RESUMO: A complexa relação entre a tradição e a modernidade na poesia; o efeito da fragmentação e dispersão do sujeito poético, inclusive por meio de uma recifração lingüística; bem como a percepção de uma consciência histórico-literária evidenciada em um projeto de poesia são objetos de análise deste estudo, com base na leitura do poema-prosa Uma temporada no inferno do poeta francês Rimbaud.
1. Introdução
Sou o único a ter a chave desta parada selvagem.
Rimbaud
De um poeta que profere um verso tão ensimesmado como este acima, seria quase impossível falar. Quase se não fosse um poeta – ou ainda, se não fosse o príncipe dos poetas modernos, o gênio entre eles. “O príncipe era o gênio, o Gênio era o príncipe”(RIMBAUD, 1985, p.87) . Quase também, porque talvez seja ao poeta que melhor se refira o dito popular: “falem mal, mas falem de mim”.
A fala é o objetivo último da poesia. É o último recurso a que se recorre a fim de se constatar que ainda se vive ou que ainda vale a pena viver. Ou, para a nossa danação e condenação, aceitarmos, pelo reconhecimento da fala, o que se decifra no enigma nietzscheano, percebendo que o ato de viver não tem outro motivo senão o humano, demasiadamente humano.
Humano, portanto errado, inicio este ensaio justamente compreendendo sua inutilidade, decretando seu fracasso. No Conto de Rimbaud, o príncipe herda, e não cria, a realeza, a palavra; mas tampouco o gênio constrói o seu sucesso sem ter recebido um legado da natureza. O gênio tenta desvendar, conhecer o mistério das palavras, sem contudo saber criá-las. Fracassados, ambos se juntam, amotinados, e investem contra Deus. O destino desses é o mesmo de todos aqueles usurpadores no decorrer dos tempos. Mas ao menos felizes são os que sabem desse destino, por compreender os antepassados. Portanto, tudo o que aqui será dito já foi dito melhor, e isso tento compreender! A história subjuga os pós-criadores a coadjuvantes nas margens da literatura.
Outrossim, muita ousadia seria atribuir a si as palavras de um autêntico criador ou inventor quando analisa a história: “sou um inventor muito mais meritório do que todos aqueles que me precederam;”(RIMBAUD, 1985, p.91).
Essa consciência de divisor de águas na poesia, não ocorrida por seus predecessores, fez aquele poeta adolescente ou adolescente poeta redescobrir a fala, postergar a questão do divino e preconizar o eu em um outro, depois de tê-lo pulverizado em um ninguém.
Esse ninguém, Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), nasceu em Charleville, nas Ardenas, tinha antepassados gauleses. Cedo fugiu de casa para ser iniciado nas rodas francesas de literatura pelo poeta Verlaine (o príncipe).
Embora seja necessário lançar mão de certos acontecimentos da tumultuada vida de Rimbaud, pretendo, neste ensaio, não me deter nesse abismo devorador, seja por prudência ou por ignorância. Outrossim, obedecendo os limites marginais deste texto, pretendo percorrer um trajeto não menos perigoso, infernal: o diálogo que sua poesia trava com a tradição enquanto se encaminha para uma modernidade no fazer poético; a dinâmica de promover um real caótico, sem regras, de forma contundente e voraz; o modo como sua poesia faz dispersar o sujeito poético; e a palavra em explosão evidenciando uma clara consciência poética no ato de criar.
Outros aspectos, evidentemente, podem ser ressaltados e prorromperem esse texto, o que promoverá, acredito, um diálogo mais coerente com o objeto sobre o qual desejo me debruçar, a saber, o poema-prosa Uma temporada no inferno.
2. Este é o sangue da nova e eterna tradição
Rimbaud era leitor dos clássicos. Baudelaire e Víctor Hugo fazem parte da grande pluralidade na voz do novo poeta, assim como Verlaine, um tutor involuntário, influenciador sem necessidade.
O respeito aos clássicos, em Rimbaud, tanto grita quanto sussurra. Seu poema é um espelho que se volta para o passado. Passado que é capaz de ver, no espelho, em seus reveses, como se numa consciência histórica, o futuro: “Falo com a certeza de um oráculo”(RIMBAUD, 1983, p.48).
Nesse caso, se toda poesia é profecia, vê, não o espelho ou no espelho, mas vê, através dele, um novo tempo que sempre foi o mesmo, desde que a história nunca “refletia” a história, senão uma pré-história. Rimbaud ensinou que prever o futuro é uma ação contingente de refletir o passado, por mais que isso pareça um lugar comum.
Seus versos estão repletos de reminiscências de autores do século XIX, contemporâneos e anteriores. Contudo, mesmo o que os faz lembrar possui o tom agudo que vem de Rimbaud e não de seus modelos.[...] Para uma apreciação de Rimbaud, aquelas reminiscências têm apenas um valor secundário. [...] ridiculariza o museu do Louvre e incita ao incêndio da Biblioteca Nacional (FRIEDRICH, 1978, p.64).
Só não incendiaria, por si só, a Biblioteca Nacional de França se lá não contivesse seu alimento principal: a palavra poesia. Para além de uma destruição material ou espiritual, o incêndio pretendido, a meu ver, é de teor histórico. Nesse caso, a tradição literária deveria achar-se nova eternamente para fazer-se tradição: É preciso ser sempre moderno. O essencial da arte exposta no museu ou entulhada e adornada pela célebre poeira da Biblioteca não é o que lhe cabe, nem do qual Rimbaud se alimentou para refazer-se de eternidade. Antes, a energia contida na arte (segundo a sugestão de Pound) é aquela capaz de conduzir o homem para compreender-se como diante do espelho, portanto essa energia é a matéria vital para o poeta.
Há um passado em cada arte. Ambos se encaram nesse anteparo narcísico e movimentam o cenário em redor de nós, pessoas-palavras. Se temos visão de continente e conteúdo, legado a nós por Baudelaire, Rimbaud, Saussure, Freud, Pound e tantos outros únicos, podemos manipular, em bom sentido, a arte de prever futuros, tanto quanto a presciência artística. Ou vemos o tempo que passa diante de nós, à revelia ou não; ou nos vemos passando pelo tempo com ou sem as dores e percalços advindos dele.
A forma como nos posicionamos diante dessa visão de arte pode ser o que chamamos de projeto estético. O de Rimbaud revela uma visão simultânea da arte na história; conjugava tradição com modernidade sem cair na explicitude de um panfletário inventor de manifestos nem no hermetismo de um anônimo propositor de uma nova ordem apocalíptica. O seu manifesto foi anônimo e inventivo; sua proposta, um pan-fleto escatológico. No espelho, Rimbaud enxergava, além do cenário e de si mesmo, o mais explícito dos hermetismos, e compreendeu-se universalmente particular. Talvez uma de suas graves diferenças para com a tradição fosse o simples fato de, numa posição como essa, manter os olhos abertos: “O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é seu próprio conhecimento, inteiro; ele busca sua alma, experimenta-a, descobre-a. Tão logo a conheça, deve cultivá-la” (RIMBAUD, In: STEBAN, 1991, p.19).
