quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Gilmário Braga (Clara, a feia)

O autor é de Serra/ES
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Eu começo essa história fazendo a seguinte pergunta: Até que ponto beleza é fundamental? Esteticamente falando, eu nunca fui, digamos assim: Uma mulher chegada à beleza, e mesmo assim sempre convivi bem com isso, até porque não tenho como mudar. Boniteza em minha pessoa somente aquela que vem de dentro, e isso já é mais do que o suficiente para eu me sentir uma pessoa feliz. Nas festas que costumava frequentar raramente algum rapaz me tirava para dançar. Naquela época ainda dançávamos de rosto coladinho, hoje não se usa mais fazer isso. Eles preferiam sempre as meninas mais bonitas. Às vezes isso me incomodava um pouco, mas não era sempre que eu me sentia assim. Minhas tentativas de arranjar um namorado, ter um relacionamento sério eram sempre frustradas. Os rapazes sempre tinham uma desculpa para não me namorar. Chegou um momento que isso começou a mexer muito comigo.

Eu me reporto agora ao ano de 1982, época boa onde as coisas eram bem diferentes de hoje em dia. Chegamos ao fim do ano, e com ele as merecidas férias, e nessa ocasião recebemos em nossa casa a minha prima Judith que veio de Minas Gerais passar uns dias conosco no Espírito Santo. Minha prima era animada, alegre, pra cima e adorava sair, curtir a vida. Um belo dia a tarde ao chegarmos da praia, resolvemos por iniciativa dela acessar um serviço que uma empresa de telefonia disponibilizava aos seus usuários. As pessoas daquela época devem lembrar do chamado serviço 145. Esse serviço era febre na época e muita gente se divertia com isso. Funcionava assim: Você discava este número e ouvia várias pessoas conversando ao mesmo tempo, era uma espécie de linhas cruzadas. Muitas pessoas passaram a se conhecer e se relacionarem a partir dessas conversas. Bastava a gente passar o nosso contato ou apanhar o de alguém que nos interessasse. Hoje em dia isso é bem menos complexo devido as redes sociais.

– Então, Clara. Vamos tentar? Não temos nada a perder. O máximo que pode acontecer é a gente tirar uma onda com a cara dos rapazes, ou eles com a nossa cara. – Disse Judith.

– Não sei, prima. Eu me acho muito tímida para essas coisas. E depois passar o meu contato para quem eu não conheço pode ser uma furada.

– Que nada, Clara. Deixa de bobagem. O que alguém pode fazer tendo somente o seu número? Quem sabe nessas linhas cruzadas esteja o seu príncipe encantado (risos). 

– Montado no cavalo branco e tudo. – Complementei sorrindo.

Judith insistiu tanto que eu acabei topando, e diante disso ela imediatamente discou. Durante alguns minutos ela conversou com várias pessoas, e pelo visto aquele não era o dia de sorte dela.

– Agora é sua vez, Clara. Coragem. Eu estou sentindo que hoje é o seu dia de sorte.

– Será, prima?

– Se você não tentar não terá como saber. Vamos, prima! Coragem!

Meio trêmula e sem jeito apanhei o telefone e disquei. Era a primeira vez que acessava este serviço. Várias linhas se cruzavam ao mesmo tempo. Uns falavam bobagens, mulheres davam gargalhadas, mas também tinha aquelas pessoas que falavam o que se aproveitasse. Depois de alguns minutos tentando entender alguma coisa, um homem, com uma voz romântica, linda, despertou meu interesse e eu o dele também. Trocamos mais algumas palavras e o nossos contatos. 

– Viu aí prima. Eu disse que hoje era seu dia de sorte.

– Será? Eu estou tão acostumada a levar fora que um a mais um a menos não vai fazer diferença.

– Deixa de ser pessimista, Clara. Acredite! Pense positivo.

Na semana seguinte Judith foi embora. Passei dias ansiosa para que chegasse logo o dia do nosso encontro onde finalmente eu conheceria o misterioso Otto, pois foi este o nome que ele me deu. Marcamos de nos encontrarmos em um restaurante muito conhecido na cidade. Eu cheguei propositalmente meia hora depois do horário combinado, disse o nome e as características dele para o garçom e fui conduzida até a mesa onde ele supostamente me aguardava. Confesso que me surpreendi. Otto estava muito bem vestido, de aparência agradável. Eu estava diante de um homem simplesmente lindo. Aproximei-me e o cumprimentei.

– Boa tarde!

Ele virou-se para mim. Usava óculos escuros na ocasião.

– Otto? – Perguntei.

– Sim. Boa tarde. Você deve ser a Clara (pausa) – Sente-se por favor!    

Eu sentei-me de frente para ele e nos pusemos a conversar. Que homem bonito ele era! Conversamos sobre vários assuntos, mas não me animei muito. Certamente um homem bonito daquele não iria querer nada comigo, e para falar verdade, eu já estava preparada para terminar aquele encontro como bons amigos. Mais curioso é que em nenhum momento ele retirou os óculos. No início me incomodou, mas depois não dei importância. A conversa com ele estava muito agradável.

– Você quer beber alguma coisa, Clara?

– Um suco está ótimo.

– Me fala um pouco mais sobre você! Como você é por exemplo.

– Você quer saber como eu sou? Isso?

– Sim. Me fala sobre você!

Enquanto conversávamos, eu tinha a nítida sensação de que Otto não olhava para mim, e sim em minha direção. Confesso que fiquei meio confusa quando ele perguntou como eu era. Pela primeira vez estava diante de um homem que conversava comigo à vontade, sem pressa ou querendo logo terminar aquele encontro e sem se preocupar com a minha aparência. Seria mesmo o meu dia de sorte como disse a Judith? E tomada por um impulso resolvi arriscar:   

– E então, Otto? Eu sou como você esperava ou eu frustrei suas expectativas? 

– Como assim, Clara? Não entendi.

– Eu achei que você fosse me dizer alguma coisa quando estivesse diante de mim.

Ele fez um breve silêncio e logo em seguida disse:

– Infelizmente eu não posso te ver.

– Na hora eu não entendi e perguntei: Como assim não pode me ver? Estamos aqui há horas conversando.

 Ele tomou fôlego e prosseguiu:

– Eu sou deficiente visual, Clara. Não enxergo nada. Sou totalmente cego. Perdi a visão ainda na adolescência. Se houver outra oportunidade te conto como tudo aconteceu.

Eu tomei um choque com aquela revelação. Cego? Que pena, um homem tão bonito. Tentei disfarçar meus sentimentos naquela hora. Logo em seguida tomei coragem e abri meu coração para ele dizendo exatamente como eu era e com isso a minha dificuldade de conseguir um relacionamento amoroso. Ele me ouviu em silêncio e depois disse:

– Pois para mim você é a mais linda das criaturas, a mais linda das mulheres. Que importância tem a beleza física? Eu estou diante de uma mulher de alma nobre, de coração puro, e com toda certeza tem muito a oferecer. Seu afeto, seu carinho e seu amor.

