domingo, 8 de setembro de 2024

Coelho Neto (A direção do balão)

Craveiro, da extinta e florida firma de Craveiro & Rosas (chá, cera, rapé e sementes) era homem de muita carne, de bom sangue, católico e conservador. O pai, além de haver sido um dos esteios do partido, fora na mocidade, conservador de um museu, onde diziam as más línguas, ele encontrara a excelente senhora D. Brígida, modelo de honestidade e de magreza — o que lhe sobrava em virtude escasseava em carnes. 

Até os vinte anos Craveiro Júnior, que nascera franzino, foi um mocinho amarelo e magro, muito sujeito a bronquites e a cólicas, sempre a tossir e a gemer pela casa, recatado e mole. A mãe atirava-lhe para os ombros derreados todas as lãs que encontrava, o pai obrigava-o a trazer baetas sobre a pele e D. Serafina, todas as noites, fazia-lhe uma gemada substancial com canela e cravo e punha- lhe aos pés, sob as cobertas, duas botijas com água a ferver, tanto que uma vez, estando Craveiro a dormir quando a solícita senhora lhe chegou às plantas o aquecedor, o rapaz, num assombro, saltou da cama berrando que descera ao inferno, como Orfeu, e pôs-se a esfregar os pés, agarrando ferozmente, mostrando bolhas que lhe haviam feito os ardentes ladrilhos do reino de Belzebu. Apesar de todos os cuidados Craveiro continuava a amarelecer e a definhar, sempre a tossir, mastigando pastilhas, engolindo xarope. 

Não era bonito, tinha sardas e cravos (não fosse ele Craveiro), os cabelos eram negros mas raros e a fronte ia lhe alargando com a idade, o que maravilhava o velho que, ao contemplar a vastidão daquela testa, lisa e cor de marfim que ia subindo a pique, dizia com enlevo e orgulho — que era o talento, o fogo vivo do gênio que esturrava a raiz do cabelo como as chamas, em agosto, lavrando por um cerro, consomem até às raízes as plantas que o vestem. 

Apesar da profecia do velho, o apregoado talento do rapaz era difícil, e só escorria num fio escasso, em dias de festa doméstica, arriscando à mesa um brinde trêmulo. Quando se falou em mandar Craveiro aos estudos, D. Brígida opôs-se aterrorizada aconchegando o filho aos ossos do peito: 

— Medicina, Brígida; aventurou pacatamente o velho. 

— Deus me livre! O quê? Para o pobre menino ter de estudar em defuntos e passar toda a vida à cabeceira de doentes com risco de apanhar alguma coisa!? Deus me livre! 

— Bem... engenharia, então. 

— Que engenharia, homem! Você parece maluco: para um dia cair de uma ponte ou ficar debaixo de um túnel... 

— Então... direito. 

— Nada! pode, como promotor, acusar um sujeito de maus bofes que mais tarde, queira se vingar... 

— Então, filha, só o seminário; vamos metê-lo no seminário. 

D. Brígida sorriu desvanecida, mas veio logo um suspiro contrariar o prazer: 

— Sim, padre, isso era outra coisa, mas... e os jejuns? Ele podia lá com os apertados jejuns!? Não. Olha, queres a minha opinião? Mete-o no comércio, dá-lhe sociedade na loja. Ele que venda chá, dizem que o chá ataca os nervos, mas é história, o chá é inofensivo, a cera é grata ao Senhor e as sementes são a riqueza da terra. 

— E o rapé? E as lanternas? E os fogos? 

— É verdade... Mas seu Rosas pode encarregar-se dessas coisas. Divida-se a casa em duas seções: uma para o pequeno, outra para seu Rosas. 

E assim se fez. Craveiro encarregou-se da 1ª seção e o Rosas lá foi para a dos explosivos e dos esternutatórios (que provocam espirros). 

Nos primeiros tempos a vida foi uma maçada tediosa para o mancebo. O dia todo ao balcão ou no escritório a vender círios, barrigas, pernas, chá verde, chá preto, chá padre, abóboras e fúcsias, pouco a pouco, porém, habituando-se, Craveiro deu em pandear — aos vinte e cinco anos era todo ele uma só imensa barriga — foi necessário alargar a porta do escritório para que o homem passasse. A mãe, alvoroçada, exigiu um exame médico e a ciência em lenta e minuciosa análise achou apenas toucinho. Foi uma alegria em casa. 

Um dia chovia a jorros, Craveiro bocejava no escritório com a fronte lisa sobre a mão, quando duas senhoras, acossadas pelo aguaceiro, entraram precipitadamente na loja. Era no tempo dos balões tufados, aí pelos fins da guerra. A que parecia mais velha trazia um balão de pequeno diâmetro, a outra, porém, com as goteiras que pingavam da saia, fez na casa um círculo maior que a roda maciça de um carro de bois. 

Era uma criaturinha viva, de um moreno quente e aveludado, olhos mais negros que jabuticabas maduras e com uma pequenina boca que era mesmo um botão de rosa. O colo era alto e arfava, as mãos eram finas e arrebatavam o mantelete (capa curta usada por mulheres) com um brilho rico de anéis. 

Craveiro, vendo-a, sentiu um tumulto no coração amadurecido para o amor e como as duas senhoras se conservassem de pé examinando plantas, ele compreendeu com muita sutileza que elas não queriam saber de dálias, nem de azaleias, senão de um pouco de agasalho até que a chuva estiasse, e ofereceu cadeiras. Agradeceram e sentaram-se. A mais velha acomodou o balão, a mais nova, porém, por mais que batesse, por mais que aconchegasse, não conseguiu submeter os arcos rebeldes da crinolina que ficou rebeldemente empinada e enfunada expondo à curiosidade lúbrica de Craveiro os pequeninos pés da linda morena e um palmo de meias cor de rosa que eram uma tentação, ou melhor duas tentações. 

Craveiro perdeu a cabeça e de olhos gulosamente abaixados, admirava, os caixeiros ouviam-lhe os roncos e viam-lhe o fogo das pupilas incendiadas. Felizmente chovia e os fogos lá estavam na seção pirotécnica do Rosas. Por fim a chuva serenou e as duas senhoras, com muitos sorrisos e agradecimentos saíram. 