Uma outra diferença seria a de não se apoiar nos escombros do cenário (o tempo) para se firmar como alguém que se vê, seu tempo o oprimia. E isso não acontecia com seus antecessores acomodados pelo crivo da tradição. Colocar-se como uma imagem que só é imagem diante de uma outra, configura uma cabotagem histórica, a qual somente será julgada pela memória. Mas essa é uma Outra história. Basta, neste espaço, evidenciar o auto-reconhecimento desse poeta num lugar de repulsa e de inevitável atração. Essa dinâmica promove a tensão necessária para uma poesia que não se entrega a desvendamentos comuns. O tempo, portanto, é tenso para Rimbaud, é resultado de uma força que lhe cai sobre os ombros de forma opressiva, porém justa, no sentido lato do termo.
O passado tornando-se um peso, devido ao extinguir-se da genuína consciência de continuidade e à sua substituição pelo historicismo e pelas coleções em museus, produz em alguns espíritos do século XIX uma reação que conduz à repulsa de tudo aquilo que é passado (FRIEDRICH, 1978, p.65).
Este tormento configura uma nova dimensão para a arte sob a alcunha da palavra modernidade. Destruir os espelhos (os parâmetros) consistiria num ato não somente de rebeldia, mas de auto destruição, ou melhor ainda, de uma implosão. Por isso, a idéia de modernidade, legada por Baudelaire, conter um caráter mais do que dicotômico, ambíguo: “A modernidade [...] é o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável.” (In: STEBAN, 1991, p.4).
As tramas do espelho diante de Rimbaud inauguram uma nova geração de inventores de poesia capazes de compreendê-la e compreender-se. É por isso que, em Rimbaud, pode-se vê-lo ao mesmo tempo em que pode-se ver a poesia pura, quase não contaminada pela interferência da palavra-inferno de Rimbaud.
É oportuno observar que o desregramento estético se forma a partir de um rígido regramento, ou seja, quanto mais caminha-se em direção a uma antítese, mais se afirma uma nova tese a ser refutada no futuro. Parodiando o pensador da dialética, a síntese mais evidente é o próprio ato de formular e refutar, ao qual Rimbaud se prontificou.
Para ele, então, fazer poesia é não querer fazer poesia. Essa arriscada proposição encontra paralelos famosos nas palavras do próprio poeta a exemplo de eu é um outro ou é falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim. Porém, com mais propriedade, João Alexandre Barbosa assim conclui sobre o fenômeno da recusa a respeito de Valéry:
Recusando, assim uma linguagem, a da Literatura, para a invenção de uma outra, a da Literatura (desta vez consumida pelo próprio ato de recusa), o artista elabora o esquema necessário para a revelação de uma realidade nova - passada pelo crivo da crítica problematizadora. Deste modo, a metalinguagem que se incrusta, de diversas formas, na obra contemporânea revela, mais do que um simples movimento tautológico da Literatura moderna, as próprias coordenadas da crise de representação em que se encontra. (1974, p.46).
Portanto, a temporada de Rimbaud no inferno é seu sôfrego castigo de viver entre a poesia e a palavra, a tradição e a modernidade, o eu e o outro, o real e o não real.
3. Em verdade vos digo que (não) vos conheço
Identificar o ponto de partida para o inferno é compreender a origem daquele que é seu visitante. Antes deste estar no inferno, o inferno está nele. Diante do Cérbero, na porta do inferno, o visitante de Rimbaud tem lampejos brascubeanos de consciência, interpolados por desejos de retorno à vida, a fim de consertar os males causados na origens: A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova que sonhei.
O son(h)o é o princípio de todo o inferno, por isso busca-se artifícios de conforto, mas o inferno é imanente. Há que se saber que vozes são essas que gritam dentro de si.
Como se numa espécie de prólogo, na primeira parte de Uma temporada no inferno, o poeta dedica seus versos a apresentar as vozes dos agentes principais do poema. O tom irônico e tácito demonstra a ousadia com a qual a insólita viagem é configurada. A fragmentação do discurso não permite que se construa linearidade ou integridade desses agentes.
Uma das representações fragmentadas é a da virgem louca – que aparecerá com mais destaque na sessão Delírios. Segundo o texto bíblico, Jesus Cristo conta a parábola das dez virgens: cinco delas são prudentes; as outras cinco, loucas. A imprudência destas está no fato de não terem preparado azeite suficiente para suas lâmpadas, enquanto aquelas tinham o suficiente para si, o que impossibilitava uma redistribuição. Tendo que ir aos mercadores para comprar azeite, as cinco virgens loucas chegaram atrasadas para encontrar o esposo, por ocasião de seu casamento. Este levou consigo para as bodas somente as cinco que estavam presentes e prontas.
O estado da virgem louca apresentada por Rimbaud parece se assemelhar ao daquelas nas circunstâncias vexatórias transcritas nas palavras do evangelista, palavras estas que evocam um tênue sentido de injustiça e o rancor ressentido por parte de quem foi rejeitado. Uma vez que todas dormiram - o princípio é o mesmo:
E, tardando o esposo, tosquenejaram todas, e adormeceram. [...]
E, tendo elas ido comprá-lo [o azeite], chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta. E depois chegaram também as outras virgens, dizendo: Senhor, senhor, abre-nos. E ele respondendo, disse: em verdade vos digo que vos não conheço (BÍBLIA SAGRADA, 1969, 39-40).
Tendo se fechado a porta, uma pergunta fica no ar, sobre a qual Jesus se silencia: qual foi a alternativa encontrada pelas virgens loucas, qual o seu destino?
Para o inferno! – responderia a cristandade. Isso evidencia o fato de que uma saison pelo inferno não seria propriamente uma opção, mas uma contingência. Outras atitudes coerentemente se agregarão à alternativa que restou à virgem louca:
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. - E achei-a amarga. - E injuriei-a
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeira, ó miséria, ó ódio, a vós é que meu tesouro foi confiado. [...] o infortúnio foi meu deus.” (RIMBAUD, 1983, 45)
O outro agente representado é o demônio, a quem o poema é dedicado: “[...] já que apreciais no escritor a ausência das faculdade descritivas ou instrutivas, destaco para vós estas hediondas folhas de meu caderno de réprobo.” (RIMBAUD, 1983, 45)
Anfitrião da virgem louca, Satã é requisitado pelo poema a ter um olhar menos irritado e compreender a contingência estabelecida e decorrente de uma mútua imprudência. O mesmo Satã sofreu com a rejeição desde sua expulsão do Céu, embora, segundo o texto bíblico, o inferno já estaria preparado para o diabo e seus anjos. Tal como o demônio e a virgem louca, a rejeição em Rimbaud era inerente ao seu espírito e muito mais explícita em sua palavra, porque sopro de Deus.
