segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Cézar Augusto Defilippo (Trovas em preto e branco)


1
Ao ver-te mãe, insegura,
percebo em meio à pobreza
que o teu olhar de ternura
tem muito mais de tristeza.
 2
Canoeiro chora ao marco
da seca, drama do estio,
ao ver carcaças do barco
no leito seco do rio...
3
Leitura bem decifrada,
ciúme é momento mudo...
Voz e gestos não são nada
quando os olhos dizem tudo!
4
Luar, viola e sertão
nos mostram com harmonia
como a própria solidão
precisa de companhia...
5
Muita gente sofre e chora
porque trocou sem receio
toda certeza do agora
por um depois que não veio.
6
Na ingratidão que és capaz
tua conduta me diz:
- não passo de um “tanto faz”
para alguém que eu tanto fiz...
7
Não seja precipitado,
torne o tempo bem vivido,
mais vale um antes pensado
que um depois arrependido...
 8
O meu ontem foi mentira...
Falsos sonhos... glória vã...
Mas meu fracasso não tira
a esperança do amanhã.
9
Raízes... braços em coma
no mangue que já morreu,
buscam no barro o bioma
que o homem não protegeu.
10
Serve de exemplo na história
com grandeza habitual,
quem ao fracasso ou vitória
mantém a conduta igual!
 11
Sozinho, meu caminhar,
mostra a razão mais sincera
se vivo sem regressar
é porque ninguém me espera.
12
Tendo a plástica da Estela
pele "daquele lugar",
vira e mexe a cara dela
tem vontade de sentar.

As Trovas de Cézar Augusto Defilippo (Zé Gute) em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS DE DIVERSAS ÉPOCAS

Trova 1. Amor Materno e Tristeza
A primeira trova reflete a dualidade do amor maternal, mostrando como a ternura pode ser acompanhada de tristeza, especialmente em situações de pobreza. A mãe, símbolo de cuidado, também carrega o peso das dificuldades.

Castro Alves em "O Canto de Buarque" também retrata a dor e a luta das mães, especialmente em contextos de opressão e pobreza. 

Adélia Prado expressa, em seus poemas, a complexidade do amor materno e a tristeza que pode acompanhá-lo. Explora a relação entre mãe e filho em “A Mãe”, revelando a profundidade e a complexidade dos sentimentos envolvidos.

Sylvia Plath (poeta norte-americana, 1932 – 1963) em poemas como "Daddy", explora a complexidade do amor e a dor associada às relações familiares, refletindo a tristeza que pode coexistir com a ternura.

Trova 2. Canoeiro e a Seca
Aqui, a seca representa a devastação ambiental e a luta do povo sertanejo. O canoeiro, em sua dor, simboliza a perda não apenas de recursos, mas também de esperança. A imagem é poderosa, reforçando a resiliência humana frente à adversidade.

Gonçalves Dias, em "Canção do Exílio", fala sobre a relação do homem com a natureza e a saudade que esta provoca. 

Cecília Meireles aborda a solidão e a luta do homem em relação ao ambiente, refletindo a conexão com a terra e as dificuldades enfrentadas. No poema "A Flor e a Náusea", ela explora a beleza da natureza em contraste com as dificuldades da vida, refletindo sobre a luta e a resiliência.

Pablo Neruda (poeta chileno, 1904-1973) em "Ode ao Mar", fala sobre a relação entre o homem e a natureza. Sua obra muitas vezes aborda a luta contra a adversidade e a conexão profunda com a terra.

Trova 3. Olhos que Falam
Esta trova explora a comunicação não verbal, sugerindo que os sentimentos mais profundos muitas vezes são revelados através dos olhos. A ideia de que o que não é dito pode ser mais eloquente do que palavras ressoa fortemente nas relações interpessoais.

Fernando Pessoa, em "O Guardador de Rebanhos", através do seu heterônimo Alberto Caeiro, o explora a simplicidade da observação e a comunicação com a natureza, enfatizando a expressão que vai além do verbal. 

Marianne Moore (poetisa norte-americana, 1887–1972) enfatiza a comunicação não verbal e a expressividade dos olhos em suas obras. Em "The Fish", Moore descreve a beleza e a complexidade dos olhos do peixe, sugerindo uma comunicação que vai além das palavras. Em "To a Snail", Moore reflete sobre a observação e a percepção, sugerindo que a comunicação pode ser encontrada na delicadeza dos movimentos e na presença dos seres.

Rainer Maria Rilke (poeta austríaco, 1875 – 1926), em seus "Sonetos a Orfeu", explora a comunicação profunda que vai além das palavras, revelando como os olhos podem expressar emoções intensas.

Trova 4. Solidão e Companhia
A relação entre solidão e a necessidade de conexão é central. A trova sugere que, mesmo na solidão, há um desejo intrínseco por companhia, refletindo a natureza social do ser humano e a importância das relações.

Álvares de Azevedo trata da solidão em muitos de seus poemas, refletindo sobre a busca por conexão. "Noite de Luar" reflete a solidão do eu lírico diante da beleza da noite, capturando a melancolia e a busca por companhia.

Mário Quintana fala sobre a solidão e a busca por companhia, abordando o tema com uma leveza poética. "Oração do Tempo" aborda a passagem do tempo e a solidão que pode acompanhar as reflexões sobre a vida, sugerindo a importância das memórias. Em "A Rua dos Cataventos", o poeta evoca a solidão em meio à cidade, destacando a busca por companhia em um ambiente muitas vezes desolador.

A solidão é um tema central na obra de Emily Dickinson (poetisa norte-americana, 1830 – 1886). Seus poemas frequentemente refletem a busca por conexão em um mundo isolante, ressoando com a temática da solidão e da companhia. No poema “I felt a Funeral, in my Brain", Dickinson explora a solidão e a percepção de um estado mental isolado, simbolizando a busca por conexão. 