Craveiro não se conteve, tomou, à pressa o casaco e abalou, a largas pernadas, chapinhando nas poças, escorregando no lodo, a ver a direção que tomavam os balões. 

Oh! Aquela morena! Aquelas meias cor de rosa!... Via-a ao longe, muito tufada no grande balão que bamboleava, via-a e forcejava por alcançá-la... Mas a barriga! Aquela barriga... 

Num cruzamento de ruas perdeu de vista a linda criatura. Ficou a olhar pasmado: onde se teria metido? Pôs-se a rondar o ponto em que se sumira a beleza, a olhar as casas, a tossir, a pigarrear... e nada! E ali esteve até tarde. Já escurecia quando, com o desespero na alma, o desventurado resolveu voltar ao negócio mas, ai dele! Já não era o mesmo homem calmo, sisudo, despreocupado — tornou-se frenético, deu em berrar com os caixeiros, em atirar murros à secretária e, em casa à noite, cercava-se de papéis e punha-se a riscar, a calcular e ia até à madrugada, às vezes, naquela lida, suspirando e bufando. 

O pai interpelou-o uma noite sobre aquelas vigílias que lhe comprometiam a saúde e Craveiro, sem tirar os olhos do papel respondeu secamente: “estou vendo se descubro uma coisa...”. 

De sorte que o velho, quando D. Brígida suspirava atribulada com tantas noites em claro e trabalhosas, dizia-lhe com uma ponta de orgulho: “deixa lá o rapaz, está com a sua descoberta... Eu, quando te dizia que ele devia estudar para engenheiro, tinha as minhas razões”. E Craveiro, sobre um complicado desenho que representava o cruzamento das ruas, colocava dois feijões pretos e um feijão cavalo — os feijões pretos representavam as duas aerostáticas senhoras, o feijão cavalo era ele e tanto mexia com os tais feijões que perdia a calma e acabava a pesquisa atirando formidáveis murros à mesa e, já deitado, esmagando os travesseiros, lançava ainda exclamações que atroavam a casa: “eu hei de descobrir, custe o que custar. Eu hei de descobrir”. E tanto insistiu na famosa descoberta que, um dia, foi postar-se no tal cruzamento, perguntando a todos que passavam: “o senhor (ou a senhora) não viu por aqui um balão com umas meias cor de rosa? Não sabe que direção tomou?” 

Arrancaram-no dali, à noite — estava louco. 

Os pais quiseram conservá-lo em casa, mas Craveiro berrava com tal furor que a vizinhança, alarmada, recorreu à polícia e o infeliz foi internado em um hospício. O Rosas passou a dirigir as duas seções, D. Brígida finou-se ralada de tristezas, o velho seguiu-a pouco depois, e Craveiro lá ficou no hospício calculando e engordando até que as banhas o prostraram a um canto do cubículo, pesado e inerte. 

Com os anos, porém, foi lhe desvanecendo a mania e os médicos pensavam em dar-lhe alta e teríamos cá fora o estupendo corpanzil do antigo negociante se um incidente não o comprometesse. O médico passava a visita quando, justamente diante de Craveiro, voltou-se para o farmacêutico que o acompanhava: 

— Então, hein? Temos o balão. 

Craveiro estremeceu e arregalou os olhos, maravilhado. 

— Parece que sim, doutor. 

— Onde? Bradou o louco, num rugido. 

— Onde? Em Paris. 

— Em Paris?! Um balão? Com umas meias cor de rosa? 

— Como? 

— Sim, senhor: meias cor de rosa... Acharam sempre, hein? 

— Acharam; e foi um patrício nosso, mas... que história é essa de meias cor de rosa? 

Craveiro teve um sorriso malicioso e, afagando a papada, murmurou: “É cá uma coisa, doutor. Se eu, naquele dia, tivesse descoberto a direção... Ah! Não lhe conto nada...” 

— Que direção? 

— A direção que tomou o balão; eram dois... 

— Um do Severo, disse o farmacêutico. 

— Qual Severo! Um era de uma senhora magra, já idosa, a mãe, creio. Mas o das meias!... 

— Que meias? 

— Que meias, hein? Que meias? 

Pôs-se a ranger os dentes, fechou ameaçadoramente os punhos e... foi metido em camisola de força. E agora a fúria é contra o médico porque entende o infeliz que foi ele (pobre Dr. Brochado!) quem descobriu o balão ou antes — a direção que tomou a dama que o vestia. 

E lá está.

Fonte: Olavo Bilac & Coelho Neto. Contos Pátrios. RJ: Francisco Alves, 1931. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (História do Brasil)


(Marcha/Carnaval, 1934)
Compositor: Lamartine Babo

Quem foi que inventou o Brasil? 
Foi seu Cabral!
Foi seu Cabral!

No dia vinte e um de abril
Dois meses depois do carnaval
Depois
Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som...
Ao som do Guarani!

Do Guarani ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o Paraty

Depois
Ceci virou Iaiá
Peri virou Ioiô

De lá...
Pra cá tudo mudou!
Passou-se o tempo da vovó
Quem manda é a Severa
E o cavalo Mossoró
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Carnaval Histórico: Uma Viagem Musical pela História do Brasil

A música "História do Brasil" de Lamartine Babo, é uma peça vibrante que mistura elementos de humor e crítica social, característicos das marchinhas de carnaval. A letra inicia com uma pergunta retórica sobre quem inventou o Brasil, respondida de forma jocosa atribuindo a descoberta ao navegador português Pedro Álvares Cabral, marcando ironicamente a chegada dos portugueses como o 'invento' do Brasil.

A canção segue fazendo referências a elementos culturais e históricos brasileiros de forma leve e divertida. Ceci e Peri, personagens do romance indianista "O Guarani" de José de Alencar, são usados para simbolizar o encontro de culturas, transformando-se em figuras carnavalescas Iaiá e Ioiô, representando a miscigenação do povo brasileiro. A menção ao guaraná e à feijoada, elementos típicos da culinária brasileira, e ao Paraty, uma referência ao famoso destilado, reforça a identidade nacional construída a partir de uma mistura de influências.