A dinâmica é a de que essa rejeição provoca a busca de um acolhimento. Esta dinâmica pode nos remeter à convivência complexa entre a tradição e a modernidade em Rimbaud, o que, em si, promove um estado propriamente “infernal” no fazer poético. A tradição elege a prudência, a beleza, a justiça, a moral e rejeita o novo como forma de auto preservação. Toda a formação anti-tradicional de Rimbaud decorre, contraditoriamente, de sua formação tradicional. Na metáfora da virgem louca e de seu conveniente anfitrião, um poeta imprudente e iniciante rejeita os termos positivos da tradição e mergulha (ou é lançado) em um lago de fogo, a saber, a “modernidade [que] conduz a novas experiências, cuja dureza e obscuridade exigem uma poesia suja e ‘negra’”. (FRIEDRICH, 1978, p.66) [grifo do autor]. O próprio poema é o inferno. O castigo é escrevê-lo, pois ele contém as palavras de condenação: profecia , (e)vidência.
A sessão intitulada Sangue ruim mostra profecias que se evidenciam tanto no plano real como no ficcional. Rimbaud transita do real para o não-real como já havia anunciado sobre sua tarefa de poeta: ausência de faculdades descritivas e instrutivas.
A origem que começa a ser narrada é a do próprio Rimbaud. Esta vai se diluindo entre as elucubrações acerca de sua história a ponto das metáforas desaparecerem, pois o universo se torna totalmente (ou puramente) metafórico. O homem real e o sujeito poético se equivalem nessa estética: “A mão que segura a pena vale tanto quanto a que empurra o arado.” Ambos, ao inferno, são condenados pelas próprias mãos: “ – Que século manual!” (RIMBAUD, 1983, p.47).
A origem genética constatada pelo próprio poeta faz com que se divida a culpa por sua condenação e ressalta a imanência. É pelas mãos que o poeta se condena, ao escrever, mas ele escreve o que ele é. Todos os atributos herdados, tanto dos antecessores estéticos como genéticos, se relativizam diante de sua descrição. Nada deve permanecer esclarecido – a (e)vidência se faz, não na explicitude, mas na crueza do simulacro: “Tenho deles [gauleses]: a idolatria e o amor ao sacrilégio; – Oh! Todos os vícios, cólera, luxúria, – magnífica a luxúria; – sobretudo mentira e indolência.”(RIMBAUD, 1983, p.47).
A misteriosa evidência contida nessas palavras, aos poucos retoma a metáfora do espelho e torna, aos olhos do leitor, um instrumento revelador de verdades universais. A família de Rimbaud é todas as famílias(Friedrich assim compreende a recorrência utilização da totalidade e dispersão do sujeito poético em Rimbaud: “[...] outra tendência de Rimbaud, a de isentar o individual de toda limitação local, ou de qualquer índole, mediante a expressão generalizante ‘todos’”[...] (1978, p.82)).
Essa verdade age, em nós leitores, como os descendentes que Rimbaud descreve como pilhadores que são “lobos que atacam o animal que não mataram” (RIMBAUD, 1983, p.48) Ou seja, não foi Rimbaud quem criou seus versos, foram legados a ele por seus ancestrais poéticos, mas somente Rimbaud poderia escrevê-los. Sabia-o o poeta: “Que era eu no século passado: só hoje é que torno a encontrar-me”(RIMBAUD, 1983, p.48).
Tendo consciência de sua inutilidade no processo literário, o poeta transforma, ou mesmo, deforma sua deficiência em prol de um projeto novo. Continuava sua descrição como se o tempo todo estivesse rindo de si e da humanidade, como fazia a Esfinge de Tebas. Para isso, palavras enganosas: “Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior, por toda a eternidade. [...] pela minha máscara, pensarão que sou de uma raça forte.” (RIMBAUD, 1983, p.49).
No que era fraco deveria fazer-se forte. A divindade deve ser invertida, por isso, para a virgem sem azeite, na demora do esposo, é preciso contentar-se em fazer como todos, prudentemente: “o melhor a fazer é dormir, bêbedo, na praia.” (RIMBAUD, 1983, p.49) Repito: o son(h)o é princípio de todo o inferno.
Nesse ponto, o poema sugere atribuições demoníacas como adorar animais, quebrar corações, sustentar mentiras etc. Se o inferno de ser poeta atormenta seu coração, Rimbaud instrui a ter consciência disso, pois negá-lo também não lhe salvará desses tormentos: “Não te matarão mais do que se fosses um cadáver.” (RIMBAUD, 1983, p.51)
A oposição de Rimbaud a Deus, portanto, pode se dar nos dois planos referidos. Nisso, creio, pouco importa acreditar-se ou não na carta de sua irmã à mãe relatando a conversão do poeta ao cristianismo. Se Rimbaud rogou mesmo a misericórdia divina, sabia ele que seu destino, já traçado, era a condenação. Se estas palavras fazem crer que defendo aqui que, de contrapartida, o que acontece no plano estético é refletido no plano real, digo, sobrenatural, então fiquemos, cada um à sua maneira, com nossos próprios infernos.
No plano estético, outrossim, (não) somente no estético, percebemos uma trindade julgando os procedimentos do poeta: “pai, professores, patrões”, a saber, a moral familiar, a ciência e o capital.
Para tentar fugir, como Édipo, de seu destino, Rimbaud, com suas máscaras vai para a África traficar armas: “Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam” (RIMBAUD, 1983, p.52). Volta para onde teria sido o berço das artes e da humanidade, dizendo conhecer a natureza e a si mesmo. Tanto propõe o enigma como o desvenda. Prescinde de palavras e busca nos gritos e nas danças as verdadeiras origens da poética. Então todos os poetas cabem natimortos dentro de sua poesia: “Sepultei os mortos no meu ventre” (RIMBAUD, 1983, p.52).
Ali Rimbaud, como desejou Alberto Caeiro, revê a criação e vê-se criança: “Vou ser arrebatado como uma criança, para brincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças.” (RIMBAUD, 1983, p.52).
Se pode renascer (de si mesmo), além de somente ver-se, conhecer-se, Rimbaud faz-se Deus, daí, sim, poder ter-se convertido: “A razão nasceu em mim. [...] tendo Jesus Cristo como sogro. Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus.”(RIMBAUD, 1983, p.53).