Trova 5. Expectativas e Desilusões
Esta estrofe aborda a troca de certezas por esperanças incertas, refletindo a desilusão que muitos enfrentam ao buscar futuros ideais. É uma crítica à falta de gratidão pelo presente e à propensão a idealizar o que ainda não existe.

Olavo Bilac em "O Caçador de Esmeraldas" reflete sobre a desilusão e a busca por ideais inatingíveis.

Adriana Falcão explora a frustração e as expectativas em suas narrativas poéticas. "O Mundo de Tinta" aborda as expectativas sobre a vida e a desilusão que pode ocorrer quando a realidade não corresponde aos sonhos. 

Charles Baudelaire (poeta francês, 1821 – 1867) em "As Flores do Mal", aborda a desilusão e a busca por ideais, refletindo a frustração que pode surgir quando as expectativas não são atendidas.

Trova 6. Ingratidão e Sacrifício
A dor da ingratidão é expressa com intensidade, revelando a decepção de quem se sacrifica por amor. Essa troca desigual ressalta a fragilidade das relações e a importância de reconhecer o valor das contribuições alheias.

Cláudio Manuel da Costa escreve sobre a ingratidão e o amor não correspondido em suas obras, refletindo a dor do sacrifício. "O Louco" reflete sobre a ingratidão e a incompreensão da sociedade em relação aos que se sacrificam por amor ou por ideais.

Hilda Hilst também toca na ingratidão e na complexidade das relações humanas em seus poemas. Em "Ode aos Ratos", Hilst aborda a ingratidão e a traição nas relações, utilizando metáforas para expressar a dor emocional. 

William Wordsworth (poeta inglês, 1770 – 1850) fala sobre a ingratidão da sociedade em relação à natureza e aos que sacrificam suas vidas pelo bem comum, refletindo a dor do sacrifício não reconhecido. "The Prelude" explora a ingratidão da sociedade em relação à natureza e ao papel do indivíduo, refletindo sobre os sacrifícios feitos por uma vida de introspecção. 

Trova 7. Reflexão e Arrependimento
A sabedoria de agir com prudência é o foco aqui. A ideia de que um planejamento cuidadoso é mais valioso do que a ação impulsiva é um ensinamento essencial, especialmente em tempos de decisões rápidas.

Tomás António Gonzaga, reflete sobre escolhas e arrependimentos, especialmente em contextos de amor. "Marília de Dirceu" expressa a solidão do eu lírico em sua busca por amor e sentido, refletindo sobre a dor da ausência. "Cartas Chilenas" aborda a solidão e a busca por liberdade, questionando a vida e suas angústias.

Carlos Drummond de Andrade frequentemente aborda a reflexão sobre a vida e as consequências das escolhas em seus poemas. "No Meio do Caminho" reflete a solidão e a inevitabilidade dos obstáculos na vida, simbolizando a busca por sentido. "A Máquina do Mundo" aborda a complexidade da existência e a solidão que acompanha a busca por compreensão no mundo. Em "Quadrilha" o eu lírico expressa a solidão e a desilusão nas relações amorosas, revelando a busca por conexão e sentido.

T.S. Eliot (poeta norte-americano radicado na Inglaterra, 1888 – 1965), em "The Love Song of J. Alfred Prufrock" explora a reflexão e o arrependimento, abordando as escolhas da vida e as consequências que elas trazem.

Trova 8. Esperança no Fracasso
Esta trova traz uma mensagem de otimismo, ressaltando que os fracassos não anulam a esperança. A ideia de que o passado não define o futuro é inspiradora e encoraja a resiliência.

Vinicius de Moraes, em muitos de seus poemas, fala sobre a esperança mesmo em meio ao fracasso amoroso e existencial. "Soneto de Fidelidade" reflete sobre o amor e a inevitabilidade da passagem do tempo, enfatizando a transitoriedade das experiências. "Eu Sei que Vou Te Amar" expressa a intensidade do amor, mesmo sabendo que tudo é passageiro, destacando a busca por momentos significativos. Em "Soneto de Separação", Vinicius aborda a dor da separação e a transitoriedade das relações, refletindo sobre o que permanece após o fim de um amor.

Alice Ruiz expressa a transformação e a esperança que surgem após períodos de dificuldade. Podemos citar poemas como "A Vida É Uma Tarde", onde ela reflete sobre as dificuldades da vida e a capacidade de renovação que surge após momentos difíceis. Em "O Coração É Um Caçador", através da metáfora do coração, Ruiz fala sobre a busca por amor e a esperança que se renova mesmo após desilusões.

A poesia de Langston Hughes (poeta norte-americano, 1901 – 1967), especialmente em "The Negro Speaks of Rivers", aborda a resiliência e a esperança que surgem mesmo após fracassos históricos e pessoais.

Trova 9. Natureza e Descuido
A crítica ao descaso humano em relação ao meio ambiente é evidente. As raízes e o mangue simbolizam a conexão com a natureza, enquanto o "bioma que o homem não protegeu" denuncia a responsabilidade que temos sobre o mundo natural.

Guilherme de Almeida faz críticas sociais e ambientais, refletindo sobre a relação do homem com a natureza. "Oração do Fogo" reflete sobre a força renovadora do fogo, simbolizando a esperança que surge da transformação. Em "A Flor de Lis" o poeta utiliza a imagem da flor como símbolo de renascimento e esperança, abordando a beleza que pode emergir das dificuldades.

Marcos de Andrade aborda a degradação ambiental, alertando sobre a responsabilidade humana. "Renovação" explora a ideia de recomeços e a força da esperança diante das dificuldades da vida. No poema "Esperança", o poeta fala sobre a luz que a esperança traz, mesmo em momentos sombrios, ressaltando a importância de acreditar em um futuro melhor.

William Blake (poeta inglês, 1757 -1827), em obras como "Songs of Innocence and Experience", critica a relação do homem com a natureza e a degradação que resulta do descaso humano.