As palavras de Otto me deixaram emocionada. Eu nunca tinha ouvido isso de alguém. Eu estava feliz, as lágrimas desciam em meu rosto, mas era um choro de alegria. Naquela hora eu tive a certeza que estava diante do homem da minha vida. Saímos dali como namorados, e pouco tempo depois nossas famílias foram apresentadas e tanto de um lado como do outro recebemos todo apoio.

Namoramos, noivamos e nos casamos, e como não poderia deixar de ser, minha prima Judith foi nossa madrinha de casamento. Continuamos juntos e somos felizes até hoje. Agora posso dizer que em se tratando de amor, beleza não é fundamental. O amor sim. Este será sempre fundamental para conservarmos uma relação, além de respeito e cumplicidade.

Palavras do autor: 
Embora essa seja uma obra de ficção, nos deparamos com diversas situações como essa em nosso cotidiano.

Fonte: Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Estante de Livros ("Kalki", de Gore Vidal)

RESUMO

"Kalki" é um romance de Gore Vidal publicado em 1978, que se passa em um futuro distópico, especificamente em um mundo onde os valores e a moralidade da sociedade foram profundamente corrompidos. O livro é uma crítica incisiva à política contemporânea, à religião e ao estado da civilização.

A história é narrada através da perspectiva de uma série de personagens, mas o foco principal está em Kalki, uma figura messiânica que representa a última encarnação de Vishnu, o deus hindu preservador. O enredo se desenrola em um cenário em que a sociedade se deteriorou sob o peso da corrupção, do consumismo e da guerra. Kalki, que surge como um salvador, é uma figura ambígua que desafia as noções tradicionais de heroísmo e sacrifício.

Em 2067, após uma catástrofe nuclear, os Estados Unidos estão fragmentados. O protagonista, Theodore "Ted" Barker, é um jovem jornalista que descobre um movimento messiânico liderado por Kalki, uma figura misteriosa, que promete uma nova era de paz e prosperidade, mas seu verdadeiro objetivo é criar uma raça superior através da engenharia genética. Ted se torna um discípulo de Kalki, mas logo questiona as intenções do líder.

TEMAS CENTRAIS

Messianismo e Redenção: 
Kalki é apresentado como uma figura messiânica, mas Vidal subverte a ideia tradicional de um salvador. A busca por redenção é complexa; ele não é necessariamente um herói, mas um reflexo das falhas da humanidade e das instituições que a governam. Isso provoca uma reflexão sobre a natureza da salvação e a responsabilidade individual.

Crítica Política: 
A obra é uma crítica contundente à política americana e ao sistema de governo. Através da descrição de líderes corruptos e de uma sociedade decadente, Vidal examina a hipocrisia da política e a alienação do cidadão comum. O livro sugere que a corrupção é endêmica e que as instituições falharam em servir ao povo.

Religião e Poder: 
Gore Vidal explora a intersecção entre religião e poder, questionando como as crenças espirituais podem ser manipuladas para fins políticos. A figura de Kalki, como um deus encarnado, levanta questões sobre a fé, a manipulação religiosa e o papel que essas crenças desempenham na sociedade.

Desumanização e Alienação: 
O ambiente distópico do livro ilustra a desumanização do indivíduo em uma sociedade dominada pelo consumismo e pela superficialidade. Vidal retrata personagens que lutam com a alienação, refletindo a crise de identidade em um mundo que valoriza a aparência sobre a essência.

IMPACTO CULTURAL

1. Recepção crítica: 
Kalki recebeu críticas mistas, mas é considerado um clássico da ficção distópica.

2. Influência em outros autores: 
Inspirou obras de autores como Don DeLillo e Margaret Atwood.

3. Contexto histórico: 
Reflete a ansiedade pós-guerra fria e a crise de confiança nos líderes políticos.

ESTILO E ESTRUTURA

O estilo de Gore Vidal em "Kalki" é caracterizado por uma prosa incisiva e um diálogo afiado. Ele utiliza uma narrativa não linear, intercalando diferentes pontos de vista e contextos históricos, o que enriquece a complexidade da história. A construção dos personagens é multifacetada, permitindo que eles sejam simultaneamente representativos de arquétipos e indivíduos únicos.

CONCLUSÃO

"Kalki" é uma obra que transcende seu contexto temporal, abordando questões universais sobre a moralidade, a política e a condição humana. Gore Vidal oferece uma visão sombria, mas perspicaz do futuro, instigando os leitores a refletirem sobre seu papel dentro da sociedade e as implicações de suas escolhas. O livro se destaca não apenas como uma narrativa envolvente, mas como um manifesto crítico que ressoa com inquietações contemporâneas.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 04


José Feldman (Um encontro inusitado)

Era uma tarde tranquila na biblioteca de um universo que desafia a nossa compreensão. Estantes infinitas se estendiam até onde os olhos podiam ver, cobertas de livros de todas as épocas e estilos. Em um canto iluminado por um brilho suave, três figuras notáveis saíram de uns livros e tiveram um encontro inusitado além da imaginação: William Shakespeare, Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato.

Shakespeare, com seu ar aristocrático e uma pena na mão, foi o primeiro a se pronunciar.

— Ah, senhores! Que prazer imenso é vê-los! Eu sou William Shakespeare, dramaturgo e poeta. E vocês devem ser os ilustres Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato. Um encontro de mentes brilhantes, sem dúvida!

Poe, com seu olhar sombrio e uma aura de mistério, respondeu:

— Sim, sou eu, Edgar Allan Poe. O gênio do terror e do macabro. E você, Sr. Shakespeare, deve saber que seus sonetos são maravilhosos, mas, francamente, você precisa de um pouco mais de escuridão em suas obras.

Lobato, sempre com um sorriso no rosto e uma caneta na mão, interveio:

— E eu sou Monteiro Lobato, o escritor para crianças e do folclore do Brasil! Prazer em conhecê-los, senhores. Agora, o que vocês precisam é um pouco de imaginação infantil! Shakespeare, seus dramas são tão sérios que eu me pergunto se você já ouviu uma boa piada!

— Vamos lá, então! — disse Shakespeare, ajeitando seu colarinho. — Eu, que escrevi sobre o amor, a ambição e a tragédia, defendo que a complexidade da condição humana é meu forte. O que você tem a dizer sobre isso, Poe?

— Complexidade? — Poe levantou uma sobrancelha. — O que você entende de complexidade, meu caro? Você escreve sobre amores perdidos, enquanto eu exploro as profundezas da loucura e da morte. Em "O Corvo", por exemplo, abordei a obsessão de um homem que perde sua amada. Não é isso que chama a atenção?

Lobato se inclinou para frente, rindo.