Por fim, a música menciona a mudança dos tempos, onde 'quem manda é a Severa e o cavalo Mossoró', possivelmente uma crítica à modernização e às novas figuras de poder no Brasil, contrastando com a simplicidade dos tempos antigos. Essa marchinha não só entretém, mas também provoca reflexão sobre a história e cultura brasileira, utilizando o carnaval como pano de fundo para uma crítica social sutil e bem-humorada.

sábado, 7 de setembro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 24

 

Nemésio Prata (Trovas em preto e branco)


1
Ao ver a imagem singela
do barco, tranquilo, ao mar,
lembrei-me: não há procela
que Deus não possa acalmar!
2
Bom Humor em injeção 
comprimidos, ou xarope, 
é a melhor prescrição 
para tristeza a galope!
3
Correndo, desesperado,
de mala e chapéu na mão,
o passageiro, coitado,
perdeu o trem... e a razão!
4
Ensinar é dom sublime
que requer saber e amor;
o que muito bem exprime
a lide do Professor!
5
Homem, mau, vil e perverso;
toda vez que tu desmatas,
mesmo em nome do progresso,
é a ti mesmo que tu matas!
6
Na mata o machado bate
forte pra tirar "madeira";
e assim o "homem" abate,
uma a uma, a mata inteira!
7
Olhando com bem clareza
pras marcas do seu herdeiro,
já não tem tanta certeza
de ser o pai verdadeiro!
8
Por aqui passava um rio
caudaloso e pleno em vida;
hoje mal se vê um fio
d'água suja e poluída!
9
Se a lua inspira o Poeta...
também o faz o arrebol;
venturoso é para o esteta
ter os dois por seu farol!
10
Seja-lhe a vida a favor,
ou o seu viver adverso,
regala-se o Trovador
na lide de fazer verso!
11
- Solta-me! Clama o navio
ao cais que o faz prisioneiro;
- deixa-me sair vadio
pelo mar... que é meu parceiro!
12
Tem quem só quer receber
para si o que é melhor,
porém ao aparecer
chance pra dar: dá o pior!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

AS TROVAS DE NEMÉSIO EM PRETO E BRANCO
por José Feldman


AS TROVAS UMA A UMA

1. Acalmando as Tempestades
Esta trova reflete a ideia de que, mesmo diante das adversidades (as tempestades da vida), a fé em Deus pode proporcionar tranquilidade. O barco representa a jornada da vida, enquanto a presença divina sugere proteção e esperança.

2. O Poder do Bom Humor
O humor é apresentado como um remédio poderoso contra a tristeza. A metáfora dos "comprimidos" e "xarope" sugere que, assim como medicamentos, o bom humor é essencial para a saúde mental, enfatizando a importância de uma atitude positiva.

3. Desespero e Oportunidade Perdida
Aqui, o passageiro simboliza aqueles que, na pressa da vida, perdem oportunidades valiosas. A "mala e chapéu" indicam a carga emocional e as responsabilidades que ele carrega, e a perda do trem é uma metáfora para a perda de controle e direção na vida.

4. A Nobreza do Ensino
A figura do professor é exaltada como alguém que, além de transmitir conhecimento, deve ter amor pela educação. A expressão "dom sublime" destaca que ensinar é uma vocação que envolve dedicação e compromisso com o futuro.

5. A Destruição da Natureza
Esta trova critica a degradação ambiental, alertando que a exploração desenfreada dos recursos naturais traz consequências. A ideia de que "é a ti mesmo que tu matas" sugere uma reflexão sobre o impacto das ações humanas sobre si mesmos e as futuras gerações.

6. O Machado e a Mata
Com uma abordagem similar à anterior, aqui Nemésio usa a imagem do machado como símbolo da destruição. A repetição da palavra "abate" enfatiza a continuidade da devastação, mostrando um ciclo de morte que se perpetua por ações humanas.

7. Dúvidas de Paternidade
Esta trova de forma humorística aborda a insegurança nas relações familiares. O "herdeiro" e a "certeza" contrastam, refletindo sobre a complexidade das relações humanas e as dúvidas que podem surgir em laços familiares, questionando a identidade e a paternidade.

8. O Rio Poluído
A transformação do rio de "caudaloso" a "fio d'água suja" é uma poderosa metáfora para a degradação ambiental. Essa imagem expressa a perda da pureza e vitalidade do meio ambiente, um lamento sobre o impacto humano na natureza.

9. Inspiração Poética
A trova destaca a dualidade entre a lua e o arrebol como fontes de inspiração. Isso sugere que a beleza pode ser encontrada em diferentes formas e momentos, e que o artista deve estar atento a essas fontes para criar.

10. Alegria na Criação
Independente das circunstâncias, a figura do Trovador expressa que a criação poética é uma fonte de alegria. A palavra "regala-se" indica que a arte é um refúgio e uma forma de expressão que traz satisfação.

11. Clamor por Liberdade
O navio clamando ao cais representa o desejo de liberdade e exploração. Essa metáfora reflete o espírito aventureiro e a luta contra as amarras que prendem, simbolizando a busca por autonomia e novas experiências.

12. Egoísmo e Generosidade
Esta trova critica a natureza egoísta de algumas pessoas, que se aproveitam das oportunidades sem considerar os outros. A dicotomia entre "receber" e "dar" ressalta a falta de altruísmo e a necessidade de uma reflexão ética sobre as ações humanas.

TEMAS ABORDADOS PELAS TROVAS DE NEMÉSIO E SUA SIMILARIDADE COM POETAS DE DIVERSAS ÉPOCAS

1. Natureza e Degradação Ambiental
Nemésio em várias trovas critica a exploração desenfreada dos recursos naturais, alertando para as consequências de uma relação desequilibrada entre o ser humano e o meio ambiente. Essa preocupação é cada vez mais relevante no contexto atual, onde a urgência das questões ecológicas se torna inegável. Essa temática é comum na literatura, desde poetas românticos como William Wordsworth, que exaltava a beleza natural, até contemporâneos como Adélia Prado, que também aborda a relação do ser humano com a natureza de forma crítica.

2. A Condição Humana e a Busca por Identidade
A exploração da paternidade e das incertezas nas relações familiares revela uma busca profunda por identidade e pertencimento. A dúvida e a insegurança são sentimentos universais que ressoam com a experiência humana, conectando a poetas que também exploraram a complexidade das relações. Essa preocupação é encontrada em obras de Fernando Pessoa, que explorou a fragmentação do eu, e em poetas contemporâneos como Marianne Moore, que também refletiu sobre a complexidade das relações interpessoais.