Trova 10. Manutenção da Conduta
A igualdade de conduta diante do sucesso e do fracasso é um valor essencial. A estrofe sugere que a verdadeira grandeza está em manter a integridade, independentemente das circunstâncias.

Machado de Assis frequentemente explora a moralidade e a integridade humana. No romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis critica a sociedade do século XIX, abordando a hipocrisia e as injustiças sociais através da perspectiva de um narrador defunto. "O Alienista" através da figura do Dr. Simão Bacamarte, explora a loucura e a crítica social, revelando as injustiças na forma como a sociedade trata os que são diferentes.

Ruth Escobar fala sobre a importância da conduta ética em tempos de adversidade. “A Revolução de Outubro" fala sobre a luta por justiça e igualdade, refletindo as desigualdades sociais e a necessidade de mudança. "Canto da Liberdade" aborda a busca por liberdade e justiça, enfatizando a luta contra a opressão e a desigualdade.

Robert Frost (poeta norte-americano, 1874 – 1963) em "The Road Not Taken" reflete sobre a manutenção da integridade diante de escolhas difíceis, enfatizando a importância da conduta em momentos decisivos.

Trova 11. Caminhada Solitária
A solidão escolhida é um tema profundo, refletindo sobre a ausência de expectativas de retorno. Essa escolha revela uma busca por autenticidade e a liberdade que vem com a independência emocional.

Fernando Pessoa, frequentemente aborda a solidão e a busca por identidade. No "O Livro do Desassossego", o narrador reflete sobre a solidão e a busca por um sentido na vida, explorando a complexidade da identidade.

Marcelino Freire explora a solidão e a busca por autenticidade em suas narrativas poéticas. "Contos Negros" é uma coleção de contos que explora a solidão e a busca por identidade em contextos marginalizados, abordando a vida de personagens em situações difíceis. "Nossos Ossos" reflete sobre a solidão da existência humana e a luta interna por reconhecimento e identidade.

Henry David Thoreau (poeta norte-americano, 1817 – 1862), em "Walden" aborda a solidão e a procura por autenticidade, refletindo sobre a vida simples e a conexão com a natureza.

Trova 12. Beleza e Identidade
A leveza desta trova contrasta com as temáticas mais pesadas anteriores. A referência à beleza e à identidade sugere uma busca por aceitação e a complexidade das relações humanas, misturando humor e reflexão.

Olavo Bilac também trata da beleza e da identidade em sua poesia, refletindo sobre a estética e o eu, em "O Caçador de Esmeraldas", Bilac reflete sobre a busca pela beleza nas coisas simples e a relação com a natureza, simbolizando a identidade e a essência do ser; em "Saudade" ele explora a beleza da lembrança e o impacto das experiências passadas na formação da identidade. 

Ana Cristina Rodrigues fala sobre a beleza e a busca pela identidade em um mundo em transformação. "Poesia para Quem Não Gosta de Poesia" aborda a memória de forma lúdica e reflexiva, destacando a importância das vivências passadas na construção da vida. "As Coisas que Perdemos no Fogo", embora não seja exclusivamente dela, Ana Cristina contribui com textos que dialogam sobre a memória e a perda, ressaltando a carga emocional das recordações.

Walt Whitman (poeta norte-americano, 1819 – 1892), em "Leaves of Grass" celebra a beleza da individualidade e da identidade, promovendo uma aceitação da diversidade humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Zé Gute, com sua simplicidade e profundidade, refletem uma variedade de temas que dialogam com a experiência humana, como amor, solidão, natureza e as sutilezas do cotidiano. Sua linguagem acessível, marcada por um tom coloquial, aproxima o leitor de uma reflexão íntima, tornando suas mensagens universais e atemporais.

Ele se insere em uma tradição de poetas brasileiros que valorizam a oralidade e a musicalidade, como Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado, que também exploram a relação entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Além disso, suas trovas estabelecem conexões com poetas estrangeiros, como Pablo Neruda, cujas obras também abordam a condição humana com lirismo e sensibilidade.

A importância das trovas de Zé Gute para a sociedade atual e para futuras gerações reside na sua capacidade de ressoar com as emoções e as inquietações contemporâneas. Em tempos de incerteza e desassossego, suas palavras oferecem consolo e esperança, incentivando uma reflexão crítica sobre a vida e a convivência. Ao perpetuar a tradição da trova, ele não apenas mantém viva uma forma poética rica, mas também convida novas vozes a se expressarem, garantindo que as futuras gerações possam encontrar na poesia um espaço de diálogo e identificação.

Assim, suas trovas se afirmam como um patrimônio cultural, essenciais para a construção de uma sociedade mais sensível e conectada às suas raízes, ao mesmo tempo em que projetam um olhar esperançoso para o futuro.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Renato Frata (Marcas do ontem)

Há momentos em que o inusitado tira o sorriso da boca para lhe colocar um palavrão. Foi assim que logo pela manha, ao sair da garagem, fui literalmente atropelado por um pardal que, espaventado, trombou no vidro e plof., caiu agonizando.

Como é fofo, tem pouca força e a velocidade do carro era mínima, ele não morreu, mas ficou estrebuchando, tontinho da silva. Peguei-o e o levei sob o jato de água fria da torneira à mercê de restabelecimento, momento em que fui tomado por uma lembrança guardada no baú de memórias.

Vi-me de calça curta, camisa aberta no peito e com um embornal cheio de pombinhas mortas a estilingue. 

As mãos segurando agora o pequeno pardal sob o jato frio para lhe dar vida, eram as mesmas que depenavam, estripavam, cortavam, lavavam e salgavam corpos e corpos de aves, para levá--los à cozinha e se transformarem em complemento da indefectível polenta do dia a dia.

Era maldade? Não, necessidade. Combatia a fome, dava abrigo. A pobreza exige que se eliminem princípios! E até se pode dizer que a miséria animaliza.