Este foi o percurso que o Príncipe e o Gênio fizeram a fim de se recuperarem de suas angústias (Estes personagens, já referidos anteriormente, constam na sessão “Conto” do poema “Iluminações” (Iluminations, de 1873). O destino do Príncipe e do Gênio é o aniquilamento, como sugerem os versos: “O Príncipe e o Gênio se aniquilaram provavelmente na saúde essencial. Porque não morreriam eles disto? Juntos, então, eles morreram.” (RIMBAUD 1983, p.87)). Mesmo porque, somente nessa posição de criador, poderiam assoprar nas narinas das outras criaturas seus próprios destinos; assoprar palavras de liberdade e de condenação; e saber de todos os mistérios e revelações oraculares das palavras desde a primeira delas; reconhecer-se no princípio e únicos. Conhecer e reinar absoluto: mistérios lacrados pelo engano de que as palavras elucidam. Pelo contrário, elas nos retardam à obscuridade, a qual existia na solidão de um Deus que precisava de um outro. Anterior ao Haja luz! , teria dito: Haja Eu!; então, no princípio era o verbo!
4. E o verbo, (a)traído, fez-se inferno
Estando configurada a predestinação do poeta ao inferno, fechada a porta do paraíso, a próxima sessão do poema em prosa é Noite do inferno. Nela o poeta tenta superar as dificuldades da descrição com sensações promovidas pelo efeito das palavras: “Possa eu descrever a visão, o ar do inferno não tolera hinos” (RIMBAUD, 1983, p.55).
Diante do impasse, apela para os sentidos evidenciados na forma. As sensações se alternam com ensaios de descrições e metáforas não usuais. Apresentando o seu projeto estético, Rimbaud, nessa sessão, supera os limites da objetividade e convoca o leitor a perceber a sua diferença para com a tradição poética: forma em explosão, conteúdo em explosão, projeto em explosão; a reiteração aqui é necessária: “As alucinações são inumeráveis.[...] Eu deveria ter um inferno para a minha cólera, um inferno para o meu orgulho, – e o inferno da carícia; um concerto de infernos.”(RIMBAUD, 1983, p.56-57)
Há sugestões para todos os sentidos humanos, inclusive a alucinação: “morro de sede, sufoco, não posso gritar.[...] magias, perfumes falsificados, músicas pueris [...] à luz da lanterna...”(RIMBAUD, 1983, p.55-56)
Entretanto, o sentido que mais se destaca é o do tato. É através dele que é apresentado um outro agente cuja voz o poeta utilizará: o traidor, Judas – a traição, um beijo. A história – todos conhecemos – mudou a nossa era: “este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo!”(RIMBAUD, 1983, p.57).
Um Judas, digo, um traidor no meio dos poetas franceses. Um discípulo que rejeita sua escola por muito se alimentar dela. Se enriquecer de seu saber, e, a partir disso, inaugura uma nova era da poesia. O aluno despreza seus mestres e os provoca: “É, sem dúvida, o que sempre tive: falta de fé na história, o esquecimento dos princípios. Silenciarei sobre isto: poetas e visionários ficariam enciumados. Sou mil vezes o mais rico, sejamos avaros como o oceano.” (RIMBAUD, 1983, p.56).
Parece ser o último aviso do poeta sobre o seu comportamento deslocado da estética tradicional. A partir de então, o poema se perde em Delírios sem concessões descritivas ou instrutivas.
Para que o leitor aceite o convite do poeta a acompanhá-lo pelo inferno, como o de Virgílio a Dante, basta um sinal, um beijo, e a aquiescência; acreditar nas sugestões proferidas: “Creio estar no inferno, então estou nele”(RIMBAUD, 1983, p.55).
A resposta para esse convite, o sinal e a assinatura do contrato com o Demônio podem ter sido feitos mesmo sem o consentimento anteriormente às formulações de decisão do leitor, na própria aquisição da leitura, quando o leitor treina os primeiros preceitos da decodificação. Desde as primeiras liturgias, obedecendo os sagrados sacramentos da escrita até a interpretação: “É a execução do catecismo. Sou escravo do meu batismo. Pais, fizeste a minha desgraça, e também a vossa. Pobre inocente! – o inferno não pode investir contra os pagãos.” (RIMBAUD, 1983, p.55).
Quem lê, então, não é mais inocente, não é mais pagão. Mais uma vez a palavra provoca a danação humana. Mas não é ela inerente ao homem?!
Além do aviso sobre o seu comportamento estético, o poeta alerta para os perigos da palavra, da poesia, batismo infernal, processo pelo qual o leitor será iniciado, tendo ou não feito uma opção.
O projeto do poeta torna-se consciente e notório em suas palavras. Se esse projeto caracteriza uma vida independente para as palavras, então fica perceptível, na voz poética, a consciência das palavras além do que elas dizem (metalinguagem), e também sobre o que elas se calam. Há um vazio silencioso e escuro que as palavras guardam, um continente ilógico e caótico que grita, não pela materialidade nelas, mas pelo que elas cheiram, comem, tocam, ouvem ou vêem – o que, em essência, deveriam ser ações materiais, contudo, no caso de serem palavras, não o são.
Sobre este aspecto, a percepção de Michel Foucault a respeito da obra de Borges parece bastante oportuna. Impressão por impressão, se tudo é crítica, uma desconfiança infernal exige um espaço aberto neste texto para o impressionante pensador d’As palavras e as coisas: “O embaraço que faz rir quando se lê Borges [para mim, Rimbaud] é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o ‘comum’ do lugar e do nome. Atopia, afasia.” (FOUCAULT, 1995, p..9).
Abertas as portas do inferno intertextual, convém um exemplo a mais, conhecido entre nós, talvez sobre a personagem mais metalingüística da literatura brasileira, justamente por provocar reflexões incompreensíveis na linguagem. Alfredo Bosi aponta a boa concisão terminológica do narrador para auxiliar uma aparente afasia no Menino mais velho de Vidas Secas:
O que interessa ao narrador é fixar o instante do curto-circuito, o processo da incomunicação, a conversa truncada na origem, o diálogo impossível; em suma, a barbárie que pulsa na assimetria de adulto e criança, de forte e fraco, e que está prestes a explodir a qualquer hora. Mas como o texto de Graciliano se produz em um regime de consciente economia, não esperdiçando símbolos ao acaso, importa a escolha do signo motivado. É exatamente a palavra inferno que acaba funcionando como analogon de toda a relação intersubjetiva de base (BOSI, 1988, p.16).