3. O Papel do Professor e a Educação
A valorização do ensino como um ato de amor e dedicação destaca a importância da educação na formação do indivíduo e da sociedade. Nemésio se une a uma longa tradição de poetas que reconhecem a nobreza e o impacto do educador na vida das pessoas. A exaltação do professor como figura essencial na formação humana ecoa o pensamento de poetas como Cecília Meireles, que valorizava a educação e o saber.

4. Humor e Alegria como Remédios
A capacidade de encontrar alegria e leveza em meio às adversidades evidencia uma resiliência humana notável. O humor, apresentado como um remédio, reflete uma estratégia vital para enfrentar os desafios da vida. Esta ideia de que o humor pode curar a tristeza se alinha com a obra de poetas como Mário Quintana, que frequentemente usou a leveza e o humor como formas de enfrentar as dificuldades da vida. Ambos os poetas promovem uma visão positiva, ressaltando a importância da alegria.

5. Liberdade e Autonomia
O desejo de liberdade, simbolizado pelo clamor do navio, encapsula a luta intrínseca do ser humano por autonomia e exploração. Essa busca é um tema constante na literatura e ressoa com o espírito aventureiro presente em diversos poetas, desde Alfred Lord Tennyson, que abordou a busca por liberdade e aventura, até poetas contemporâneos que lutam contra as limitações sociais. Nemésio se junta a essa tradição ao expressar o anseio por explorar o mundo.

6. Egoísmo e Generosidade
A crítica ao comportamento egoísta e a promoção da generosidade revelam uma preocupação ética que é fundamental para a coexistência social. A reflexão sobre a moralidade das ações humanas é um convite à introspecção e à mudança. Poetas como Vinicius de Moraes exploraram a complexidade das relações humanas e a importância da generosidade. Nemésio, ao abordar essa dualidade, reflete uma preocupação ética que ressoa com a tradição poética.

Poetas românticos como Gonçalves Dias e Alphonsus de Guimaraens também exploraram a natureza e as emoções humanas. A busca por identidade e a crítica social em poetas modernistas, como Carlos Drummond de Andrade, mostram similaridades com a abordagem nas trovas, que também questiona valores e realidades contemporâneas. Poetas contemporâneos como Marcelino Freire e Juliana Gomes abordam a identidade e as relações sociais de forma incisiva, refletindo preocupações semelhantes às de Prata em um contexto atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As trovas de Nemésio Prata compõem uma teia de temas que refletem a complexidade da condição humana e a interação do ser humano com o mundo ao seu redor. Ao longo de suas trovas, aborda questões essenciais como a natureza, a degradação ambiental, a busca por identidade, a importância da educação, o poder do humor e a dualidade entre egoísmo e generosidade.

Em suma, as trovas de Nemésio Prata não apenas capturam a essência da experiência humana, mas também convidam à reflexão sobre questões que permeiam a sociedade contemporânea. Seu estilo poético, que combina musicalidade e profundidade, permite que suas mensagens ressoem através do tempo, estabelecendo um diálogo com poetas de diferentes épocas e tradições. As suas trovas são um testemunho da capacidade da poesia de tocar a alma humana, oferecendo consolo, reflexão e, acima de tudo, uma conexão com o que significa ser humano.

A combinação de leveza e profundidade é uma das características que tornam suas trovas tão impactantes. Consegue, com elas, evocar emoções complexas e instigar reflexões sobre temas que permanecem relevantes. Essa habilidade de sintetizar sentimentos e ideias em formas simples é um testemunho de sua verve poética.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Luís da Câmara Cascudo (A Princesa do Sono Sem Fim)

Havia um reinado em que a rainha velha tinha a sina de correr de lobisomem, matando gente para beber o sangue. O príncipe seu filho era um moço sem tacha, bom e valente, e vivia triste com o destino da mãe. Sua distração era ir conversar com um velho, muito velhinho, que morava fora da cidade, perto de uma floresta sombria, na qual ninguém ia caçar nem passear.

O velhinho armava uma rede no alpendre para o príncipe descansar e este passava horas e horas ouvindo as histórias do tempo antigo, esquecendo-se da rainha velha e da sua doença de beber sangue de gente.

Vez por outra, quando o vento passava mais forte e levantava os galhos do arvoredo, o príncipe enxergava, lá ao longe, uma pequena mancha vermelha, parecendo um telhado de casa.

Um dia ele perguntou ao velhinho que telhado ao longe era aquele. O velho, então, contou:

– Aquilo é um palácio encantado, príncipe meu senhor. Meu avô contou a meu pai e este contou a mim que, há cem anos, está ali dormindo uma princesa, com todos os seus criados, pajens e mordomos, por via de umas fadas. No reinado Fulano, o rei e a rainha, nesse tempo, não tinham filhos e só faltavam morrer de vontade. Apresentou-se a rainha grávida e descansou uma menina bonita como o sol. Todo o dia era uma festa no palácio. Para o batizado o rei convidou todas as fadas que existiam por perto do reinado. Só não convidou a fada mais velha porque ninguém sabia da morada dela e julgavam que tivesse morrido.

As fadas vieram todas e já estava na mesa do banquete quando a fada velha apareceu resmungando e dando de corpo como uma condenada. A fada mais moça botou reparo na zanga da fada velha e mais do que depressa escapuliu-se da mesa e se escondeu sem que ninguém notasse sua falta. Depois do banquete as fadas foram fadar, dando as sinas e os dons. Cada uma dizia a coisa mais bonita.

– Eu te fado que sejas linda como a luz do sol.

Outra dizia por aqui assim:

– Eu te fado que sejas boa como o amor de mãe. Eu te fado que sejas rica como um tesouro. Eu te fado com a ciência de Salomão. E assim foram dizendo, e o rei, todo satisfeito, ao lado da rainha que tinha a princesinha nos braços. No fim, a fada velha se levantou, com a fala grossa, e disse:

– Nem vale a pena tanta sina boa para essa menina. Ela será tudo isto mas durante pouco tempo. Quando se puser moça, irá visitar a quinta do seu pai e aí furará a palma da mão com um fuso de fiar algodão e morrerá logo, sem remédio nem jeito.