Sorte que a consciência nos põe em pé para contar, arrepender e ao mesmo tempo se desculpar. Ninguém refaz o passado, apenas o lamenta. Quando pode.

Um fio de sangue aflorou entre os bicos do pardal, o que me trouxe mais apreensão, todavia, em alguns instantes ele se mexeu, tentou bater asas, mas o mantive: não há quem não reaja sob uma ducha gelada.

Depois ele abriu os olhos e piou, sacudiu a cabeça e forçou novamente como se dissesse estar pronto para outra aventura. Seu coraçãozinho esticava e retraía, da mesma forma como batia o meu quando, nos almoços regados a caldo de pombinhas, a polenta ganhava novo sabor.

Tirei-o da sufocação da água, saí ao sol, sequei-o e, notando que melhorara, abri as mãos. Ele se foi, para cair logo a uns seis, sete metros e voltar a se bater. Tentava se levantar, mas caía. Corri, peguei-o de volta, conversei amenidades, aninhei-o na toalha e o pus sobre o banco do carro para que só saísse quando sentisse que era hora.

Ele se mexeu, recuperou-se, se levantou, voou com segurança e, como se nada houvera, pousou sobre o muro onde se esticou, estendendo ao sol as penas. Piou duas ou três vezes, como se nada de estranho houvesse, e voou. Não sei como funciona a memória de um pardal, se ele é capaz de se lembrar ou se existe um limite, mas esse episódio serviu-me para reflexão: o passado - bom ou mau - deve ser visto como aquela bolha que se forma na sola dos pés depois de longa caminhada. Ela dói, murcha, seca, descasca a pele e até esquecemos dela sem nos preocupar com a marca, mas sempre estará ali.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Vereda da Poesia = Carolina Ramos (Santos/SP)



Dicas de Escrita (Como escrever em primeira pessoa) – 3

texto por Stephanie Wong Ken
MÉTODO 3 = Evitando as armadilhas da primeira pessoa

1. Evite começar todas as frases com “eu”. 
Embora você esteja escrevendo na perspectiva de primeira pessoa, as frases não podem começar somente com “eu”, senão, sua narrativa ficará repetitiva e cansativa. Tente variar as frases para não começar sempre com dessa forma.

Em vez de escrever duas frases seguidas, como “Eu desci as escadas com o coração acelerado. Eu podia ouvir a aranha descendo a parede atrás de mim”, você pode escrever “Eu desci as escadas com o coração acelerado. Atrás de mim, descia a aranha pela parede”.

2. Não reporte a ação usando “eu”. 
Permita que o narrador em primeira pessoa descreva a cena ou momento a partir do próprio ponto de vista.

Não use a voz passiva ao descrever uma cena ou momento através do narrador em primeira pessoa, senão, o texto vai parecer apenas um relatório ou resumo dos eventos, em vez de permitir que o leitor compreenda os eventos conforme eles se desenrolam.

Por exemplo, em vez de escrever “Eu encontrei a Márcia e ela me disse que havia deixado a lição em casa. Eu me senti mal por ela e disse que ela não deveria se sentir tão mal”, você pode colocar o leitor diretamente na cena. 

Escreva: “Quando entrei no ginásio, me deparei com Márcia. ‘Esqueci minha lição em casa’, ela reclamou. Coloquei minha mão sobre o ombro dela e tentei confortá-la. ‘Não fique triste’, disse.”

3. Tente não estabelecer uma distância entre o leitor e o “eu”. 
Usar “pensei”, “vi” ou “senti” pode criar uma distância entre o leitor e a narração entre primeira pessoa. Evite usar esses verbos quando for escrever, pois podem enfraquecer a narrativa.

Por exemplo, em vez de escrever “Eu fiquei triste por tê-la perdido como uma amiga”, escreva “A tristeza encheu meu coração quando percebi que estava perdendo-a como amiga”.

Você também pode simplesmente remover o “eu pensei” ou “eu vi” em uma frase para deixar a perspectiva de primeira pessoa mais forte. Por exemplo, em vez de escrever “Eu passei por ela no corredor e quase parei para falar com ela, mas pensei “Por que me incomodar? Ela vai me rejeitar mesmo!”, remova o “pensei” e deixe a ação mais concisa.

Escreva “Eu passei por ela no corredor e quase parei para falar com ela, mas continuei andando. Por que me incomodar? Ela vai me rejeitar mesmo!”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…
Fonte:

Recordando Velhas Canções (Nós queremos uma valsa)


(valsa/carnaval, 1941) 

Compositores: Eratóstenes Frazão e Antônio Nássara 

Antigamente, uma valsa de roda
Era de fato, o requinte da moda
Já não se dança uma valsa, hoje em dia
Com o mesmo gosto e com tanta alegria!

Mas se a valsa morrer,
Que saudade a gente vai ter,
Mas... se valsa morrer,
Que saudade que a gente vai ter!

Nós queremos uma valsa
Uma valsa para dançar.
Uma valsa que fale de amores,
Como aquela dos patinadores...

Vem, meu amor,
Vem, meu amor
Num passinho de valsa,
Que vem e que vai,
Mamãe quer dançar com papai!

A Nostalgia da Valsa: Um Clamor por Tempos Passados
A música 'Nós Queremos Uma Valsa' é uma ode nostálgica aos tempos em que a valsa era uma dança popular e apreciada. A letra começa refletindo sobre como, antigamente, a valsa de roda era o auge da moda e trazia muita alegria e prazer aos que a dançavam. No entanto, o cantor lamenta que, nos dias atuais, a valsa não é mais dançada com o mesmo entusiasmo e alegria, sugerindo uma perda cultural e emocional significativa.