Portanto, o projeto de Rimbaud é mais voltado para esse desespero diante da não-linguagem. Algo ousado no contexto de uma cultura totalmente logocêntrica capaz de definir o homem como possível de ser definido por palavras. Nesse caso, aquilo que se vai desfigurar o homem, as coisas, deslocados de sua base essencial – a linguagem – necessitará de um novo lugar.
Esse deslocamento é um processo de transcendência: remete-se o que é aparente ao que é essencial. Platão, Kant, Nietzsche e outros que buscam pelo conceito de humano deram suas indicações. Segundo Friedrich, Rimbaud indica um vazio pleno, uma transcendência vazia.
Por isso é que o caminho se torna potencialmente perigoso. Todas as aventuras, tanto celestes como infernais poderão não passar de um efeito alucinógeno, de Delírios, como o do ópio ou do vinho, mas todas elas serão desregradas a ponto de serem questionadas, mesmo aquelas das quais não se podia sequer suspeitar: “Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias.” (RIMBAUD, 1983, p.56).
É nessa sessão Delírios que os desvendamentos começam a se desatar em tons confessionais. Tudo pode conter semelhança com o real através dos discursos pseudo-enganadores de uma virgem louca e de um poeta-traidor, ambos em busca de redenção: irrealidades sensíveis na concepção de Friedrich, pois “estamos num mundo cuja a realidade existe só na língua.” (1978, p. 79)
A virgem louca procura argumentos que a fazem diferenciar-se das outras loucas, suas amigas, e dialoga com o esposo infernal a fim de escusar-se de seus pecados. Sente saudades, arrependida, dos tempos em que esperava pelo esposo dos céus. Uma relação de infidelidades se delineia em seu discurso, inclusive, lembrando o conturbado romance de Rimbaud e Verlaine. Torna-se interessante, a propósito, por conter os conturbados diálogos entre a poesia tradicional com a sinestésica poesia moderna:
Com seus beijos e abraços amigos, era sem dúvida num céu, num céu sombrio, que eu entrava, e onde desejaria ser deixada, pobre, surda, muda, cega.[...] Pois será preciso que eu parta um dia, para muito longe.[...] Esta promessa de amante, ele a fez vinte vezes a mim. Era tão frívola quanto minha frase que lhe dizia: ‘Eu te compreendo’.[...]Que estranho casal! (RIMBAUD, 1983, p. 61-62).
O diálogo fica mais intenso, e talvez mais explícito, na segunda sessão dos Delírios, a saber, Alquimia do verbo. Nela, Rimbaud promove uma reflexão de seus atos poéticos. A sessão, dedicada a ele próprio, reporta, em estrutura quase narrativa, suas aventuras de criador, portanto de usurpador do trono de Deus. O reconhecimento de sua desmedida tem um caráter de arrependimento, mas, em vez disso, torna-se uma auto-delação, sobretudo porque contém confissões irreversíveis que o fazem se contradizer: “Nenhum dos sofismas da loucura, – a loucura que leva ao hospício, – ficou esquecido por mim: eu poderia repeti-los todos, tenho um sistema.” (RIMBAUD, 1983, p.68).
A condenação é inevitável, uma vez que a palavra cria uma nova realidade, como o próprio poeta o faz perceber, e o verbo está em constante alquimia. Todas as vezes que pronunciar seus pecados, mesmo em confissão, ele confirmará o seu merecido castigo. Para tanto, a quantidade e qualidade dos verbos (Essa leitura pode ser arriscada se não evidenciar aqui os respectivos elementos. Os verbos, para citar alguns, ressaltam os comprometimentos estéticos no projeto de Rimbaud: possuir, amava, sonhava, inventei, regulei, nutri, traduzi, escrevi, anotava, fixava, assumia, tornei-me etc.), em abundância na sessão, negam o novo projeto ao qual o poeta se lançará no futuro: “Isso passou. Sei hoje saudar a beleza” (RIMBAUD, 1983, p.69). Mas a sorte já estava lançada, pois ele já havia informado o seu pior pecado quando elegia uma nova divindade: “Terminei achando sagrada a desordem de meu espírito”(RIMBAUD, 1983, p.65).
Na verdade, Rimbaud encontrou seu descanso, fugindo do conteúdo infernal da poesia. No plano estético, buscou a aproximação da pintura na composição de Iluminações e, no plano real, buscou a vida evasiva nos desertos africanos. Ali, seus afazeres comerciais não o deixariam lembrar-se ou pronunciar as palavras proféticas ou poéticas de condenação.
Em ambos os casos, percebe-se que a alternativa encontrada não diz respeito aos expedientes comumente utilizados pelo poeta, ou seja: os son(h)os, a alucinação, o espelho e a (e)vidência; os quais somente confirmariam sua angústia. As alternativas são o esquecimento, a fuga, e, sobretudo, o que tratarei na última e breve parte desse ensaio: a caridade. “A caridade é essa chave.”( RIMBAUD, 1983, p.45)
5. Vigiai e orai para que (não) entreis em (com)tradição
A chave para manter-se em vigília é a caridade. Isso para Rimbaud é uma incerteza, mas esta incerteza é a única coisa certa que possui.
A caridade tem morada: é no Oriente. Longe (ou muito próximo?) das potestades cristãs e suas respectivas punições, o poeta procura o alento oriental, berço das divindades primevas. Se a alternativa não foi a mais adequada, pelo menos é uma fuga.
Na sessão O impossível, o poeta anuncia a sua despedida com resolução: “Evado-me!” (RIMBAUD, 1985, p.70). Ignorar o céu é, pelo menos, fugir de suas determinações.
Uma nova mitologia é requerida para a poesia moderna. Rimbaud se cansa das tradições ocidentais e seus símbolos capitalistas como o Senhor Prudhomme. A ciência racional e a Igreja moralista do ocidente são venenos para a estética do poeta. Elas o mantêm sob um falso estado de vigília, a fim do trabalho, do progresso, mas ele reclama: “Mas me apercebo que meu espírito dorme”(RIMBAUD, 1985, p.72). Na iminência da chegada do noivo, o poeta-virgem-louco teme esse sono infernal proporcionado pela palavra lógica e venenosa.
Eis que a terceira via se abre: a meditação oriental, aquela que se faz, finalmente, de olhos abertos – venenos diferentes. A poesia deve ser diferente: pura e moderna; o poeta clama por pureza.
São os olhos abertos diante do espelho que poder ver, em todos os sentidos, O relâmpago. Esta é a sessão que anuncia a vinda do juízo final para a poesia e para todos: “Porque assim como um relâmpago que sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser a vinda do filho do homem.” (BÍBLIA SAGRADA, 1969, P.38).
