quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Gercina Isaura da Costa Bezerra (Considerações sobre o Material de Leitura)

A leitura enquanto exercício da cidadania exige um leitor crítico que, além de construir a significação global do texto, seja capaz de transpor os limites do texto incorporando-o reflexivamente aos seus conhecimentos para melhor compreender a realidade que o cerca. Uma sociedade realmente democrática, preocupada com a superação das diferenças sociais, certamente estaria comprometida com a formação desse leitor. Mas essa responsabilidade tem cabido à escola, como se ela sozinha fosse capaz de executar essa tarefa. O mais grave é que dentro do espaço escolar, o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita parece caber apenas ao professor de língua materna. Não é raro a cobrança da proficiência dos alunos nessas habilidades por parte dos professores das demais disciplinas. São também inúmeros os estudos e as análises dos textos veiculados nas aulas de língua portuguesa. Exagerando, temos a impressão de que as atividades de leitura e escrita só acontecem nas aulas de língua materna. Certamente isso não é verdade. Temos conhecimento de análise de textos didáticos das demais disciplinas, mas ao que parece, a grosso modo, essas análises estão voltadas para a adequação das definições e conceitos, bem como para as ideologias e preconceitos presentes nos textos.

Nossa prática tem nos mostrado, que o desconhecimento dos processos de leitura pelos professores de outras disciplinas, os leva a selecionar textos que dificultam a compreensão dos alunos, levando-os a decorar conceitos sem entendê-los.

Assim, esse trabalho objetiva demonstrar que a escolha inadequada do material de leitura pode comprometer sua compreensão. Devido ao reduzido espaço, selecionamos apenas o capítulo 6 do livro “Os seres vivos” para exemplificar algumas dessas inadequações. A razão de tal escolha deveu-se ao fato de ser um texto tradicionalmente adotado na sexta série e a dificuldade que os alunos apresentaram para compreendê-lo.

O título do capítulo é “A biodiversidade da terra”, a expectativa despertada seria para um texto que tratasse da variedade de formas de vida do planeta, bem como de seus habitats, comunidades e ecossistemas formados pelos organismos. Além disso, seria possível incluir considerações sobre seu potencial econômico e sua importância social, cultural, ecológica etc. Mas o capítulo trata mesmo é da classificação dos seres vivos, que na diagramação do texto aparece como um subitem. Assim, se o leitor iniciante (Nesse texto denominamos leitor iniciante aquele indivíduo que ainda está desenvolvendo suas estratégias de leitura. Ao leitor que ainda não é proficiente) tiver um idéia do que seja biodiversidade terá sua expectativa de leitura fustrada, por outro lado, se desconhecer a palavra acabará por associá-la a classificação dos seres, podemos afirmar que o título se constitui numa pista falsa para a compreensão do texto.

Textos mais longos têm além do tópico principal, outros subtópicos de unidades menores como o parágrafo. O tópico e os subtópicos constituem uma estrutura em que uns se subordinam aos outros, todo esse sistema deve ser facilmente percebido pelo leitor, pois a percepção da relação e da hierarquia que se estabelece entre eles é um componente essencial da compreensão textual. No texto analisado falta uma explicitação geral e objetiva dessa hierarquia, a presença excessiva de figuras, títulos e itens entrecortando o texto, prejudica o seu fluxo e dificulta a percepção do mesmo como um texto único, uma vez que sua articulação encontra-se fragmentada. Um exemplo disso é o trecho em que os autores explicam o que é gênero e como vários gêneros constituem uma família temos a intercalação de um subtópico com sete parágrafos, e que se constitui numa informação secundária (“O nome científico dos seres vivos é escrito em latim”) que poderia estar diluída no corpo do texto sem desviar a atenção do leitor do seu assunto principal. Por isso não fica claro para o leitor que a classificação é feita a partir de sucessivos agrupamentos até formar um conjunto maior, segundo o critério de características semelhantes. Esses são apenas alguns exemplos das inadequações que encontramos no texto.

Há professores que, desconhecendo os processos de desenvolvimento da leitura e seus mecanismos, esperam do aluno do segundo ciclo uma eficiência leitora que ainda está em processo. Ler é mais que decifrar, a decodificação é apenas um primeiro estágio da leitura eficiente. Não se pode alcançar a um comportamento praticando um hábito contrário a ele. Decifrar obriga a ter um comportamento diante da escrita que é o oposto daquele indispensável para um bom leitor. A escrita é uma linguagem para os olhos e não para os ouvidos; ler não é traduzir o escrito em oral para chegar a compreensão. A capacidade de compreender supõe a possibilidade de antecipar, no caso da leitura, a decifração impede a antecipação, ou a dificulta, no melhor dos casos.

A leitura consiste numa busca de índices mínimos e não na investigação total dos signos escritos. Um bom leitor compreende um texto em um tempo mínimo, sem se preocupar com cada uma das palavras do texto. Isso porque o sentido de uma frase não é a soma dos sentidos das palavras que a compõe, mas é determinado pelo texto e pelo contexto, nos quais estão inseridas. Da mesma forma que, a percepção isolada dos elementos que compõe uma paisagem impedem a visão global da mesma, a decifração não leva a compreensão do texto porque não se concentra na percepção do todo.