A repetição da frase 'Mas se a valsa morrer, que saudade, que a gente vai ter' reforça a ideia de que a valsa não é apenas uma dança, mas um símbolo de tempos mais simples e felizes. A saudade mencionada é um sentimento profundo de perda e desejo de reviver esses momentos. A música expressa um desejo coletivo de resgatar essa tradição, de trazer de volta a valsa que falava de amores e que unia as pessoas em um movimento harmonioso e romântico.

No refrão, o pedido por uma valsa que fale de amores, como a dos patinadores, evoca imagens de elegância e romance. A valsa é vista como uma dança que não apenas entretém, mas também conecta emocionalmente as pessoas. A última estrofe, onde se menciona 'Mamãe, quer dançar com papai', traz um toque de ternura e familiaridade, sugerindo que a valsa também tem um papel importante na união familiar e na expressão de afeto entre os entes queridos.

Frazão propôs e Nássara aceitou fazerem os dois uma valsa para o carnaval. Assim nasceu "Nós Queremos Uma Valsa", novidade que agradou plenamente aos foliões de 1941. Na realidade, agradou mais ainda ao jornalista Morais Cardoso, o Rei Momo do Rio na ocasião. Além de muito gordo, como todo Rei Momo, Morais tinha problemas de saúde e vivia com os pés inchados. Para ele era um suplício cumprir as obrigações de rei do carnaval, que incluíam uns passos de samba ou de marcha nas dezenas de bailes a que tinha de comparecer.

Então, ao tomar conhecimento da valsa, adotou-a imediatamente como sua música oficial, que passou a ser executada nos lugares aonde ele ia. Naturalmente, tal resolução amenizou sua tarefa coreográfica, reduzindo-a a suaves passinhos de valsa. "O Morais nunca teve um carnaval tão tranquilo", relembrava Nássara.

Lançada por Carlos Galhardo, "Nós Queremos Uma Valsa" tem melodia calcada na "Valsa dos Patinadores" (de Emil Waldteufel), enquanto a letra evoca os velhos tempos, quando "uma valsa de roda era o requinte da moda". Para caracterizar o clima carnavalesco, a introdução reproduz um tradicional toque de clarim.

Fontes:
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997

domingo, 15 de setembro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 56

 

Lucília Alzira Trindade Decarli (Trovas em preto e branco)


1
Antes que a vida se acabe,
não seja vão o viver
e aquilo que não se sabe,
que se comece a aprender.
2
Da sua casa ao cartório
apenas um quarteirão...
Dada a preguiça, o casório
se fez por procuração.
3
Desde os tempos mais pagãos,
mulher, revelas quem és...
O mundo sempre nas mãos
e sempre um homem... aos pés!
4
Esta paixão, minha e tua,
transcende em cada arrebol…
Se é noite, ao clarão da lua,
e se é dia, à luz do sol!
5
Levo pela vida afora
este dilema sem fim:
o "sim" que eu neguei outrora
fez mal ou bem para mim?!…
6
Não conhece despedidas,
nem discórdias, nosso teto:
- é que ligam nossas vidas
os laços fortes do afeto!
7
Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz:
- grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
8
Nau partindo – céu aberto,–
nas verdes águas do mar;
navega com rumo certo
na incerteza de chegar!…
9
O destino, em nossas vidas
trouxe o reencontro, depois
das distâncias percorridas
nos caminhos de nós dois.
10
Para enxergar a cobiça
e amparar prejudicados,
não deveria, a Justiça,
manter seus olhos vendados!
11
Quando fingir é preciso,
seriamente eu me concentro:
– Levo na face um sorriso,
enquanto eu choro por dentro.
12
Quem julga o seu semelhante
carrega pedras na mão
e o que odeia a todo instante,
as guarda em seu coração!

As Trovas de Lucília em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS ARCAICOS E CONTEMPORÂNEOS

1. Reflexão sobre a vida e a importância do aprendizado.
“Antes que a vida se acabe”
A urgência de viver plenamente e a necessidade de buscar conhecimento antes que seja tarde. A ideia de que o aprendizado é uma parte essencial da existência é central.

As poesias de Cecília Meireles frequentemente exploram a efemeridade da vida e a busca pelo conhecimento. Adélia Prado, aborda a importância da experiência de vida e do aprendizado em suas poesias.

2. Preguiça e compromisso. 
“Da sua casa ao cartório”
A ironia do casamento por procuração sugere uma falta de envolvimento emocional. Critica a superficialidade nas relações, onde a comodidade pode prevalecer sobre o verdadeiro compromisso.

Machado de Assis, em suas crônicas, critica a superficialidade nas relações sociais. Marcelino Freire explora a vida cotidiana e suas nuances, refletindo sobre relacionamentos.

3. Papel da mulher na sociedade. 
“Desde os tempos mais pagãos”
A representação da mulher como figura forte, mas ainda assim subjugada. Reflete sobre a desigualdade de gênero através dos tempos, evidenciando a luta pela autonomia feminina.

Florence Nightingale (1890 – 1910), embora não seja poeta, sua influência social é notável, lutou pelos direitos das mulheres na sociedade. Atualmente, as poesias de Tatiana Nascimento abordam a força e a luta das mulheres na sociedade moderna.

4. Amor e sua transcendência. 
“Esta paixão, minha e tua”
O amor é descrito como uma força que se manifesta nas mudanças do dia e da noite, mostrando sua onipresença e a beleza dos sentimentos nas diversas formas de natureza.

Em Vinicius de Moraes, o amor é tema central em sua obra, explorando suas várias facetas. Lígia Fascetti, explora o amor de maneira intensa e poética, refletindo sua profundidade.

5. Dilemas emocionais e arrependimentos. 
“Levo pela vida afora”
O questionamento sobre as escolhas passadas e suas consequências. Reflete a ambiguidade do "sim" e do "não", e como essas decisões moldam nossa vida.

Alfonsina Storni (poetisa argentina, 1892 – 1938) aprofunda-se em questões de amor e arrependimentos em suas obras. Hilda Hilst aborda as complexidades das emoções humanas, incluindo arrependimentos.