Como já dói condenado, mesmo que nos últimos dias tenha arrependido e se esquecido, o poeta vai a julgamento acusado de usurpação. Há, nesse momento, duas direções para seguir, segundo a ordem de Deus, o qual está no centro. Rimbaud entende que a poesia é infinita, cíclica e seu destino não é decidido em apenas duas palavras:
Não! Não! Agora eu me revolto contra a morte! [...] No derradeiro momento, eu investiria para a direita, para a esquerda...[para o centro?]
Então, – oh! – cara e pobre alma, a eternidade estaria perdida para nós! (RIMBAUD, 1985, p.74).
A perdição eterna estaria, em quaisquer casos, decretada e só não se cumpriria se, tendo imergido nesse abismo dos son(h)os, o poeta acordasse. A ação temporal de levá-lo da noite ao dia seria providencial e redentora: “Venha, venha o tempo/que nos enamora” (RIMBAUD, 1985, p.65). É isso que se segue na sessão Manhã, a parte do dia em que, segundo Édipo, o homem é criança.
É nesse período que as primeiras palavras vêm e com elas um novo ciclo se inaugura, de narrações e imaginações. O poeta sente que seu dever foi cumprido e que suas sugestões de memória ainda se afloram nos seus sonhos pueris: “[...]que mortos têm pesadelos, tratai de narrar minha queda e meu sono. [...] Contudo, creio ter terminado hoje a minha narração de minha temporada no inferno. Era realmente o inferno: o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.”(RIMBAUD, 1985, p. 75).
Portanto, o poeta continua ciente de sua angústia com a palavra. Com ela viriam o natal, o trabalho novo, os primeiros e os escravos: o mundo é uma prisão!, disse Hamlet.
A partir desse moto-contínuo, tudo é redundância.
Por isso disse que é quase impossível falar desse poeta. Estou falando de todos: acordados, desacordados, sonolentos, sonâmbulos, taciturnos, madrugadores, vigilantes, sonhadores, tosquenejantes, entorpecidos, alucinados e os que me fogem ao léxico. Entre eles, este crítico que escreve em devaneios e este leitor que pestaneja sob enfados. A todos nós, um último aviso: o son(h)o é o princípio de todo o inferno!
Isto é crítica: falar de quando é impossível, como a mim foi; fazer adormecer crianças e acordar os homens, tanto quanto embalar os homens no colo e despertar crianças de um pesadelo. Fazer crítica se limita com catar verdades. Esta é uma tarefa de homens totalmente modernos: “Poesia só pode ser criticada por poesia” (SCHELEGEL, 1994, p.91). Poesia criticada: “alma de corpos mortos e que serão julgados!” (RIMBAUD, 1985, p.76)
A crítica à poesia é uma forma de pôr-se no lugar da poesia como uma nova poesia, daí ser fiel e conspirar ao mesmo tempo; é postergar a palavra-poética destruindo-a como se faz com sementes enterradas em “minha imaginação e minhas lembranças!”; portanto, é voltar à terra, ser plantador de poesias, “Camponês!” (RIMBAUD, 1985, p.76-77)
É esse constante destruir e recriar, dualidade da sessão Adeus, que nos permite relacionar a obra de Rimbaud ao que Nietzsche conceitualiza de niilismo ativo, a saber, o que, por força da vontade de potência se supera eternamente em movimentos espirais. Nesse ponto, vale destacar a polêmica que Steban estabelece com uma pretensa poesia moderna outra, desprovida de sentido, a qual não crê numa superação: “É preciso com Rimbaud, após Rimbaud, não deixar de crer nisso. Pois toda sua poética, mesmo ligada à sua noite, aspira a construir como que uma arquitetura de signos, e portanto uma morada possível para o sentido.” (STEBAN, 1991, p.17).
O sentido não está distante dessa poesia moderna pregada por Rimbaud, mas se fragmenta numa linguagem caótica. Segundo Friedrich, nas unidades desses fragmentos, “vibra o caos que foi necessário para a unidade tornar-se linguagem: na unidade de uma musicalidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias e harmonias.” (1978, p.60).
Essas afirmações afinam-se com o conceito de poesia moderna de Barbosa: “O que chamo de poesia moderna é, sobretudo, aquela em que a busca pelo começo se explicita através da consciência de leitura: a linguagem do poeta é, de certo modo, a tradução/traição desta consciência.” (1986, p.14).
As concepções acima, com as quais concordo, propositadamente enchendo o meu texto, meu discurso, me valendo de conclusão, auxiliam-me e me autorizam a criticar a poesia de Rimbaud em forma de um concerto de poesias e críticas. Desafinar, entretanto, é um risco que todo poeta-crítico deve correr, sobretudo aquele educado com escalas próprias e diapasões artesanais de sua própria oficina.
Tal concerto me vale, agora, como aquela mão amiga requerida por Rimbaud no final de seu poema, de sua temporada. Neste ensaio, o que é nota marginal sobe ao corpo do texto – note o leitor o meu próprio inferno! O final, por mais que o adio, avança contra a resistência à morte do poeta e sua intolerância à vida. Viver, eis sua função maldita! Um poeta fantasma e desalmado que, de corpo e alma, busca a verdade.
“[...]e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.”(RIMBAUD, 1873, p.78) ...e tentar resgatar aquela parte desgarrada de Deus, se lhe somos semelhantes, que, pela alquimia do verbo, fez-se carne e, de tempos em tempos, criações em criações, dilúvios em dilúvios, juízos em juízos, tenta lançar-se contra os grilhões temporais da linguagem, a fim de, diante de um espelho, de olhos abertos, em constante vigília, em oração, sem querer cair na tentação do son(h)o profundo do inferno, ser novamente, e pela primeira vez, Deus.
Ou, então, ser antes d’Ele, pois avisei que seria redundante!, o caos.
Fonte:
Artigo apresentado em Simpósio realizado na Universidade Federal de Uberlândia, em 2006.
Fonte: SOUZA, Enivalda Souza Freitas de. TOLLENDAL, Eduardo José. TRAVAGLIA, Luíz Carlos (orgs.). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: EDUFU, 2006. CD-ROM.
1. Introdução
Sou o único a ter a chave desta parada selvagem.
Rimbaud
De um poeta que profere um verso tão ensimesmado como este acima, seria quase impossível falar. Quase se não fosse um poeta – ou ainda, se não fosse o príncipe dos poetas modernos, o gênio entre eles. “O príncipe era o gênio, o Gênio era o príncipe”(RIMBAUD, 1985, p.87) . Quase também, porque talvez seja ao poeta que melhor se refira o dito popular: “falem mal, mas falem de mim”.