As fadas, que já tinham fadado e não podiam desmanchar o que a fada velha tinha feito, choravam, quando a fada mais moça saiu de trás de uma cortina e disse:

– Não posso desmanchar o que foi fadado porque não tenho poderes mas, como ainda não fadei, fado esta menina para que, quando o fuso lhe ferir a palma da mão, não morra, mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um príncipe, case e seja feliz.

Acabou-se a festa e o rei proibiu, sob pena de morte, que alguém fiasse com o fuso no seu reinado. Apesar de todo cuidado, quando a princesinha inteirou os quinze anos, foram todos visitar outro palácio que o rei possuía dentro de umas matas mais bonitas do mundo. A menina andava, para cima e para baixo, corrigindo tudo, e, lá num quarto esconso da casa, encontrou uma velha ama que estava fiando. Pediu logo para ver o que era e desejou imitar. Assim que pegou no fuso, este saltou e varou sua mão.

Nem marejou sangue mas a princesinha caiu para trás, como morta.

Correram todos e deitaram a menina numa cama, num quarto preparado de um tudo, espelhando de bonito. A fada moça veio voando e bateu a varinha de condão na cumeeira do palácio. Todo mundo que estava dentro, tirando o rei e a rainha, pegou no sono profundo. Os músicos ficaram com os instrumentos na boca e a mesma cozinheira agarrou a dormir com a mão segurando uma galinha que estava assando no fogo.

O rei e a rainha, como aquilo era sina permitida por Deus, beijaram a filha, abençoaram e foram embora, com a fada, para o reinado. Por lá morreram e o reinado deles acabou-se. Só ficou o palácio dentro do arvoredo, com a princesa dormindo o sono sem fim. Era o que meu avô contava a meu pai e este me contou quando eu era menino.

O príncipe ficou alvoroçado com a história que o velho contou e não dormiu pensando na princesa encantada. Pela manhã pegou um facão bem afiado e tocou-se para a mata, perto da casinha do velho. Chegou e meteu o facão, abrindo uma picada, porque era tudo fechado, fechado. Ia abrindo e entrando, e, assim trabalhando, foi andando, até que deu numa roda de árvores enormes e no meio estava o palácio coberto de cipós, sem nenhum rumor, parecendo morto. O príncipe entrou pela porta principal e foi vendo soldados, músicos, damas e senhores, até cozinheiras e meninos, até os bichos, tudo parado, dormindo a sono solto.

Depois de subir as escadas e passar as salas cheias de gente roncando, viu deitada numa cama, forrada de seda, a moça mais bonita que a terra havia de comer, profundamente adormecida. O príncipe chegou para perto e pegou na mão da princesa e esta logo abriu os olhos, dizendo:

– Oh príncipe! Como demoraste em vir!...

O palácio estremeceu e todo mundo acordou. O príncipe ouviu as cornetas tocando, bichos berrando, as pisadas dos soldados, gritos, a música, enfim o barulho de gente viva.

Veio um mordomo muito bem-vestido anunciar que o jantar estava na mesa e o príncipe comeu a galinha que estava sendo assada há cem anos.

Ficou aí como num céu aberto. Veio o padre e casou os dois sem perder tempo. Os dias voavam e a princesa era feliz. O príncipe, sabendo a mãe que tinha, ia ao palácio dar ordens e voltava, dizendo que estava caçando. Não queria que ninguém o acompanhasse. 

No fim de um ano a princesa teve um filho lindo que se chamou Belo-Dia; e no outro ano nasceu uma menina, batizada por Bela-Aurora. 

Apareceram umas guerras e o príncipe não podia deixar de ir com as tropas. Como não queria deixar a mulher e os filhos naquele ermo, resolveu levar todos para casa. Foi na frente e contou o que se passara a sua mãe. A rainha velha só fazia pigarrear, com a cara fechada como o rei Herodes, imaginando coisas ruins.

Antes de ir embora, o príncipe dividiu o palácio em duas partes. A rainha velha ficaria num canto e a mulher com os filhos noutro, todos com criados e conforto. Chamou o príncipe ao mordomo que era muito seu amigo, de toda confiança, e pediu que vigiasse a família e tivesse cuidado com a rainha velha.

Assim que o príncipe montou a cavalo e viajou, a rainha velha começou a ter vontade de beber sangue e comer carne humana. Ficou mesmo bruta e, não podendo passar o desejo, chamou o mordomo e mandou que lhe servisse Belo-Dia, com bom molho, no almoço do dia seguinte.

O mordomo só faltou morrer. Pensou, pensou, procurou a princesa, contou tudo, levou Belo-Dia para sua casinha, longe do palácio e escondeu-o. 

Na manhã  do outro dia matou uma lebre, guisou-a bem e avisou que o almoço estava na mesa. A rainha velha comeu a fartar lambendo os beiços e gabando tudo.

Dias depois, veio o desejo e ela mandou que o mordomo matasse Bela-Aurora. O mordomo levou a menina para casa e assou uma paca. A rainha achou o prato gostoso por demais.

Dias passados, exigiu que a princesa fosse refogada em molho de tomate e cebola, para o jantar, porque tinha a carne dura. O mordomo levou a princesa para sua casa, juntou-a aos filhos, bem escondidos, e matou uma veadinha, refogando-a e preparou o jantar, com molho de tomates e cebolas. A rainha velha comeu, saboreando.

Os dias iam passando e a velha tornou a ter a cisma da carne humana de cristão e saiu de noite, como uma desesperada, farejando quem mandar matar para saciar sua sina. Ia passando por uma rua longe do palácio, tarde da noite, quando ouviu a voz da princesa sua nora e a dos netos, conversando dentro de uma casa. Subiu na calçada, encostou o ouvido e soube que era ali a casa do mordomo e que a princesa estava fazendo Belo-Dia dormir, porque este perdera o sono e acordara Bela-Aurora, todos com saudades do pai.

A rainha velha, feia como uma coruja, nem coração tinha para essas coisas, saiu babando de raiva e pela manhã mandou prender a nora, os netos e o mordomo. Uma fogueira enorme foi feita diante do palácio, e quando o braseiro estava escandeando de quente, a rainha velha veio para a varanda assistir à morte da mulher e dos filhos do seu filho e do pobre mordomo.