Essa percepção não se restringe ao registro passivo de estímulos exteriores, mas resulta de uma reorganização da estrutura do conhecimento, diante de um novo estímulo. Assim, a percepção é uma aprendizagem que depende das experiências anteriores daquele que aprende, isso é importante a medida em que dirige nossa atenção para o papel das vivências do aprendiz e de suas experiências de vida.

Dessa forma, podemos dizer que a leitura resulta da interação entre as informações visuais que estão no texto, e as informações não visuais que se constituem das experiências anteriores armazenadas na memória do leitor.

Nesse sentido, o papel de todo professor, seja de que nível for, não se resume a transmitir conhecimento, seu papel é o de instrumentalizar o aluno de forma a dar-lhe condições de ampliar o seu entendimento da realidade que o cerca, tornando-o capaz de atuar nessa realidade. Sendo o texto principal fonte de veiculação do conhecimento, e instrumento de trabalho daqueles que ensinam, faz-se necessário que estejamos comprometidos com a formação desse leitor crítico, propiciando ao aluno condições para tal.

Ao selecionar ou ao produzir um texto para trabalhar com os alunos, o professor ou o autor do manual deve considerar que a compreensão de um texto não depende apenas da competência lingüística do aluno, mas também das condições que o texto oferece, a observação de alguns aspectos, na seleção do texto, podem contribuir para que o aluno desenvolva suas estratégias de leitura.

O texto é o elemento simples da comunicação escrita, pois é a sua organização de conjunto que, por si mesma, contém o significado; e a comunicação escrita diz respeito ao relacionamento intertextual. Assim, o leitor iniciante deve confrontar-se com textos completos, que funcionem como tal e que se remetam uns aos outros, pois sendo unidade mínima da escrita, é também a entrada mais fácil para o sentido ancorado no contexto no qual esse texto funciona.

Desde o início, deve-se apresentar textos significativos utilizados em situações concretas de comunicação, centrados nos interesses e necessidades daquele que aprende, enfim autênticos.

Muitas vezes, acreditando estar “facilitando” a aprendizagem, a maioria os manuais costumam utilizar uma linguagem artificial, tentando dar ao texto escrito características da linguagem oral. No texto analisado por exemplo, na página 46 encontramos:

“Aquilo que você fez com os animais representados no quadro, os cientistas fizeram com todos os seres vivos da natureza, mas usando outros critérios.”

Acontece que o aluno não fez absolutamente nada no referido quadro, porque já estava feito. Isso era necessário para se garantir o uso de critérios que atenderiam às intenções dos autores. Não há possibilidade de no texto escrito se estabelecer uma interação imediata, salvo no contexto da internet. O problema está no fato dos autores tentarem dar ao texto escrito características da linguagem oral, o que causa confusões com relação aos referenciais principalmente. Os parágrafos também são substituídos por itens, descaracterizando a estrutura do texto, havendo inclusive supressão de elementos coesivos que garantiriam uma legibilidade maior do texto. O uso da ilustração como bengala, pode até ser que em alguns casos auxilie na compreensão, mas no caso do texto analisado podemos afirmar que as imagens foram mal utilizadas. Essas inadequações, codificam um discurso artificial, perdido entre a linguagem oral e a linguagem escrita, não favorecendo ao aluno a utilização do seu conhecimento prévio, nem o auxilia no conhecimento sobre como ler.

Para facilitar a aprendizagem não é necessário descaracterizar o texto, pode-se alcançar essa “facilitação” por meio de uma seleção gradual e criteriosa, observando além da autenticidade e da relevância, a estrutura formal do texto.

É assim que, FULGÊNCIO et LIBERATO (1992: 37), apontam a identificação do tópico de um texto como indispensável para a compreensão do mesmo. O que as autoras definem como tópico discursivo é o assunto principal do texto, por isso afirmam que, a dificuldade de identificar o tópico de um texto compromete a sua legibilidade. Isso acontece porque é essa identificação que estabelece o quadro de referência, a partir do qual o leitor passa a criar expectativas que guiam a sua interpretação, auxiliando-o inclusive a desfazer possíveis ambigüidades. As autoras acreditam que o aparecimento do tópico na primeira sentença, ou ainda, a referência reiterada a um mesmo elemento, podem facilitar a identificação de tópicos. De acordo com as autoras,

“os lingüistas têm chamado atenção para a estrita correlação - (...) - entre ser tópico e ocupar uma posição inicial. Essa correlação parece natural: é de se esperar que a ordem das palavras enunciadas reflita a ordem em que seus correspondentes psicológicos (seus referentes) se organizam no processo cognitivo.” (FULGÊNCIO et LIBERATO, 1992: 29).