— Loucura, sim, mas e o humor? Vocês dois parecem estar sempre tão sérios! Eu, em "O Sítio do Picapau Amarelo", trago a fantasia e a brincadeira! Afinal, quem não gostaria de conversar com um saci ou uma boneca de pano que ganha vida? Isso é o que eu chamo de literatura!

Shakespeare, com um sorriso travesso, respondeu:

— Então você acha que um saci é mais interessante que um Hamlet? Um príncipe que discute sobre a vida e a morte? Venha, Monteiro, não me diga que prefere a companhia de um personagem que não sabe nem se deve existir!

Poe não deixou barato:

— E o que dizer de sua "Comédia dos Erros"? Uma confusão de identidades que só pode ser resolvida com um final feliz? Isso é muito otimista para o meu gosto. Onde está a tragédia, a verdadeira essência da vida?

Lobato, rindo ainda mais, respondeu:

— Olha, eu não diria que confundir personagens é um erro. É mais uma estratégia de marketing! E, Shakespeare, você fala de tragédia, mas seus personagens têm um talento incrível para fazer escolhas ruins. Que tal um pouco de sabedoria popular? "Quem não arrisca, não petisca!" E olha que eu sou um especialista em ensinar isso às crianças!

A conversa continuou, repleta de risadas e provocações. A biblioteca, testemunha desse encontro inusitado, parecia vibrar com a energia das palavras trocadas. Após horas de debate, todos concordaram que, apesar das diferenças, o que realmente importava era o amor pela literatura.

Poe, finalmente relaxando, disse:

— Sejamos francos, senhores. Cada um de nós tem sua própria abordagem para a complexidade do ser humano. Shakespeare com seu romantismo, Lobato com sua fantasia e eu com meu terror.

Shakespeare assentiu, um brilho de compreensão em seus olhos:

— Exatamente, meu amigo. E o que seria do mundo sem essas diferentes vozes? A diversidade é a alma da literatura.

Enquanto Shakespeare, Poe e Lobato discutiam animadamente, uma nova presença se fez notar na biblioteca. A luz suave que iluminava o espaço pareceu se intensificar, e um homem de porte elegante, com um olhar penetrante e um leve sorriso nos lábios, se aproximou. Era Machado de Assis.

— Boa tarde, senhores! Posso me juntar a essa conversa tão vibrante? Sou Machado de Assis, e ouvi falar sobre suas obras. Estou curioso para saber o que pensam sobre "O Alienista".

Shakespeare, sempre cortês, respondeu:

— Senhor Machado, é uma honra tê-lo entre nós. "O Alienista" é uma obra fascinante. A forma como você aborda a loucura e a razão é singular. Mas diga, o que o levou a explorar a mente humana dessa maneira?

Machado, com um brilho nos olhos, explicou:

— A loucura é um tema que me intriga profundamente. Em "O Alienista", eu queria discutir não apenas a sanidade, mas também o que é considerado normal em nossa sociedade. O Dr. Simão Bacamarte, que se dedica a entender a mente, acaba por se perder em sua própria obsessão. É uma crítica à ciência e à razão.

Poe, com um sorriso enigmático, interveio:

— Fascinante, de fato! Mas você não acha que, em sua busca pela razão, Bacamarte se torna uma figura trágica? Ele se assemelha aos meus personagens que, perdidos em suas obsessões, acabam se destruindo. A diferença é que você traz uma ironia bem-humorada à sua narrativa, enquanto eu prefiro o tom sombrio.

Machado assentiu, apreciando a observação.

— Sim, Edgar. A ironia é um dos meus instrumentos. Eu quis mostrar como a busca pela lógica pode ser tão irracional quanto a própria loucura. 

Shakespeare, com seu estilo característico, comentou:

— Muito bem colocado, Machado! Mas me pergunto se a crítica social em "O Alienista" não perde um pouco da profundidade emocional que permeia minhas tragédias. Bacamarte, embora intrigante, parece distante. Não seria mais poderoso se ele tivesse um dilema mais humano, como o meu Hamlet, que luta com questões de vida e morte?

Machado sorriu, reconhecendo a validade da crítica.

— Você tem razão, William. A emoção é fundamental na literatura. Contudo, minha intenção foi refletir a sociedade de uma maneira mais cerebral, quase como uma fábula. O que importa é que, ao final, Bacamarte é um espelho de todos nós.

Lobato, sempre entusiasmado, não deixou de defender seu ponto de vista:

— E eu gostaria de adicionar que, enquanto você aborda a loucura, eu trago a fantasia como uma forma de libertação! Os personagens do seu livro, cercados pela racionalidade, poderiam se beneficiar de um pouco de magia! Imagine Bacamarte conversando com o Saci ou criando novas teorias com a ajuda de Emília!

Machado riu, imaginando a cena.

— Seria uma combinação curiosa, sem dúvida! A magia poderia oferecer a Bacamarte o que falta em sua vida: um pouco de leveza. 

Após a troca de ideias, Machado de Assis, com seu olhar perspicaz, fez uma reflexão sobre as obras de seus colegas.

— Senhores, é interessante notar que, apesar de nossas abordagens distintas, todos nós tratamos da condição humana. William, você mergulha nas profundezas da emoção, explorando o amor e a tragédia. Edgar, você desafia os limites da sanidade e do terror, revelando a fragilidade do ser humano diante do desconhecido. E Lobato, você nos lembra da importância da imaginação e da infância, onde tudo é possível.

Ele fez uma pausa, permitindo que suas palavras ecoassem.

— Assim como Bacamarte busca entender a mente humana, nós buscamos entender o que nos torna humanos através de nossas obras. Cada um à sua maneira, contribuímos para um entendimento mais profundo da vida e da sociedade. E, se pudermos aprender uns com os outros, talvez possamos criar um universo literário ainda mais rico.

Os três escritores, tocados pela análise de Machado, concordaram, reconhecendo que, no final das contas, a literatura é um diálogo contínuo. Eles estavam apenas começando a explorar as maravilhas que poderiam surgir de suas interações, prontos para desafiar e inspirar uns aos outros, como verdadeiros mestres da palavra.

Com risadas e promessas de um novo encontro, os escritores se despediram, cada um levando consigo a certeza de que, embora suas obras fossem diferentes, a paixão pela escrita os unia em um laço eterno. E assim, na biblioteca dimensional, as histórias continuaram a se entrelaçar, trazendo à vida a magia da literatura.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Eduardo Affonso* (Cyrano na Pandemia)

* Eduardo Affonso é de Belo Horizonte/MG
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No início da pandemia, a Daniella me mandou um lote de máscaras, cada uma com uma estampa diferente. Tudo higienizado, esterilizado, bem embaladinho.

O uso ainda não era obrigatório, mas quis logo estrear as minhas – em especial uma, perfeita para o passeio com os cachorros, porque tinha desenhos de patas caninas.