6. Laços afetivos. 
“Não conhece despedidas”
A celebração do amor que une as pessoas, sugerindo que o afeto verdadeiro supera desentendimentos e separações. O lar é apresentado como um espaço seguro.

Carlos Drummond de Andrade aprecia o valor das relações humanas e afetos em sua poesia. Martha Medeiros, foca nas relações pessoais e na importância dos laços afetivos em suas crônicas.

7. O valor da literatura. 
“Não sei se todos ponderam”
A troca que o livro proporciona, enfatizando a importância da leitura na formação de grandes indivíduos. Sugere que a literatura molda a sociedade e a cultura.

Fernando Pessoa refletiu sobre a literatura e seu impacto na formação de identidades. Juliana Leite explora o poder transformador da literatura e da escrita em sua poesia.

8. Incertezas da vida. 
“Nau partindo – céu aberto”
A metáfora de uma nau navegando em meio ao desconhecido reflete a jornada da vida, que é marcada por incertezas e desafios, mas também pela esperança de um destino.

Em Fernando Pessoa,  a incerteza e a busca por sentido são temas recorrentes em sua obra. Assim como Rupi Kaur (poetisa canadense) foca nas incertezas e nas transições da vida moderna em seus poemas, usando uma linguagem simples e direta, visando atingir um público amplo e expressar emoções de forma imediata, assim como o poeta cearense Bráulio Bessa. 

9. Reencontro e conexões. 
“O destino, em nossas vidas”
A ideia de que o destino pode unir pessoas após longas distâncias. Destaca a importância das experiências vividas e como elas moldam os reencontros.

Cecília Meireles insere a ideia do reencontro em várias de suas obras. Márcio Aires aborda a conexão entre pessoas e a inevitabilidade dos reencontros.

10. Justiça e imparcialidade. 
“Para enxergar a cobiça”
Critica a figura tradicional da Justiça vendada, questionando a eficácia de uma justiça que não vê. Sugere que a verdadeira justiça deve ser mais atenta aos que necessitam.

Antônio Machado (poeta espanhol, 1875-1939) critica a injustiça social em seus poemas, refletindo sobre a condição humana. Adriana Falcão enfatiza a questão da justiça e seus desdobramentos na sociedade atual.

11. Máscaras sociais. 
“Quando fingir é preciso”
O contraste entre a aparência e a realidade emocional. Reflete sobre a necessidade de ocultar a dor por trás de um sorriso, uma experiência comum em muitas interações sociais.

Fiódor Dostoiévski (escritor e filósofo russo, 1821 – 1881), através de sua prosa analisa a dualidade entre aparência e realidade. Rupi Kaur aborda essa dualidade questionando a pressão para manter uma fachada positiva em meio ao sofrimento. Alice Ruiz, reflete sobre a autenticidade e a necessidade de usar máscaras na sociedade, utilizando versos livres e prosa poética, permitindo maior flexibilidade na expressão.

12. Preconceito e autocrítica. 
“Quem julga o seu semelhante”
A crítica ao julgamento alheio e a hipocrisia que muitas vezes acompanha esse comportamento. Sugere que quem julga carrega seu próprio peso emocional e precisa olhar para si mesmo.

Bertolt Brecht (poeta alemão, 1858 – 1956), critica a hipocrisia e o preconceito em suas obras. Lígia Araújo aborda o preconceito e a autocrítica em sua poesia, promovendo a reflexão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Lucília se destacam como uma obra que, embora enraizada em temas clássicos, ressoa com as inquietações da poesia contemporânea. Em suas estrofes, Lucília aborda dilemas emocionais universais que permanecem relevantes na atualidade, como a busca por significado, a complexidade das relações humanas e a luta pela justiça e pela identidade. Faz uso de metáforas e imagens evocativas que capturam a essência dos sentimentos humanos, como a nau navegando em mares desconhecidos.

O convite ao aprendizado e à reflexão sobre as escolhas de vida, presente na primeira e na quinta trova, ecoa na obra de poetas contemporâneos que enfatizam a autodescoberta e a experiência. Esse tema é central em movimentos poéticos atuais que buscam um diálogo sincero entre o eu e o mundo.

A necessidade de esconder a dor sob uma aparência sorridente, explorada na décima primeira trova, reflete um dilema contemporâneo sobre a autenticidade nas interações sociais.

A representação da mulher e suas lutas, especialmente na terceira trova, dialoga com a crescente voz feminista na poesia contemporânea. Poetas como Tatiana Nascimento e Lígia Fascetti abordam questões de gênero e identidade, refletindo sobre a autonomia feminina e a resistência contra normas sociais opressivas.

As trovas que tratam dos laços afetivos e das complexidades das relações humanas, como na sexta e na nona, encontram paralelo em obras contemporâneas que exploram a fragilidade e a força das conexões interpessoais. A poesia atual muitas vezes celebra a intimidade, ao mesmo tempo em que reconhece suas dificuldades.

A crítica à imparcialidade da Justiça, presente na décima trova, é um tema que reverbera fortemente na poesia contemporânea, onde muitos poetas se tornam ativistas sociais, utilizando suas vozes para chamar atenção às injustiças e desigualdades.

A linguagem de Lucília se destaca pela sua musicalidade e clareza, enquanto muitos poetas contemporâneos buscam uma conexão mais direta e emocional com o leitor através de uma linguagem mais coloquial e livre. Ambas as abordagens, no entanto, compartilham o objetivo comum de explorar a condição humana e os dilemas emocionais, mostrando que, apesar das diferenças de estilo e forma, a essência da poesia permanece a mesma: a busca por compreensão e conexão.

