cabelo, que é descrito de maneira poética e carinhosa ao longo da canção.

A letra faz uso de metáforas e comparações para exaltar a beleza natural dos cabelos crespos, como quando menciona que o cabelo é 'de sereia' ou 'a couve-flor'. Essas imagens reforçam a ideia de que o cabelo crespo é algo especial e digno de admiração. Além disso, a música também aborda a resistência e a durabilidade dos penteados, sugerindo que, mesmo em condições adversas, o cabelo permanece impecável, o que pode ser interpretado como uma metáfora para a resiliência da mulher negra.

Culturalmente, 'Nega do Cabelo Duro' reflete um período em que a música popular brasileira começava a reconhecer e valorizar a diversidade étnica e cultural do país. O grupo Anjos do Inferno, conhecido por seu estilo alegre e dançante, contribuiu para essa valorização através de suas canções. A música, portanto, não apenas celebra a beleza física, mas também a identidade e a cultura afro-brasileira, promovendo um senso de orgulho e pertencimento.

Apresentando semelhanças com a melodia do velho samba de Sinhô, "Não Quero Saber Mais Dela", a batucada "Nega do Cabelo Duro" foi um dos destaques do carnaval de 42, nas vozes dos Anjos do Inferno.

Numa época em que ninguém se preocupava em ser ou não ser politicamente correto, a composição satirizava o cabelo da personagem ("Nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia?...") e a moda feminina, então no auge, de frisar os cabelos ("Misampli a ferro e fogo / não desmancha nem na areia..."), a chamada ondulação permanente. Aliás, os temas capilares predominaram no carnaval de 42, pois, além de "Nega do Cabelo Duro", fizeram sucesso as marchinhas "Nós, os carecas" e "Nós os Cabeleiras".

Fontes:
A Canção no Tempo - Vol. 1 - Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello - Editora 34.