A Daniella me conhece razoavelmente, mas devia ter se esquecido do meu perfil. Não o psicológico – o perfil literal mesmo. O narigão.

As máscaras eram do tipo peleja: se cobriam o nariz, descobriam a boca, e vice-versa. Sabe vestido de periguete? Aquele padrão.

Sob pena de parecer neurótico ou obsessivo, passei a usar duas máscaras – uma cobrindo o narigão e parte do lábio superior; outra, a boca e parte do queixo. Funcionou bem, considerando que eu não ia mesmo conversar com ninguém e respiração não chega a ser uma necessidade básica.

Consultei sobre modelos maiores. Claro que havia! E me chegou nova remessa, com máscaras de tamanho mais generoso.

Mas para um nariz como o meu, generosidade não basta. É preciso desperdício.

As pautas identitárias conseguiram que houvesse poltronas mais largas nos cinemas, teatros, auditórios e aviões, para acomodar pessoas com sobrepeso. Lojas passaram a disponibilizar roupas de modelagem compatível com índices de massa corporal pra lá de 30. Mas ninguém pensou nos portadores de nariz pluçaize*.

Não há óculos cujas pontes não nos cavem uma vala horizontal no ponto de apoio. Não há armação com plaquetas afastadas o bastante para nossa envergadura nasal. Vale para óculos de grau, vale para os de natação. Conhece algum narigudo campeão de 800 metros cráu*? Nem eu. Quando você se sentir profundamente frustrado, lembre-se do narigudo que tentou mergulhar de esnórquel*.

Não há boné com aba de 20 cm. Não se vende Rinossoro em embalagem de 500 ml.

O pior é que nem somos uma minoria tão desprezível assim. Juca Chaves, Jean Paul Belmondo, Jean Reno, Luciano Huck, Gerard Depardieu. Para não falar em Maria Bethânia, Maria Callas, Barbra Streisand e a bruxa da Branca de Neve.

Para não incomodar de novo a Daniella, acabei comprando mais algumas máscaras numa loja de artigos hospitalares. Antes, sondei quem estava fabricando máscaras caseiras (sempre é bom dar preferência ao pequeno empreendedor), mas ninguém produzia no tamanho Extra GGG Ultra Plus. O moço da loja disse que aquelas eram “oficiais”, do tipo seguro Golden Platinum, com cobertura total. Quebrei a cara.

Fabricantes de máscaras, óculos, burcas, esnórqueis, vaporizadores: pensem em nós. Claro que o gasto de material vai ser muito maior, mas somos um mercado consumidor disposto a pagar mais caro por um produto adequado à nossa pujança nasal. Se não se adaptarem – como fizeram as indústrias de cosméticos para pele negra, de biquínis manequim 54 ou de tesouras para canhotos – é porque vocês não enxergam um palmo adiante do nariz.
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* VOCABULÁRIO
Cráu = crawl. Técnica de natação.
Esnórquel = tubo oco, preso na boca, utilizado por mergulhadores para respirar debaixo da água.
Pluçaize = plus size. Tamanhos maiores.

Fontes: https://tianeysa.wordpress.com/2020/07/24/cyrano-na-pandemia/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Vereda da Poesia = Helena Kolody (Paraná, 1912 - 2004)


Figueiredo Pimentel (A faquinha e a bilha quebrada)

Vicente já está de volta da escola, sossegado, sim, mas a deitar sua olhadela para as vistosas lojas. De repente para. Que estará ele a ver com tanta curiosidade? Um açafate cheio de faquinhas brancas, lindíssimas. Ah! como devem cortar bem! Que lâminas tão polidas e brilhantes! E não são caras: – a oito vinténs. Vão-se-lhe os olhos, mas falta-lhe o melhor; oito vinténs é uma quantia demasiada para as suas finanças. A mãe, uma mulher pobre, apesar de trabalhar muito, pode-lhe lá dar dinheiro para comprar uma faquinha!

— Oh! diz o Vicente de si para si; que poderia eu fazer para ganhar aquele dinheiro?

Saía da loja um sujeito carregado de compras.

— Oh! rapazinho, ajudas-me a levar estas encomendas para minha casa?

— De muito boa vontade, respondeu-lhe o Vicente, se não for muito longe, porque minha mãe se zanga quando venho tarde da escola.

— É muito perto daqui, não te demoras nada.

O Vicente pegou em dois pacotes, e foram ambos andando até a rua onde morava o homem.

— Está bem, rapazinho, aqui tens pelo teu trabalho, – e deu-lhe dois vinténs.

— Muito obrigado, meu senhor, mas eu não quero receber dinheiro por um serviço tão pequeno.

— Pois então guarda-os para te lembrares de mim, tornou-lhe o sujeito, entrando em casa.

Para a rua correu Vicente, pulando de contente.

— Ó mãe!! ó mãe! Olhe o que me deram quando eu voltava da escola: dois vinténs, ambos novinhos (e pôs-se a contar o caso à mãe).

— Se eu pudesse ganhar mais seis vinténs, chegava-me exatamente para comprar uma faquinha. Ah! se a mãe soubesse como são bonitas!

— E para que precisas tu de uma faquinha?

— Ó! mãe! Com uma faquinha posso fazer muitas coisas: aparar os meus lápis e os dos meus condiscípulos; cortar ramos na alameda para chicotes e flautinhas; arranjar um barquinho; e até ajudá-la a descascar as batatas para o jantar, porque as nossas facas são muito grandes. Parece-me que já a estou a ouvir dizer: – Então, ainda não viste a faquinha do Vicente? É tão bonita! E a mãe, quando eu tiver os oitos vinténs, dá-me licença para comprar uma?

— Dou sim, filho. O que eu não sei é como tu os hás de ter.

Vicente passou o serão a imaginar como poderia ganhar alguns vinténs, mas, por mais que batesse na testa, foi-se deitar sem nada ter descoberto.

Um dia, às sete horas da manhã, havia apenas alguns instantes em que se levantara, tirou a lama da porta. De repente, ergueu casualmente a cabeça, e deu com o tio Martinho à janela. É um dos vizinhos.

— Oh! pensa o Vicente; o tio Martinho está já tão velho para tirar a neve que lhe caiu à porta; depressa a retirou para ele não escorregar quando for sair.

Dito e feito. Quando Vicente voltava para casa, abriu Martinho a janela e pôs-se a chamá-lo.

— Fizeste bem, meu rapazinho, em me evitar alguma queda. Se repetires isto quando tornar a chover, dou-te um vintém.

Vicente pensou nas faquinhas, e aceitou contentíssimo a proposta. Infelizmente a chuva não cai todos os dias a cântaros, e decorreu muito tempo antes de ter o dinheiro necessário.

E assim passaram-se semanas e semanas. Trabalhando daqui e dali, mesmo assim o menino apenas conseguiu arranjar sete vinténs.

Só lhe faltava um, para completar a quantia com que poderia comprar a ambiciosa faquinha.