Elas também demonstram por meio de exemplos, que a má sinalização ou a representação inadequada do tópico compromete a legibilidade dos textos. Assim, aquele que escreve ou seleciona material de leitura para o leitor-aprendiz, deve preocupar-se em oferecer textos nos quais a identificação do tópico não se constitua numa dificuldade.

Para as autoras, um outro aspecto importante da organização textual é a paragrafação. Baseando-se nas teorias de REHFELD, consideram que a divisão do texto em parágrafos funciona para o leitor como uma pista sinalizadora da estruturação do texto; pois “o leitor desenvolve uma estratégia de processamento que o leva a prever, nos pontos onde há mudança de parágrafo,(...), uma quebra na uniformidade de um bloco de texto, e o início conseqüentemente de uma nova unidade.”(Id. ibid., p.56).

A compreensão do texto é facilitada à medida em que a divisão dos parágrafos corresponda às expectativas do leitor e vá de encontro às suas estratégias de leitura. Dessa forma, a organização dos parágrafos deve funcionar como um elemento que revela a estruturação semântica, formal e discursiva do texto, evidenciando as unidades em torno das quais se organiza.

A teoria da paragrafação pode parecer, a princípio, que não atinja diretamente o leitor iniciante, mas apresenta implicações importantes com relação a aprendizagem da estratégia da paragrafação. Pois, se uma paragrafação adequada facilita a leitura no caso de leitores eficientes, por outro lado, ela possibilita ao leitor inexperiente a dedução das bases da organização dos parágrafos, levando-o a internalizar essa estratégia. Assim, uma forma de levar o aluno a adquiri-la, é colocá-lo em contato com textos que apresentem uma divisão de parágrafos que reflita a estruturação semântica, formal e discursiva do texto, de modo que evidencie as unidades em torno das quais é constituído.

Além desses aspectos, FULGÊNCIO et LIBERATO, apoiadas nos estudos de CHAFE, chamam atenção para a necessidade de se oferecer ao leitor iniciante, textos que possuam um equilíbrio entre informações dadas e novas. As autoras consideram informação dada, àquela que o emissor presume que esteja presente na mente do receptor no momento da comunicação; e informação nova, àquela que o emissor presume que está introduzindo na mente do receptor no momento da comunicação. O equilíbrio entre esses dois elementos é que possibilita a progressão do texto, garantindo sua compreensibilidade. Um texto só com informações dadas torna-se redundante e circular, por outro lado, um texto só com informações novas também torna-se incompreensivo, pois o processo de compreensão depende de um conhecimento anterior para que as informações novas sejam processadas. É a progressão resultante do equilíbrio desses dois tipos de informação, que garante a coerência do texto, por isso o professor deve considerar esse aspecto ao selecionar ou ao produzir textos para seus alunos.

CONCLUSÃO:

A análise exaustiva do texto não foi nosso objetivo aqui, muito menos pretendemos esgotar todos os aspectos que podem auxiliar o leitor no desenvolvimento da compreensão. Foi nosso desejo despertar a atenção daqueles que ensinam para a importância de avaliar técnica e criticamente o material com o qual se está trabalhando, isso porque muitas vezes é esse fator que está dificultando a aprendizagem de nossos alunos. Para melhor auxiliar nossos alunos a desenvolver suas estratégias de leitura, é necessário que àquele que o orienta tenha conhecimento e reflita sobre as condições necessárias para promover este processo. Uma consideração importante e que pode fazer diferença é a sensibilidade do professor com relação ao conhecimento prévio e interesses dos alunos, a maneira utilizada para envolvê-los no planejamento e seleção do material de leitura, considerando o grau de motivação desses.

Relacionamos aqui, alguns itens que consideramos importantes para facilitar a legibilidade do texto:

- Os professores devem propiciar condições para que o aluno desenvolva estratégias de leitura que viabilizem a compreensão textual;

- Deve-se elaborar materiais de leitura que facilitem a aquisição de estratégias por parte dos alunos, enfatizando as pistas fornecidas pelo texto de forma relevante;

- Os educadores devem levar em consideração o conhecimento prévio dos alunos, a partir do qual se estabelece a formulação de hipóteses.

São inúmeras as sugestões que caberiam aqui no intuito de tornar nosso aluno um leitor mais proficiente. O importante é ter em mente que ler exige que haja interação entre autor/texto/leitor; no caso de haver deficiência em algum destes elementos, a compreensão textual não se efetuará.

Enfim, foi nossa principal intenção neste artigo chamar a atenção para o fato de que quando o material de leitura oferece pistas inadequadas ou ineficientes seu entendimento estará comprometido.

Fonte:
Gercina Isaura da Costa Bezerra (Mestrado UNESP)
Considerações sobre o Material de Leitura

XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paranpa) 21-23 out 1999 - Campo Mourão . Maringá: Depto. de Letras da UEM, 2000 - Org. Thomas Bonnici (CD-Rom)

P.S. Com o intuito de preservar os direitos autorais da autora, as referências bibliográficas foram propositalmente retiradas, o que não afeta em hipótese alguma a veracidade e importância do documento.

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