A fala é o objetivo último da poesia. É o último recurso a que se recorre a fim de se constatar que ainda se vive ou que ainda vale a pena viver. Ou, para a nossa danação e condenação, aceitarmos, pelo reconhecimento da fala, o que se decifra no enigma nietzscheano, percebendo que o ato de viver não tem outro motivo senão o humano, demasiadamente humano.
Humano, portanto errado, inicio este ensaio justamente compreendendo sua inutilidade, decretando seu fracasso. No Conto de Rimbaud, o príncipe herda, e não cria, a realeza, a palavra; mas tampouco o gênio constrói o seu sucesso sem ter recebido um legado da natureza. O gênio tenta desvendar, conhecer o mistério das palavras, sem contudo saber criá-las. Fracassados, ambos se juntam, amotinados, e investem contra Deus. O destino desses é o mesmo de todos aqueles usurpadores no decorrer dos tempos. Mas ao menos felizes são os que sabem desse destino, por compreender os antepassados. Portanto, tudo o que aqui será dito já foi dito melhor, e isso tento compreender! A história subjuga os pós-criadores a coadjuvantes nas margens da literatura.
Outrossim, muita ousadia seria atribuir a si as palavras de um autêntico criador ou inventor quando analisa a história: “sou um inventor muito mais meritório do que todos aqueles que me precederam;”(RIMBAUD, 1985, p.91).
Essa consciência de divisor de águas na poesia, não ocorrida por seus predecessores, fez aquele poeta adolescente ou adolescente poeta redescobrir a fala, postergar a questão do divino e preconizar o eu em um outro, depois de tê-lo pulverizado em um ninguém.
Esse ninguém, Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), nasceu em Charleville, nas Ardenas, tinha antepassados gauleses. Cedo fugiu de casa para ser iniciado nas rodas francesas de literatura pelo poeta Verlaine (o príncipe).
Embora seja necessário lançar mão de certos acontecimentos da tumultuada vida de Rimbaud, pretendo, neste ensaio, não me deter nesse abismo devorador, seja por prudência ou por ignorância. Outrossim, obedecendo os limites marginais deste texto, pretendo percorrer um trajeto não menos perigoso, infernal: o diálogo que sua poesia trava com a tradição enquanto se encaminha para uma modernidade no fazer poético; a dinâmica de promover um real caótico, sem regras, de forma contundente e voraz; o modo como sua poesia faz dispersar o sujeito poético; e a palavra em explosão evidenciando uma clara consciência poética no ato de criar.
Outros aspectos, evidentemente, podem ser ressaltados e prorromperem esse texto, o que promoverá, acredito, um diálogo mais coerente com o objeto sobre o qual desejo me debruçar, a saber, o poema-prosa Uma temporada no inferno.
2. Este é o sangue da nova e eterna tradição
Rimbaud era leitor dos clássicos. Baudelaire e Víctor Hugo fazem parte da grande pluralidade na voz do novo poeta, assim como Verlaine, um tutor involuntário, influenciador sem necessidade.
O respeito aos clássicos, em Rimbaud, tanto grita quanto sussurra. Seu poema é um espelho que se volta para o passado. Passado que é capaz de ver, no espelho, em seus reveses, como se numa consciência histórica, o futuro: “Falo com a certeza de um oráculo”(RIMBAUD, 1983, p.48).
Nesse caso, se toda poesia é profecia, vê, não o espelho ou no espelho, mas vê, através dele, um novo tempo que sempre foi o mesmo, desde que a história nunca “refletia” a história, senão uma pré-história. Rimbaud ensinou que prever o futuro é uma ação contingente de refletir o passado, por mais que isso pareça um lugar comum.
Seus versos estão repletos de reminiscências de autores do século XIX, contemporâneos e anteriores. Contudo, mesmo o que os faz lembrar possui o tom agudo que vem de Rimbaud e não de seus modelos.[...] Para uma apreciação de Rimbaud, aquelas reminiscências têm apenas um valor secundário. [...] ridiculariza o museu do Louvre e incita ao incêndio da Biblioteca Nacional (FRIEDRICH, 1978, p.64).
Só não incendiaria, por si só, a Biblioteca Nacional de França se lá não contivesse seu alimento principal: a palavra poesia. Para além de uma destruição material ou espiritual, o incêndio pretendido, a meu ver, é de teor histórico. Nesse caso, a tradição literária deveria achar-se nova eternamente para fazer-se tradição: É preciso ser sempre moderno. O essencial da arte exposta no museu ou entulhada e adornada pela célebre poeira da Biblioteca não é o que lhe cabe, nem do qual Rimbaud se alimentou para refazer-se de eternidade. Antes, a energia contida na arte (segundo a sugestão de Pound) é aquela capaz de conduzir o homem para compreender-se como diante do espelho, portanto essa energia é a matéria vital para o poeta.
Há um passado em cada arte. Ambos se encaram nesse anteparo narcísico e movimentam o cenário em redor de nós, pessoas-palavras. Se temos visão de continente e conteúdo, legado a nós por Baudelaire, Rimbaud, Saussure, Freud, Pound e tantos outros únicos, podemos manipular, em bom sentido, a arte de prever futuros, tanto quanto a presciência artística. Ou vemos o tempo que passa diante de nós, à revelia ou não; ou nos vemos passando pelo tempo com ou sem as dores e percalços advindos dele.
A forma como nos posicionamos diante dessa visão de arte pode ser o que chamamos de projeto estético. O de Rimbaud revela uma visão simultânea da arte na história; conjugava tradição com modernidade sem cair na explicitude de um panfletário inventor de manifestos nem no hermetismo de um anônimo propositor de uma nova ordem apocalíptica. O seu manifesto foi anônimo e inventivo; sua proposta, um pan-fleto escatológico. No espelho, Rimbaud enxergava, além do cenário e de si mesmo, o mais explícito dos hermetismos, e compreendeu-se universalmente particular. Talvez uma de suas graves diferenças para com a tradição fosse o simples fato de, numa posição como essa, manter os olhos abertos: “O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é seu próprio conhecimento, inteiro; ele busca sua alma, experimenta-a, descobre-a. Tão logo a conheça, deve cultivá-la” (RIMBAUD, In: STEBAN, 1991, p.19).
Uma outra diferença seria a de não se apoiar nos escombros do cenário (o tempo) para se firmar como alguém que se vê, seu tempo o oprimia. E isso não acontecia com seus antecessores acomodados pelo crivo da tradição. Colocar-se como uma imagem que só é imagem diante de uma outra, configura uma cabotagem histórica, a qual somente será julgada pela memória. Mas essa é uma Outra história. Basta, neste espaço, evidenciar o auto-reconhecimento desse poeta num lugar de repulsa e de inevitável atração. Essa dinâmica promove a tensão necessária para uma poesia que não se entrega a desvendamentos comuns. O tempo, portanto, é tenso para Rimbaud, é resultado de uma força que lhe cai sobre os ombros de forma opressiva, porém justa, no sentido lato do termo.