— Ah! se chovesse muito esta noite. Era o pensamento fixo do rapazinho, em cada serão, quando se ia deitar.

***

Uma manhã levantou-se, correu à janela para espreitar o tempo, e a mãe viu-o andar aos saltos, e bater palmas.

Não sabia o que isso queria dizer, mas adivinhou-o quando viu o Vicente, depois de lhe ter vindo pedir a bênção, e de lhe dar um beijo, pegar na pá e na vassoura, e sair de casa.

A mãe pôs-se a espreitá-lo. Que azáfama! que desembaraço! As mãos roxas da friagem, mas a vassoura num corrupio.

Acabou. O Martinho abre a porta, sai, tira a bolsa, e o oitavo ambicionado vintém passa da mão do vizinho para a de Vicente. Correr a ir buscar os outros sete vinténs, guardados com tanto carinho numa caixinha, almoçar e partir para a escola, foi obra de um momento.

Como ele salta pela rua fora! Que leva fechado na mão? Um tesouro que tem medo de perder: oito vintenzinhos em que se vai revendo, contando-os e tornando-os a contar.

Lá está já na rua da loja sedutora. Um instante mais e a faquinha é dele.

***

Do outro lado da rua vai uma menina, vestida pobremente, e andando com muita cautela para não escorregar. Parece transida de frio; as mãozinhas, roxas de todo. Leva uma bilha de leite. O Vicente ia já a entrar na loja, quando, de repente, vê a menina escorregar e cair ao atravessar a rua. A bilha quebrou-se-lhe! O leite que ia ser o almoço da avó, todo entornado!

Quando a vê cair, corre para a ajudar a levantar-se. Já em pé, a menina, lavada em lágrimas, conta-lhe que não leva nem um real, e que a avó ainda não almoçou. Vicente olha para os seus oito vinténs, depois para a loja onde estão penduradas as faquinhas, depois para a pequenina, que ainda continuava a chorar. Reflete um momento.

— Vem comigo, diz-lhe ele pegando-lhe na mão; ambas haveis de ter que almoçar.

Levou-a a outra loja em que não se viam faquinhas, mas uma grande quantidade de pratos, xícaras, bilhas de todos os tamanhos e de todas as cores. O rapazinho escolheu uma bilha azul e branca, muito bonita, pagou um tostão à dona da loja, e ato contínuo foi à leiteria, onde a mandou encher de leite. De todo o seu dinheiro, nada lhe sobrou.

A menina, doida de contente por ter uma bilha nova, sorriu-se e consolou-se. Retomou o caminho de casa, levando ao lado o seu novo conhecido, mas sempre com mil precauções para não tornar a cair.

E, ao separar-se dele, perguntou-lhe:

— Como te chamas?

— Vicente.

— E eu, Maria. A minha avó diz que ainda sou pequenina para guardar dinheiro; mas, quando crescer, hei de ter muito, e hei de te comprar um brinquedo, porque hoje foste um anjinho para mim.

As duas crianças ainda conversaram alguns instantes. Depois separaram-se, prometendo que haviam de ser amigos para sempre. Maria correu para avó, mostrou-lhe alvoroçada a sua bilhinha nova e contou-lhe tudo o que lhe aconteceu. Vicente seguiu para a escola, resplandecente de alegria, pela boa ação cometida.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Motorista barbeiro”

Antigamente, os barbeiros eram conhecidos não apenas por realizar cortes de cabelo e barba, mas também por desempenhar tarefas como extração de dentes, remoção de calos e unhas, entre outros.

Previsivelmente, tais serviços, incluindo pequenas cirurgias médicas e odontológicas, eram executados de forma precária, pois eles não possuíam nenhuma habilitação técnica, por isso as consequências desagradáveis, senão desastrosas, aos infortunados “clientes”.

Conta-se que em uma cidade do interior do Brasil, um dos barbeiros locais, sentindo fracassar seu faturamento pela concorrência de outros, viajou e quando voltou, trouxe na bagagem outro tipo de equipamento: seringas, pinças e boticões, passando a extrair os dentes de amigos e conhecidos, mediante pagamento.

Vem de longe essa expressão muito usada no dia-a-dia das cidades brasileiras. Há quem se reporte ao século XIX, quando ganhou impulso a fabricação de carros. E se alude aos profissionais que cuidavam de barbas e cabelos, certamente não era pelos erros na execução dessas tarefas e sim, quando atuavam como supostos protéticos, enfermeiros ou médicos. 

Não é comum advogados, engenheiros, contadores, agrônomos, economistas e magistrados, por mais que cometam erros, serem rotulados de “barbeiros”. Isso é mais comum com os profissionais da saúde, valendo lembrar o ditado que bem ilustra essa assertiva: - “o erro do médico a terra encobre; a do dentista está na cara”. 

Aos motoristas rotulados com essa pecha, é emblemático o caso da jovem que reclamava que seu antigo carro falhava muito e não tinha força para subir qualquer ladeira. Depois do mecânico passar uma semana testando o motor na tentativa de descobrir o defeito, e já tendo trocado todas as peças possíveis, observou que a proprietária partia com o veículo funcionando normalmente, porém voltava reclamando do mesmo problema: o motor estava rateando. 

Angustiado e sem saber mais o que fazer, sugeriu ele à distinta senhorita que fossem dar uma volta, com ela na direção e ele como passageiro, observando. No dia do “teste drive” ela ligou o motor e no momento da partida, puxou o afogador ao máximo e candidamente comentou: “isto aqui é um ótimo lugar que eu uso sempre para pendurar a minha bolsa!...”. Perplexo, o mecânico viu logo que o defeito nunca fora do carro e sim da motorista “barbeira”, que sem noção da utilidade do afogador, usava-o indevidamente como cabide, comprometendo o funcionamento normal do veículo.

E quem de nós nunca viu uma “barbeiragem” pelas ruas e estradas do Brasil? Ser chamado de “barbeiro” é quase uma ofensa, mas há situações que não escapam desse qualificativo, expresso ou implícito. Tendo perguntado ao vizinho se sua esposa já estava dirigindo bem o carro da família, após ser aprovada com louvor pela autoescola do bairro, veio a resposta inesperada:  
 
- Está sim! Inclusive, ela já faz as curvas na mesma hora que a estrada faz... 

Foi em Portugal que passaram a ser chamados de “barbeiros” aqueles que, de maneira tosca ou imperfeita, executavam qualquer serviço. Mas quando o termo chegou ao Brasil, desembarcou junto com os primeiros automóveis, então esse passou a ser o conceito informal atribuído a quem dirige mal, judia do veículo na hora de estacionar, engata marcha à ré sem olhar quem está atrás, prejudica os demais condutores e promove pânico na via pública. 