Já vinham todos amarrados, no sol pegando fogo, quando ouviram a fortaleza salvar e o tropel de cavalaria. Era o príncipe que vinha voltando com os seus soldados, morto de saudades da mulher e dos filhos. Chegando na praça e vendo aquele horror, o príncipe voou do cavalo embaixo, puxou a espada e livrou a esposa e os filhinhos e o mordomo das cordas, e, bufando de raiva, gritou perguntando quem se atrevera a pôr a mão no que ele queria demais em cima do Mundo.

A rainha velha saltou do sobrado para o fogo das fogueiras, com medo do castigo, e aí morreu, queimada, estorricada, virada cinza e pó preto. 

O príncipe foi para o palácio com a princesa, Belo-Dia e Bela-Aurora, abraçando-os e chorando de alegria. Nomeou o mordomo para vice-rei num reinado que ganhara na guerra. E morreram todos de velhos, bem felizes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Olhos nos olhos)


(MPB, 1976)
Compositor: Chico Buarque de Holanda

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você

Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Força da Superação em 'Olhos Nos Olhos'
A música 'Olhos Nos Olhos', composta e interpretada por Chico Buarque, é uma obra que transita entre a dor do abandono e a superação do eu lírico. A canção inicia com a lembrança de um término, onde o narrador é incentivado pela pessoa amada a seguir em frente e ser feliz. A intensidade dos sentimentos é evidente, pois o eu lírico confessa ter quase enlouquecido de ciúme, mas, seguindo o padrão de comportamento, acaba por obedecer ao pedido de seguir em frente.

No decorrer da música, percebe-se uma mudança significativa na postura do eu lírico. Ele se apresenta refeito, destacando que, ao reencontrar a pessoa que o deixou, mostrará o quanto se tornou feliz sem ela. A expressão 'olhos nos olhos' sugere um confronto direto e honesto, onde o eu lírico quer testemunhar a reação do outro ao perceber sua felicidade e independência emocional. A letra ainda revela que o tempo trouxe novas experiências amorosas, sugerindo que outras pessoas o amaram de forma mais intensa e gratificante.

Por fim, a música fecha com uma oferta de generosidade, onde o eu lírico diz que, apesar de tudo, a pessoa que o deixou ainda pode procurá-lo se precisar. Essa atitude demonstra uma força interior e uma superação completa, onde o passado não é mais uma fonte de dor, mas uma lição aprendida. A canção de Chico Buarque, portanto, é um hino à resiliência e à capacidade de se reconstruir após um término amoroso, encontrando alegria e satisfação na própria companhia e nas novas possibilidades que a vida oferece.

Nenhum letrista brasileiro supera Chico Buarque na arte de escrever canções para personagens femininas. Numa entrevista à Rádio JB, em 16.5.90, ele afirmou: “fiz muitas músicas de encomenda para teatro. Nesses casos, mais do que os personagens, eu procuro saber quem é o ator ou a atriz que vai interpretá-las.

Então, em minha cabeça, eu misturo a figura da atriz com a da cantora que gostaria que cantasse aquela música. Daí saíram canções como ‘Folhetim’, que tem a cara da Gal. Mas às vezes a canção nem é para teatro, como ‘Olhos nos Olhos’, que fiz para Bethânia. Quando terminei ‘Olhos nos Olhos’ eu disse: olha, esta música está a cara da Maria Bethânia.”

Realmente uma composição melodramática como “Olhos nos Olhos” (“Quando você me deixou, meu bem / me disse pra ser feliz e passar bem / quis morrer de ciúme, quase enlouqueci...”) teria mesmo que ser cantada por Maria Bethânia, tal como outras (“Sem Açúcar”, “O Meu Amor”, “Gota d’Água”) que Chico deve ter feito pensando nela, pois até versos banais—como “olhos nos olhos, quero ver o que você faz / ao sentir que sem você eu passo bem demais” — ganham especial dramaticidade em sua voz rouca.

Uma curiosidade: a canção não termina na tônica. Na tonalidade de lá maior, por exemplo, como está no livro Chico Buarque — letra e música, a melodia acaba na nota sol, sétimo grau da escala, o que dá uma sensação de que não termina. 
Fontes:
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo – Vol. 2. Editora 34.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “24”

 

Aparecido Raimundo de Souza (Sacada de um passo)

 

NO “ÂMAGO” de meu coração, moram muitas e muitas histórias não contadas, menos ainda escritas ou divulgadas. Também é nele que residem, em teto cativo, os sonhos desfeitos e as esperanças renovadoras. Principalmente as renovadoras. Por conta disso, é o “âmago” do meu coração, um lugar sagrado, onde o silêncio fala mais alto que mil palavras. Cada batida amplia a sua linha de ação em socorro às minhas mazelas e necessidades mais prementes. Desta forma, cada pancada ressoa forte com ecos de memórias passadas, contudo, sem jogar longe ou sem tirar da minha beira, o foco da paz tranquilizadora que me sustenta. 

Ao lado, igualmente escondido na minha alma (num lugar que somente eu tenho acesso), as lágrimas arfam de pasmo e quando resolvem brotar, agem em comum acordo num gesto franqueador com o meu estado de espírito. Instauram, para tanto, uma variante de acesso restrita. Com isto, carregam mais sorrisos que tristezas. Cada uma que rola, rosto abaixo, leva na sua partida, como uma força mística, a doce candura de uma lição aprendida. O amor que se esvaiu pelos caminhos onde andei sempre deixam espaços para um novo querer, ou um gostar mais acautelado e maduro, mais cordato e consciente. 

Neste, tomo plena e consciente ciência de que a dor é uma espécie de núcleo embaraçoso e angustiante, quieto e consternado. Agora apenas reflete a paradoxalidade da outra face oculta da alegria, ou seja, aquele rosto que me faz bem. A saudade, mesmo assim, é o preço justo que pago pelas ocasiões que se ostentam inesquecíveis. Aprendi mais, e, hoje sei, cada cicatriz me ajudou a desenhar e construir um mapa limpo e cristalino das sendas que percorri deixando de lado as tentativas de hospedar a atenção das fraturas que me faziam um grande mal. Sobrevivi às intempéries. 