Em suma, as Trovas de Lucília oferecem um rico panorama emocional que se harmoniza com as preocupações da poesia contemporânea. Ambas as esferas artísticas exploram a condição humana, as relações interpessoais e a luta por justiça e identidade, demonstrando que, apesar das mudanças sociais e culturais, os dilemas emocionais permanecem atemporais. Lucília, assim, não apenas dialoga com o passado, mas também se coloca de forma significativa nas conversas poéticas do presente, para que novas gerações possam refletir sobre suas próprias experiências e emoções.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Contos e Lendas da África (Angola) O Sogro e o Genro

Um belo dia, um sogro e um genro saíram de casa para um passeio.

Ao anoitecer, o sogro convidou o genro para dormir e disse:

— Esta escuridão parece as trevas da cegueira.

O genro ficou triste porque era cego de uma vista, mas nada respondeu.

Noutra ocasião, de noite, ficaram a conversar. O genro disse;

— O luar está tão brilhante como uma careca luzidia e far-nos-á mal se ficarmos cá fora,

O sogro entrou em casa sem se despedir e o genro também se retirou.

Ao fim de três dias, o sogro consultou seis pessoas de respeito acerca do insulto recebido. Elas mandaram chamar o genro e o sogro.

Na presença de todos, o velho descreveu circunstanciadamente o motivo que originou o conflito. Ao concluir, disse:

— Permito-lhe que continue com a minha filha, mas não o considero mais como amigo. Sei que sou calvo, mas por que é que ele me atirou à cara esse insulto? Portanto, recuso a sua amizade.

O genro, convidado a falar, expôs:

— Eu não teria dito isso se o meu sogro não me tivesse insultado primeiramente. Fi-lo só depois de ele ter feito alusão à cegueira, propositadamente para me magoar, porque ele sabe que eu sou cego de uma vista. Agora os senhores decidam.

Os velhos responderam:

— Realmente foste insultado e não fizeste mais do que retribuir a ofensa. Assim não há motivo de desavença entre sogro e genro. Voltai a ser amigos, esquecendo ressentimentos. Tu, sogro não tens outro filho senão o teu genro e se, como mais velho, foste indelicado, ele como mais novo, seguiu o mau exemplo recebido. Não vale a pena continuarem a discutir por uma coisa já sem importância.

E foram beber à saúde de ambos, que voltaram a ser amigos.

Fonte: José Viale Moutinho (seleção). Contos populares de Angola: folclore Quimbundo. SP: Aquariana, 2012.

Dicas de Escrita (Como escrever em primeira pessoa) – 2

texto por Stephanie Wong Ken

MÉTODO 2 = Usando a primeira pessoa para construir um personagem

1. Dê ao narrador uma voz distinta. 
Narradores em primeira pessoa geralmente têm uma maneira particular de enxergar o mundo, de acordo com o seu passado. Dê ao seu narrador em primeira pessoa uma voz que seja distinta e própria dele. Considere a idade do narrador, classe e história de vida. Use esses elementos para criar a voz em primeira pessoa.

Por exemplo, se o seu narrador é um adolescente que mora na periferia de São Paulo, é bem provável que ele use gírias específicas da região e algumas variações de palavras no português.

2. Filtre as ações da história através do narrador. 
O leitor deve ver o mundo através da perspectiva do narrador em primeira pessoa. Isso significa que é preciso descrever as cenas, outros personagens e os ambientes de acordo com o ponto de vista do narrador. Tente filtrar toda a ação da história através do narrador para que o leitor possa entender sua perspectiva.

Por exemplo, em vez de dizer “Não conseguia acreditar no que estava vendo. Uma aranha assassina desceu em minha direção e logo pensei ‘estou morto’”, se concentre em descrever a ação diretamente do ponto de vista do narrador. Você pode escrever “Eu não acreditava no que estava vendo. Uma aranha descendo em minha direção. Vou morrer”.

3. Use sempre o “eu” para manter o ritmo e a ação sempre seguindo em frente. 
Tente não deixar o narrador em primeira pessoa preso no passado ou em descrições longas, principalmente se estiver escrevendo no presente.

Mantenha o ritmo e a ação seguindo. Concentre-se em manter o narrador em ação a cada cena.

Por exemplo, em vez de escrever “Eu tentei falar com a Sara sobre como eu estava me sentindo, mas ela não queria ouvir o que eu tinha a dizer”, trabalhe as ações e os diálogos. Escreva “‘Sara, por que não quer falar comigo?’ Eu estava determinado a fazê-la ouvir o que eu tinha para dizer”.

4. Leia exemplos de narrativas em primeira pessoa. 
Para ter uma noção melhor da perspectiva em primeira pessoa, leia exemplos da literatura. Observe exemplos no passado e no presente para poder entender como eles são usados. Há diversos exemplos conhecidos de obras escritas em primeira pessoa, incluindo:

- O sol é para todos de Harper Lee;
- Moby Dick de Herman Melville;
- O grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald;
- Lucy de Jamaica Kincaid;
- "Atirando num elefante" um ensaio escrito por George Orwell;
- "A morte da mariposa" um ensaio escrito por Virginia Woolf.
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continua…
Fonte:

Recordando Velhas Canções (Ai, que saudades da Amélia)


(samba, 1942)
Compositor: Ataulfo Alves

Nunca vi fazer tanta exigência 
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê você quer
Ai, meu Deus, que saudades da Amélia
Aquilo sim é que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Mas quando me via contrariado
Dizia: meu filho, o que se há de fazer ?

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era a mulher de verdade

A Nostalgia de uma Mulher Idealizada em 'Ai, Que Saudades da Amélia'
A música 'Ai, Que Saudades da Amélia', composta por Ataulfo Alves e imortalizada na voz de Mário Lago, é um clássico do samba brasileiro que retrata a figura de uma mulher idealizada, Amélia, em contraste com as mulheres da época em que a canção foi lançada, na década de 1940. A letra expressa a nostalgia de um homem que se ressente das exigências de sua atual companheira, comparando-a com a submissão e simplicidade de Amélia, que ele considera o parâmetro de 'mulher de verdade'.