Se no século XV o termo “barbeiro” era atribuído a quaisquer atividades mal executadas, com o passar do tempo foi relacionado precipuamente aos motoristas, daí a expressão “motorista barbeiro” - ou seja, aquele que transforma em vítima o próprio carro ou o trânsito como um todo, já comprometido pelos constantes engarrafamentos nas médias e grandes cidades, principalmente quando esse vilão insiste em dirigir bisbilhotando o celular. 

Ou, o que é mais preocupante, quando ainda sem a necessária versatilidade com os veículos de câmbio automático, os “barbeiros” invadem lojas, sobem em canteiros ou derrubam paredes de garagens, simplesmente porque pisam fundo no acelerador pensando que é o feio! 

Não por acaso, tramita no Senado Federal o projeto de lei n.º 3.688/2024 propondo a utilização de carros automáticos e elétricos nas aulas práticas de direção, visando a obtenção da CNH. Pode ser que com essa medida legislativa, esse tipo de barbeiragem diminua bastante ou pelo menos fique limitada àqueles que são “barbeiros” por incrível vocação...  
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fontes: Texto enviado pelo autor.
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segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 67

 

José Feldman (Amor e Tragédia nas Sombras da Intolerância)


José era um homem comum, um judeu não praticante que trabalhava incansavelmente em um hospital na cidade, jovem ainda, tinha cerca de 21 anos de idade. O dia a dia se desenrolava entre tubos de ensaio, mas havia algo de especial em seu coração que ainda não tinha despertado. Isso mudou quando conheceu Najla, uma colega de trabalho, uma jovem de beleza estonteante e olhos que refletiam a dor de uma vida conturbada. Ela era jovem também, 19 anos de idade, filha de imigrantes libaneses que traziam consigo a cultura e a religião com muita devoção.

A atração entre eles foi imediata, mas havia um empecilho: Najla estava em um relacionamento com um rapaz que parecia prometer o mundo a ela. No entanto, essa promessa se desfez como um castelo de areia quando ele a engravidou e desapareceu, deixando-a sozinha e vulnerável. A família de Najla, profundamente religiosa, a declarou impura e a expulsou de casa, condenando-a ao ostracismo por um erro que não era apenas dela.

Desesperada e sem ter aonde ir, Najla encontrou abrigo em José. Ele, que sempre teve um coração generoso, não hesitou em alugar um pequeno apartamento para que ela pudesse ter um lugar seguro para esperar o nascimento de seu filho. Durante o dia, ele convivia com sua família, que nada suspeitava de seu amor secreto. À noite, ele se tornava o porto seguro de Najla, compartilhando momentos de ternura e esperança em meio a um mundo que parecia estar contra eles.

O amor que floresceu entre os dois era um oásis em um deserto de intolerância. José adotou a ideia de que a filha que estava por vir, seria um símbolo de sua união, um laço que desafiava as barreiras que a sociedade impunha. O nascimento de Yasmin, em 9 de dezembro de 1975, trouxe uma luz nova à vida de ambos. José não a via apenas como a filha de Najla; ele a amava como se fosse sua, um amor profundo e incondicional.

Mas essa felicidade era efêmera. Em 14 de maio de 1976, tudo mudou. Naquele dia fatídico, José, Najla e Yasmin estavam deixando o prédio para um passeio no parque planejando o futuro juntos, em um momento simples virou tragédia. Ao saírem do apartamento, dois ladrões armados os abordaram. O pânico se instalou quando um dos bandidos tentou arrancar a pulseira do pulso de Yasmin. Com um empurrão, a inocente criança caiu, batendo a cabeça e rolando escada abaixo, enquanto seu choro ecoava em meio ao caos.

José, em um ato desesperado, correu para agarrar Yasmin, mas quando finalmente a alcançou, o silêncio que se seguiu era ensurdecedor. Ela já estava sem vida. O grito de Najla, misturado ao desespero de José, atraiu vizinhos que correram para ajudar, mas nada poderia salvar a pequena. Os ladrões fugiram diante do ocorrido. A cena era um pesadelo, um momento que se tornaria uma ferida aberta em suas almas.

A vida continuou, mas José e Najla foram consumidos pela dor. O luto se transformou em um peso insuportável; um mês depois, Najla fez a escolha trágica de tirar a própria vida. Ele se viu sozinho, mergulhado em uma depressão que parecia não ter fim. Sua família, alheia ao que realmente havia acontecido, levou-o a um psiquiatra. No entanto, a ajuda parecia inútil diante de sua dor insuportável. Em um momento de desespero, ele tentou se suicidar, mas o destino tinha outros planos e ele sobreviveu, sentindo-se ainda mais desamparado.

A culpa corroía sua alma. Ele culpou Deus, questionando a razão pela qual um amor tão puro e sincero entre um judeu e uma árabe não poderia existir em paz. As noites se tornaram um tormento; os sonhos eram assombrados pela imagem de Yasmin rolando escada abaixo, pelos gritos de Najla, pela dor que não se dissipava.

A tragédia de José e Najla se desenrolava como uma peça shakespeariana, repleta de amor, perda e a eterna busca por aceitação em um mundo que muitas vezes se recusa a entender. O amor que havia florescido entre eles, mesmo em meio a tanta adversidade, foi sucumbindo sob o peso da intolerância e da tragédia. A história deles, marcada por momentos de beleza e dor, nos lembra que, apesar das barreiras que tentamos erguer, o amor verdadeiro é uma força imbatível, ainda que, por vezes, tragicamente efêmera.

Décadas se passaram desde aquela tragédia que transformou José, mas a dor que ele carrega é tão viva quanto no primeiro dia. Tentou reconstruir sua vida, mas a imagem de Yasmin rolando escada abaixo e a visão de Najla, caída no meio da rua, não o abandonaram. Essas memórias o assombram, como sombras persistentes que se recusam a se dissipar.

Hoje, sozinho em sua casa, nos momentos de quietude, especialmente à noite, quando a escuridão cobre o mundo, os pesadelos vêm. Ele se vê novamente naquele dia fatídico, o grito de Najla ecoando em seus ouvidos, a impotência de não poder salvar a filha que nunca teve a chance de conhecer. José repete para si mesmo que deveria ter feito mais, que deveria ter encontrado uma maneira de protegê-las. A culpa é um peso que ele carrega, uma carga invisível que o atormenta.

A ideia de ter filhos nunca foi uma possibilidade. O medo de reviver aquela perda, de ver outra criança diante de um perigo semelhante, paralisou seu desejo de paternidade. Ele observa as crianças brincando no parque, sentindo uma mistura de amor e dor. Os risos que ecoam ao seu redor apenas intensificam o vazio em seu coração. As lembranças de Yasmin, que poderia ter corrido por aquelas mesmas calçadas, o perseguem como um fantasma.