Por conseguinte, cada escolha feita me trouxe até aqui. Cheguei são e salvo, sem os pesadelos dos fantasmas que insistiam em me deixar às raias das desgraças anunciadas. Bem ou mal, todo o quadro lúgubre pelo qual passei, mostrou-me uma nova perspectiva de recomeço. O avesso do meu coração é hoje um mosaico de tudo o que vivi, ou melhor, de tudo o que passei, tipo tal e qual um pedaço de tecido feito de pequenos e insignificantes retalhos que redundaram em uma explosão de experiências construídas e costuradas com as linhas rígidas e fiéis da melhor forma de austeridade e superação. 

Na verdade, me vanglorio, neste momento, de uma progressão que não mais se curva, nem se dobra, que não se descamba, nem se deixa ser levada pelas intempéries mais furiosas e turbulentas.  Portanto, é dentro dele, o “âmago,” ou o “núcleo-essência” do meu coração, que guardo, à sete chaves, os segredos e enigmas, as confidências e os  dogmas mais fâmulos (domésticos e serviçais) ... enfim, as confissões pinceladas a gênio que só a mim pertencem. Embora muitas pessoas ao meu redor vejam apenas a superfície polida que mostro ao mundo, é no reverso dos meus “setenta e um anos,” que bato na tecla que verdadeiramente me conhece de cabo à rabo. 

Sob mesma visão, é onde aceito, de apreço satisfatório, as minhas carências e malogros, as descaídas (erros) e imperfeições, as rupturas e falhas. Ao final de tudo, eu celebro, com a cabeça erguida, o melhor e o mais magnificente da minha humildade. Não só ela. Com a mesma energia, me vejo e me aclamo, me ovaciono por ser inteiro e completo, principalmente quando sinto no corpo transbordando, as marcas indeléveis como patadas de um testrálio (raça de cavalo com corpo esquelético) regozijante –, a glória efêmera de identificar e sopesar os estiolamentos e as frouxidões, as covardias e os desfalecimentos advindos das próprias astenias (debilidades) que, por muitas vezes, tentaram me colocar às rés do chão. 

No profundo intocável do meu “eu”, encontrei a liberdade de ser quem sou. E quem realmente sou? Um sujeito sem máscaras ou disfarces. Aliás, do mesmo modo, me considero intemerato e sacrossanto, vez que renovo as minhas forças, exatamente onde o amor incondicional floresce e a vida ganha novos significados. Em resumo, é no outro lado da moeda que a vida (a minha vida) se revela em toda a sua complexidade estardalhante. E é nela, sem sombra de dúvidas, que descubro a beleza ímpar escondida nas dobras da existência na qual me contempla. 

No recôndito do meu coração, bem lá no fundo, existe um jardim florido, que dá para uma sacada suspensa. E bem alta. Nesse jardim, todos os dias, em flavas (amareladas ou douradas) manhãs e, num passo apenas, “eu sou eu mesmo.” Por inteiro e sem partes faltantes em minha forma mais pura e verdadeira, procuro estorcegar (torcer com força) os meus ridículos. E consigo. Espero, pois, que as minhas palavras explodam em todos os meus amigos leitores e leitoras que me leem. Ao expor esse meu texto, que ele ofereça a “todos e todas” a reflexão clara e perfeita sobre a beleza e a complexidade vinda do mais poderoso infinito: O Deus-Pai-Supremo. 
Fonte: Texto enviado pelo autor 

Contos e Lendas do Paraná (O fantasma do Coronel)

por Josué Corrêa Fernandes (Ponta Grossa)

Chopinzinho, no Sudoeste do Paraná, é uma cidade aprazível, onde gaúchos e catarinenses se misturaram ao elemento nativo, dando origem a uma comunidade trabalhadora e ordeira. Essa localidade já existia desde o século passado, quando ali foi estabelecida a Colônia Militar do Chopim, por ordem de D. Pedro II e com o objetivo de preservar as fronteiras nacionais da cobiça de argentinos e paraguaios.

Documentos e a própria tradição oral comprovam que, no mesmo local onde hoje se desenvolve a cidade foi erigida a sede da Colônia, sob o comando do coronel San Thiago Dantas, ancestrais de brasileiros ilustres, como o Primeiro Ministro parlamentarista do governo Goulart. O Salto Santiago, aliás, onde se construiu a grande hidrelétrica, também foi batizado em homenagem àquele intrépido desbravador.

Foi em Chopinzinho que iniciei, de fato, a minha carreira de juiz de direito. A casa, onde passei a residir, primeiro com minha família, ficava bem próxima ao Fórum, num morro de difícil acesso onde já se erguiam outras residências em meio à mata um tanto densa.

Por esses tempos, falava-se que tal lugar serviu de cemitério aos soldados da Colônia e que,  por isso, desrespeitada a finalidade de campo santo, eram frequentes as aparições de almas penadas, exigindo a desocupação da área... Filho de pai galego, nunca dei crédito a tais estórias, muito embora, no fundo, não esquecesse de velha advertência ibérica: "no creo em brujas, pero que las hay, hay"...

Meses depois que ali aportei, numa madrugada de verão forte, fui acordado pelo chamado insistente da empregada que, pálida e tremendo, dizia haver avistado uma "visagem de soldado" na orla do pequeno bosque dos fundos. Vim até à janela e, auxiliado pela claridade da lua cheia, nada vi, mas a moça insistiu:

- Ele tava parado bem lá, perto do pinheiro; era grande, barbudo e tinha espada. Quando fiz barulho, ele andou no meio das árvores e sumiu!

Peguei, então, uma lanterna e o revólver e me dirigi até o ponto indicado. Iluminei para lá e para cá, nada enxergando. Não muito convicto de me aprofundar na procura, adentrei poucos passos na mata, logo tropeçando em alguma coisa. Focalizei a lanterna, abaixei-me e vi que se tratava de um pedaço de laje com palavras escritas. Juntando vagarosamente as letras e suprindo as que faltavam, consegui ler: 

"... restos mortais do capitão-bacharel Francisco Clementino de San Thiago Dantas, Orae por elle".