A canção utiliza a figura de Amélia como uma metáfora para discutir as mudanças nos papéis sociais das mulheres. Amélia é descrita como alguém que aceitava passar necessidades sem reclamar, valorizando a resignação e a falta de vaidade como virtudes femininas. A letra reflete um saudosismo de uma época em que as expectativas em relação às mulheres eram de total dedicação ao lar e ao parceiro, sem aspirações pessoais de luxo ou riqueza. A música, portanto, pode ser vista como um comentário sobre as tensões geradas pelas transformações nos costumes e na dinâmica de relacionamentos.

É importante notar que, apesar de 'Ai, Que Saudades da Amélia' ser frequentemente interpretada como uma ode à mulher tradicional, a canção também pode ser entendida como uma crítica à idealização da mulher e à desvalorização de suas aspirações e necessidades. A Amélia da música é um ideal inatingível e, possivelmente, uma crítica à expectativa irreal que a sociedade impõe sobre o comportamento feminino. A canção se tornou um marco na cultura brasileira, sendo regravada por diversos artistas e permanecendo relevante como um retrato de seu tempo e como ponto de reflexão sobre as relações de gênero.

"Ai Que Saudades da Amélia" tem três personagens: o protagonista, sua mulher e Amélia, a mulher que ele perdeu. O tema é um confronto dos defeitos da mulher atual com as qualidades da mulher anterior. A atual, a quem o protagonista se dirige, é exigente, egoísta, "Só pensa em luxo e riqueza", enquanto a anterior é um exemplo de virtude e resignação - "Amélia não tinha a menor vaidade, (...) achava bonito não ter o que comer... '. Em suma, a primeira é o presente, a realidade incontestável; a segunda é o passado, uma saudade idealizada na figura da mulher perfeita, pelos padrões da época.

Este primoroso poema popular, coloquial espontâneo, escrito por Mário Lago , recebeu de Ataulfo Alves uma de suas melhores melodias, que expressa musicalmente o espírito da letra. E o paradoxal é que não sendo carnavalesco, este samba fez estrondoso sucesso no carnaval.

Segundo Mário Lago, "Amélia nasceu de uma brincadeira de Almeidinha, irmão de Araci de Almeida, que sempre que se falava em mulher costumava brincar - 'Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava..."'. Então, Mário achou que aquilo dava samba e fez a letra inicial de "Ai Que Saudades da Amélia". Brincadeiras à parte, a verdade é que a Amélia do Almeidinha existiu e, possivelmente, ainda vivia à época da canção. Era uma antiga lavadeira que serviu à sua família. Morava no subúrbio do Encantado (Zona Norte do Rio) e trabalhava para sustentar uma prole de nove ou dez crianças.

Com a letra pronta, Mário pediu a Ataulfo Alves para musica-la. O compositor executou a tarefa, mas alterou algumas palavras e aumentou o número de versos de doze para quatorze. "Isso é natural" - comentava Ataulfo, em depoimento para o MIS do Rio de Janeiro, em 17.11.65 -, "as composições dos parceiros que são letristas sofrem influência minha, que sou autor de letra e música. Mas o Mário não gostou. E não adiantou dizer que a música me obrigara a fazer as modificações". De qualquer maneira, como o samba estava bom, ficaram valendo as alterações.

Começou então a batalha da gravação. Ataulfo ofereceu "Amélia" em vão a vários cantores, inclusive a Orlando Silva. Como ninguém queria gravá-la, gravou-a ele mesmo na Odeon, no dia 27.11.41, acompanhado por um improvisado conjunto, batizado de Academia de Samba. Convidado na hora, Jacó do Bandolim participou dessa gravação, tocando cavaquinho, sendo sua a introdução.

Lançado no suplemento de janeiro de 1942, "Ai Que Saudades da Amélia" foi conquistando aos poucos a preferência do público, graças, principalmente, a uma intensa atuação de Ataulfo junto às rádios. Relembra Mário Lago que o locutor Júlio Louzada chegou a dedicar, na Rádio Educadora, uma tarde inteira de domingo a "Amélia", com entrevistas e o disco tocando dezenas de vezes. O resultado é que às vésperas do carnaval, quando houve o concurso para escolher o melhor samba, "Ai Que Saudades da Amélia" dividia o favoritismo com "Praça Onze", de Herivelto Martins e Grande Otelo. Realizado no estádio do Fluminense, este concurso reuniu uma enorme plateia que, de acordo com o regulamento, elegeria por aplauso os vencedores.

Precedendo "Amélia", apresentou-se "Praça Onze", valorizada por um verdadeiro show, preparado por Herivelto. Primeiro foram mostrados os instrumentos, explicando-se as funções de cada um; em seguida, vieram as passistas, um grupo sensacional de mulatas rebolando; e, finalmente, cantou-se o samba, que levou a platéia ao delírio, dando a impressão de que o certame já estava decidido. Acontece, porém, que "Amélia" também tinha seus trunfos. Tim e Carreiro, amigos de Mário e craques do time do Fluminense, que acabara de ganhar o bicampeonato carioca de futebol, haviam feito um excelente trabalho junto à torcida tricolor.

Para completar, no momento da apresentação, Mário Lago subiu ao palco e, num rasgo de eloquência e demagogia, fez um discurso emocionante, proclamando "Amélia" símbolo da mulher brasileira. Assim, quando Ataulfo e suas pastoras começaram a cantar o estádio veio abaixo, praticamente exigindo a vitória dos dois sambas. Sem a possibilidade de desempatar, o presidente do Fluminense, Marcos Carneiro de Mendonça - por coincidência, casado com uma "Amélia", a poeta Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça - autorizou o pagamento em dobro do prêmio de campeão a "Ai Que Saudades da Amélia" e "Praça Onze", cada um recebendo como se tivesse ganho sozinho.
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997.