As noites se arrastam, e os pesadelos se tornam mais frequentes. Ele acorda em suor, o coração acelerado, tentando se lembrar que o que passou não pode ser mudado. Mas a mente é traiçoeira, e os sonhos levam-no de volta àquela escada, àquele momento de desespero. Ele se pergunta se algum dia encontrará a paz que tanto almeja, se as cicatrizes da mente podem realmente cicatrizar.

Os anos se acumularam, mas a dor não diminuiu. Ele busca consolo em pequenos rituais, em memória de Najla e Yasmin, falando com elas em sussurros, como se ainda pudesse alcançar suas almas. Ele vive com a esperança de que, ao menos, elas saibam que ele as amou profundamente, que sua vida foi marcada por um amor que desafiava todas as barreiras, mas que também trouxe uma dor insuportável.

A sombra do passado é uma companheira constante, e José convive com ela. Ele sabe que, mesmo após tanto tempo, o amor e a perda estão entrelaçados em sua história, e que a memória de Yasmin e Najla permanecerá viva dentro dele, como um lembrete de que a vida é preciosa, mas também frágil.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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A. A. de Assis (Pescador chicorgo)

A. A. de Assis (Antonio Augusto de Assis) é de Maringá/PR
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O professor Amauri Meller, diretor das Faculdades Maringá, pioneiro ilustre e respeitado na cidade, nas horas vagas sempre curtiu uma boa pescaria. Lá um dia, na beira do rio, entrou a discutir detalhes com um pescador profissional. Ele, um homem da cidade, a deitar erudição sobre peixes no ouvido de um caboclo que já nascera mexendo com anzóis e tarrafas.

Sei lá eu de que falavam, qualquer coisa referente a tipos de iscas, temperatura da água, estações do ano… O fato é que Amauri tentava provar por a + b que em determinadas horas de determinados dias, e em determinadas circunstâncias, a colheita de peixes costumava ser mais farta. Tentava provar e provava. Por a + b. 

– Credito no senhor –  disse o homem.  Mas só porque o senhor é um chicorgo.

Renomado professor de física e de matemática, acostumado a lidar com senos, cossenos e mil complicadas fórmulas, Amauri até entende também bastante de agricultura, pecuária, piscicultura e de outras artes e engenhos. Contudo não imaginava o que pudesse ser chicorgo.

Ficava chato confessar sua insapiência no assunto. O pescador poderia estar armando um jeito de pisar nalgum ponto fraco da cultura do mestre. Iria depois dizer que certos segredos são reservados aos nascidos na profissão. E o professor da cidade podia entender lá das suas trigonometrias e dos seus Pitágoras, mas de chicorgo não sabia nada.

Amauri desviou a conversa. Quis saber como ia a soja na região… se o pasto estava bom para o gado… se o pessoal do sítio estava contente com os preços dos seus produtos… se ainda havia lavouras de café nas vizinhanças…se isso, se mais aquilo… Mas nada de atinar com o que pudesse vir a ser o tal de chicorgo.

Pensou em deixar de lado o vexame e humildemente pedir ao caboclo que lhe traduzisse a estranha palavra. Mas… e se o homem se ofendesse? E se fosse coisa tão simples que reduzisse o prestígio do professor?

Pergunta, não pergunta… melhor matutar um pouco mais.

Chicorgo? – indagava Amauri às distantes memórias do seu tempo de colégio interno. Talvez fosse algum regionalismo. Algum dialeto do sul ou do norte. O homem coçou a barba e veio com nova pergunta:

– O senhor, que estudou chicorgo, pode me dizer se é mesmo verdade que as represa que tão fazendo nos rio vai desarranjar os tempo de chuva?

– Há possibilidade de que sim. A natureza está sendo muito violentada.

Mas que diabo… será que chicorgo tem algo a ver com meteorologia?

Não tinha. Depois de muita conversa, o professor afinal matou a charada: “chicorgo” era apenas a maneira como o  simpático parceiro de pesca pronunciava a palavra “psicólogo”. E ele nem para desconfiar…  

(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo em 26 de setembro de 2024)

Fontes: Angelo Rigon
https://angelorigon.com.br/2024/09/26/pescador-chicorgo/
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Vereda da Poesia = Alexandre Rodrigues Fernandes (Vila Nova de Gaia/Portugal)


Abbie Philips Walker (História da Vovó Coelha)

Abbie Philips Walker, EUA (1867 – 1943)
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Patty Coelho sentou-se olhando para seu livro de histórias com um olhar muito insatisfeito em seu rosto. Ela ficou tão interessada nas fotos que não viu sua avó vindo pelo caminho e correu para encontrá-la como sempre fazia.

“Ora, Patty, querida, qual é o problema? Parece que você não gostou das fotos e histórias do seu livro.” - disse a vovó coelha.

“Ah, vovó!” – disse a pequena Patty Coelho, deixando cair seu livro no chão e correndo para sua avó, “Eu não vi você chegando. Estou tão feliz em vê-la.”

“Diga-me por que você parecia tão infeliz? Você não gosta do seu livro?” – perguntou a vovó coelha.

“Sim,” - disse Patty Coelho - “eu gosto às vezes, mas me canso de ler o tempo todo sobre Peter Coelho, Jackie Coelho e Bennie Coelho e olhar suas fotos. Eu gostaria muito de ler uma história sobre uma menina Coelho. As coelhinhas nunca fazem nada que daria uma boa história, vovó?”

“Claro que sim, minha querida. Eu nunca te contei sobre Susie Coelho que comeu sua boneca?” – perguntou a vovó Coelho.

“Oh, vovó, conte para mim!” – disse Patty Coelho, dançando em volta de sua avó nas patas traseiras e com as orelhas em pé só de pensar no que ela estava prestes a contar. “Conte-me a história, rápido, faça!”

Vovó Coelho sentou-se nos degraus da casa de Patty e tirou seu tricô de uma sacola e, enquanto tricotava, contou a história de Susie Coelho que comeu sua boneca.

“Era uma vez”, disse a vovó Coelho, “vivia uma menina Coelho chamada Susie. O pai e a mãe dela eram pobres e não viviam como você, onde podiam conseguir comida em abundância, e ela também não tinha um livro com figuras.

“Susie Coelho nunca teve nada para brincar. Ela tinha sorte se tivesse o suficiente para comer.”

“Mas um dia Susie Coelho viu uma garotinha com uma boneca passando pela floresta onde ela morava, correu para casa de sua mãe e chorou por uma boneca. Sua mãe não podia comprar uma boneca para ela porque elas não moravam perto de uma loja e, se morassem, ela não teria dinheiro para comprar uma; então Susie chorou e chorou, e quando seu pai chegou em casa ela ainda estava chorando.”

“’Qual é o problema com a Susie?’ ele perguntou, e a mãe de Susie disse que queria uma boneca.”

Depois que Susie foi para a cama naquela noite, sua mãe disse ao pai: ‘Pensei em uma coisa; podemos fazer uma boneca para Susie.”