Sufocante que estava o calor, de súbito senti-me enregelado e invadido por peculiar calafrio que me cruzou o corpo de norte a sul, ouriçando-me todos os pelos imagináveis. Disciplinado infante do CPOR, procurei não voltar em marcha acelerada, mas normalmente, para o interior da casa, afirmando que nada encontrara. Debaixo das grossas cobertas não consegui acalmar o inusitado frio, mas desarquivei dos fundos do meu inconsciente a oração pelas almas do purgatório, tantas vezes repetida na minha antiga função de coroinha. E ansioso, com os olhos estatelados, aguardei o alvorecer.
Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Recordando Velhas Canções (Hotel das estrelas)


(1970)

Compositor: Jards Macalé e Duda Machado

Dessa janela sozinha
Olhar a cidade me acalma
Estrela vulgar a vagar
Rio e também posso chorar
E também posso chorar

Mas tenho os olhos tranquilos
De quem sabe seu preço
Essa medalha de prata
Foi presente de uma amiga
Foi presente de uma amiga

Mas isso faz muito tempo
Sobre o pátio abandonado
Mas isso faz muito tempo
Em doze quartos fechados
Mas isso faz muito tempo
Profetas nos corredores
Mas isso faz muito tempo
Mortos embaixo da escada
Mas isso faz muito tempo
Oh ye, mas isso faz muito tempo

Mas isso faz muito tempo
No fundo do peito, esse fruto
Apodrecendo a cada dentada
Oooh
No fundo do peito, esse fruto
Apodrecendo a cada dentada

Mas isso faz muito tempo
Sobre o pátio abandonado
Mas isso faz muito tempo
Em doze quartos fechados
Mas isso faz muito tempo
Profetas nos corredores
Mas isso faz muito tempo
Mortos embaixo da escada
Mas isso faz muito tempo
Oh ye, mas isso faz muito tempo

Dessa janela sozinha
Olhar a cidade me acalma
Estrela vulgar a vagar
Rio e também posso chorar
E também posso chorar

A Solidão e a Contemplação em 'Hotel Das Estrelas' de Jards Macalé
A música 'Hotel Das Estrelas' é uma obra que explora a solidão e a contemplação da vida urbana. A letra começa com a imagem de uma janela solitária, sugerindo um ponto de observação isolado do mundo exterior. A janela, um símbolo de separação e ao mesmo tempo de conexão, permite ao eu lírico observar a cidade e encontrar uma forma de calma nesse ato de contemplação. A solidão aqui não é necessariamente negativa; ela é um espaço de reflexão e de encontro consigo mesmo.

A menção à 'estrela vulgar a vagar' traz uma metáfora rica. As estrelas, geralmente associadas a algo sublime e distante, são aqui descritas como vulgares, talvez para refletir a banalidade e a repetição da vida cotidiana. A estrela que vaga sem rumo pode ser uma representação do próprio eu lírico, que se sente perdido ou sem direção, mas que ainda assim encontra beleza e significado na sua observação do mundo.

Por fim, a linha 'Rio e também posso chorar' sugere uma dualidade emocional. O riso e o choro são expressões de sentimentos profundos e contrastantes, indicando que a contemplação da cidade e da vida pode trazer tanto alegria quanto tristeza. Jards Macalé, conhecido por seu estilo musical que mistura elementos de MPB, rock e experimentalismo, utiliza essa letra curta e poética para capturar a complexidade das emoções humanas e a experiência de viver em uma grande cidade.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trov’ Humor) 38

 

Francisca Júlia (O sino que anda)

(Imitação de Goethe)

Era um dia uma criança tão inquieta e travessa, tão amiga dos brinquedos e da ociosidade, que não tinha paciência de estar por muito tempo ajoelhada na igreja, aspirando o perfume do incenso, sob a luz dos altares.

Quando chegava o domingo, à hora de ir fazer suas orações, achava sempre um pretexto para correr até ao campo, à procura das borboletas e de ovos de passarinhos.

Disse-lhe a mãe um dia:

— O sino chama-te, meu filho, o sino toca, o sino fala-te, o sino prescreve-te os deveres da religião e obriga-te a assistir às missas, e se continuares a fugir para o campo, um dia o sino há de descer da altura em que está e correr atrás de ti.

Mas a criança pensou:

"O sino está tão alto, badalando lá em cima, preso nas paredes da torre!..."

E seguiu adiante, correndo pelos atalhos e devesas (matos), ávido de ar e de liberdade.

Mas que medo, meu Deus! Que terror lhe arrepia os cabelos e lhe empalidece o rosto. Numa curva do caminho o sino aparece, andando como se tivesse pernas, a ralhar como se tivesse boca. A pobre criança, desesperada, corre de um lado para outro, tropeçando nas pedras, rasgando-se nos espinhos.

E o sino cai. O pobrezinho corre, corre sempre, toma a direção da igreja e entra, mal acordado do susto. 

Desde esse dia, quando chega o domingo, ou algum dia de festa, ele é o primeiro a ir à igreja, obedecendo ao primeiro toque do sino, sem ser preciso que ninguém o convide.

Fonte> Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Dama das Camélias)


(
Marcha, 1940)

Compositor: João de Barro e Alcir Pires Vermelho

A sorrir você me apareceu
E as flores que você me deu
Guardei no cofre da recordação
Porém, depois você partiu
Pra muito longe
Me deixou
E a saudade que ficou
Ficou pra magoar meu coração
A minha vida se resume
Oh, Dama das Camélias
Em duas flores sem perfume
Oh, Dama das Camélias
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Melancolia e a Saudade em 'Dama das Camélias'
A música 'Dama das Camélias' é uma obra que explora a melancolia e a saudade através de uma narrativa poética e emocional. A letra começa com a imagem de um encontro feliz, onde a figura amada aparece sorrindo e oferecendo flores. Essas flores são guardadas no 'cofre da recordação', simbolizando memórias preciosas e momentos de felicidade que o eu lírico deseja preservar.

No entanto, a alegria inicial é rapidamente substituída pela dor da separação. A pessoa amada parte para longe, deixando o eu lírico com uma saudade profunda que 'ficou pra magoar meu coração'. Essa transição de sentimentos reflete a dualidade da vida, onde momentos de felicidade podem ser seguidos por períodos de tristeza e solidão. A saudade aqui é quase palpável, uma presença constante que causa dor e sofrimento.

O título 'Dama das Camélias' faz referência à famosa obra literária de Alexandre Dumas Filho, que também trata de amor e perda. Na música, a 'Dama das Camélias' é uma figura que encapsula a beleza efêmera e a tristeza de um amor que não pode ser. A vida do eu lírico se resume a 'duas flores sem perfume', uma metáfora para a ausência de alegria e a presença de lembranças que, embora belas, não trazem mais felicidade.