“Como podemos fazer uma boneca?” perguntou o pai de Susie, parecendo surpreso que sua esposa sugerisse tal coisa.”

“Eu vou te dizer”, disse a mãe de Susie, “você vai até o jardim na casa da fazenda do outro lado da colina e me traz uma cenoura grande e um pé de alface bem crocante, e eu vou te mostrar como posso fazer uma boneca .”

“Então o pai de Susie saiu correndo e pegou a cenoura e a alface e trouxe para casa.”

Então a mãe de Susie cortou o topo da cenoura para fazer uma cabeça e fez olhos, boca e nariz de amoras, e então ela fez um lindo vestido de alface com uma saia de babados, que era longa, então não importava se a boneca não tinha pés.

Ela fez uma capa com uma folha de alface e um gorro com uma folha pequena; as roupas eram presas com pequenos gravetos que o pai de Susie cortava.

“Veja! Acho que ficou bonita”, disse a mãe de Susie, segurando a boneca para o marido ver.

“Parece gostoso de comer”, disse o pai de Susie, estalando a boca. A mãe de Susie borrifou a boneca com água, para mantê-la fresca, e colocou-a ao lado da cama de Susie.

De manhã, quando ela acordou, foi a primeira coisa que viu. “Oh! Eu tenho uma boneca! Eu tenho uma boneca!” ela gritou, rindo e correndo para sua mãe com a boneca nos braços.

Susie brincou com a boneca por um tempo, mas, como eu disse, Susie não tinha coisas boas para comer como você, e uma cenoura inteira e um pé de alface só para ela era algo novo para a coitadinha da Susie Coelho, então, depois de um tempo, ela apenas mordiscou um pouco da capa e depois mordiscou um babado do vestido.

“’Acho que ela vai ficar bem se tiver apenas um babado na saia”. disse Susie, então comeu uma folha de alface.”

Depois de um tempo ela comeu o gorro, e aos poucos ela comeu o outro babado e o restante da capa.

“Uma boneca sem vestido não adianta”, disse Susie, então ela comeu a cenoura, e esse foi o fim da boneca de Susie Coelho.

“Oh, vovó, que história linda”, disse Patty. “Eu acho que é bom o suficiente para imprimir em um livro. Você não vai mandar imprimir? Por favor faça. Sei que muitos pequenos gostariam de ler sobre uma menina Coelho, bem como sobre Peter e Jackie e outros meninos Coelhos.

Então, a vovó Coelho fez o que Patty pediu, e é assim que você está lendo a história.

Fontes> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Fazer uma vaquinha”

Vez por outra, somos gentilmente convocados a FAZER UMA VAQUINHA, isto é, comparecer com algum, se coçar, meter a mão no bolso ou na bolsa, entrar num “ra-chá-chá” para ajudar alguém em dificuldades financeiras, que necessita fazer uma cirurgia, comprar as tralhas para o casamento, saldar um compromisso que envolve numerário e tantas outras situações do cotidiano. Há quem diga que as famigeradas “taxas extras” dos condomínios, que faz o regalo dos síndicos e o pesadelo dos condôminos, na verdade não passam de vaquinhas institucionalizadas, assim como a coleta de óbolos nas sacolinhas, durante os ofícios religiosos nas igrejas, é outra modalidade de vaquinha em prol das casas paroquiais.

Mas de onde será que surgiu esta curiosa expressão usada em todo o país? Segundo o professor Ari Riboldi, no livro “O Bode Expiatório”, a expressão surgiu de uma prática de premiação no futebol, inspirada no jogo do bicho. Nessa inédita obra, o autor põe em destaque certas expressões envolvendo apenas o MUNDO ANIMAL, cuja origem quase sempre está lastreada em antigos costumes, lendas, mitos e no folclore. Assim com a da vaquinha, outras estão alinhadas, como, por exemplo, “espírito de porco”, “tempo de vacas magras”, “tem boi na linha”, “bicho de sete cabeças”, “burro amarrado na sombra”, “idade da loba”, “missa do galo”, “estar com a macaca”, “deu zebra”, “matar cachorro a grito”, “pagar o pato”, “lágrimas de crocodilo”, “memória de elefante”, “papagaio de pirata”, “soltar a franga”, “falar cobras e lagartos”, “ovelha negra”, “cabra da peste”, “deu zebra”, “cavalo dado não se olha os dentes”, “galinha ciscando pra frente”, “elefante em loja de vidros”, “pisando duro igual ema no choco”, “pato rouco”, “cavalo paraguaio”, “brabeza de jararaca”, etc.  

Relativamente a FAZER UMA VAQUINHA, consta que em 1923, a torcida do Vasco da Gama, tradicional Clube do Rio de Janeiro, resolveu motivar os atletas do time concedendo-lhes generosas premiações em dinheiro, desde que se empenhassem nas disputas conseguindo vitórias ou, se impossível, tornando difícil o êxito dos adversários. Com esse desiderato, a fanática torcida vascaína se dedicou a arrecadar numerário entre seus integrantes e simpatizantes, sendo que o valor apurado tinha inspiração nos números do jogo do bicho. No padrão monetário da época, o 5 do cachorro, equivalia a 5 mil-réis, em caso de empate; o 10 do coelho, equivalia a 10 mil-réis, em caso de vitória num prélio comum; e o 25 da vaca equivalia a 25 mil-réis, o maior dos prêmios, somente concedido em triunfos maiúsculos, contra os adversários mais fortes ou mais famosos, alcançados em partidas decisivas, como por exemplo, uma disputa no final do campeonato carioca. Nesta última hipótese, era comum os torcedores afirmarem que tinham conseguido “fazer uma vaca”, isto é, juntar uma grana polpuda, correspondente ao prêmio máximo daquela época.

O tempo, que tudo transforma, se incumbiu de tornar a expressão “FAZER UMA VAQUINHA” (já no diminutivo) ser utilizada sempre que um grupo de pessoas deseja organizar uma festa, comprar algo de maior valor, enfrentar uma despesa inesperada, como até hoje se faz para quitar uma conta “salgada” num restaurante, conhecida como “a dolorosa”, propiciar meios para um doente fazer uma cirurgia, comprar uma cadeira de rodas, quitar alguma dívida, arrecadar fundos para instituições filantrópicas e até com a clássica coroa de flores, durante o velório de um amigo que se foi e seja merecedor dessa derradeira homenagem. Atualmente existem vaquinhas na internet para quase tudo, criadas em sites específicos, algumas extravagantes, como a de cantores anônimos para gravarem seu primeiro disco, sendo muitas delas obviamente falsas, criadas apenas para capitalizar os espertalhões, por isso se diz que vaquinha confiável é aquela que se faz entre as pessoas mais chegadas, de “induvidosa” honestidade e em prol de uma causa justa, seja ela qual for.
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fonte: Uruá Tapera. 18 setembro 2024
https://uruatapera.com/fazer-uma-vaquinha/
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