O passado tornando-se um peso, devido ao extinguir-se da genuína consciência de continuidade e à sua substituição pelo historicismo e pelas coleções em museus, produz em alguns espíritos do século XIX uma reação que conduz à repulsa de tudo aquilo que é passado (FRIEDRICH, 1978, p.65).
Este tormento configura uma nova dimensão para a arte sob a alcunha da palavra modernidade. Destruir os espelhos (os parâmetros) consistiria num ato não somente de rebeldia, mas de auto destruição, ou melhor ainda, de uma implosão. Por isso, a idéia de modernidade, legada por Baudelaire, conter um caráter mais do que dicotômico, ambíguo: “A modernidade [...] é o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável.” (In: STEBAN, 1991, p.4).
As tramas do espelho diante de Rimbaud inauguram uma nova geração de inventores de poesia capazes de compreendê-la e compreender-se. É por isso que, em Rimbaud, pode-se vê-lo ao mesmo tempo em que pode-se ver a poesia pura, quase não contaminada pela interferência da palavra-inferno de Rimbaud.
É oportuno observar que o desregramento estético se forma a partir de um rígido regramento, ou seja, quanto mais caminha-se em direção a uma antítese, mais se afirma uma nova tese a ser refutada no futuro. Parodiando o pensador da dialética, a síntese mais evidente é o próprio ato de formular e refutar, ao qual Rimbaud se prontificou.
Para ele, então, fazer poesia é não querer fazer poesia. Essa arriscada proposição encontra paralelos famosos nas palavras do próprio poeta a exemplo de eu é um outro ou é falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim. Porém, com mais propriedade, João Alexandre Barbosa assim conclui sobre o fenômeno da recusa a respeito de Valéry:
Recusando, assim uma linguagem, a da Literatura, para a invenção de uma outra, a da Literatura (desta vez consumida pelo próprio ato de recusa), o artista elabora o esquema necessário para a revelação de uma realidade nova - passada pelo crivo da crítica problematizadora. Deste modo, a metalinguagem que se incrusta, de diversas formas, na obra contemporânea revela, mais do que um simples movimento tautológico da Literatura moderna, as próprias coordenadas da crise de representação em que se encontra. (1974, p.46).
Portanto, a temporada de Rimbaud no inferno é seu sôfrego castigo de viver entre a poesia e a palavra, a tradição e a modernidade, o eu e o outro, o real e o não real.
3. Em verdade vos digo que (não) vos conheço
Identificar o ponto de partida para o inferno é compreender a origem daquele que é seu visitante. Antes deste estar no inferno, o inferno está nele. Diante do Cérbero, na porta do inferno, o visitante de Rimbaud tem lampejos brascubeanos de consciência, interpolados por desejos de retorno à vida, a fim de consertar os males causados na origens: A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova que sonhei.
O son(h)o é o princípio de todo o inferno, por isso busca-se artifícios de conforto, mas o inferno é imanente. Há que se saber que vozes são essas que gritam dentro de si.
Como se numa espécie de prólogo, na primeira parte de Uma temporada no inferno, o poeta dedica seus versos a apresentar as vozes dos agentes principais do poema. O tom irônico e tácito demonstra a ousadia com a qual a insólita viagem é configurada. A fragmentação do discurso não permite que se construa linearidade ou integridade desses agentes.
Uma das representações fragmentadas é a da virgem louca – que aparecerá com mais destaque na sessão Delírios. Segundo o texto bíblico, Jesus Cristo conta a parábola das dez virgens: cinco delas são prudentes; as outras cinco, loucas. A imprudência destas está no fato de não terem preparado azeite suficiente para suas lâmpadas, enquanto aquelas tinham o suficiente para si, o que impossibilitava uma redistribuição. Tendo que ir aos mercadores para comprar azeite, as cinco virgens loucas chegaram atrasadas para encontrar o esposo, por ocasião de seu casamento. Este levou consigo para as bodas somente as cinco que estavam presentes e prontas.
O estado da virgem louca apresentada por Rimbaud parece se assemelhar ao daquelas nas circunstâncias vexatórias transcritas nas palavras do evangelista, palavras estas que evocam um tênue sentido de injustiça e o rancor ressentido por parte de quem foi rejeitado. Uma vez que todas dormiram - o princípio é o mesmo:
E, tardando o esposo, tosquenejaram todas, e adormeceram. [...]
E, tendo elas ido comprá-lo [o azeite], chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta. E depois chegaram também as outras virgens, dizendo: Senhor, senhor, abre-nos. E ele respondendo, disse: em verdade vos digo que vos não conheço (BÍBLIA SAGRADA, 1969, 39-40).
Tendo se fechado a porta, uma pergunta fica no ar, sobre a qual Jesus se silencia: qual foi a alternativa encontrada pelas virgens loucas, qual o seu destino?
Para o inferno! – responderia a cristandade. Isso evidencia o fato de que uma saison pelo inferno não seria propriamente uma opção, mas uma contingência. Outras atitudes coerentemente se agregarão à alternativa que restou à virgem louca:
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. - E achei-a amarga. - E injuriei-a
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeira, ó miséria, ó ódio, a vós é que meu tesouro foi confiado. [...] o infortúnio foi meu deus.” (RIMBAUD, 1983, 45)
O outro agente representado é o demônio, a quem o poema é dedicado: “[...] já que apreciais no escritor a ausência das faculdade descritivas ou instrutivas, destaco para vós estas hediondas folhas de meu caderno de réprobo.” (RIMBAUD, 1983, 45)
Anfitrião da virgem louca, Satã é requisitado pelo poema a ter um olhar menos irritado e compreender a contingência estabelecida e decorrente de uma mútua imprudência. O mesmo Satã sofreu com a rejeição desde sua expulsão do Céu, embora, segundo o texto bíblico, o inferno já estaria preparado para o diabo e seus anjos. Tal como o demônio e a virgem louca, a rejeição em Rimbaud era inerente ao seu espírito e muito mais explícita em sua palavra, porque sopro de Deus.
A dinâmica é a de que essa rejeição provoca a busca de um acolhimento. Esta dinâmica pode nos remeter à convivência complexa entre a tradição e a modernidade em Rimbaud, o que, em si, promove um estado propriamente “infernal” no fazer poético. A tradição elege a prudência, a beleza, a justiça, a moral e rejeita o novo como forma de auto preservação. Toda a formação anti-tradicional de Rimbaud decorre, contraditoriamente, de sua formação tradicional. Na metáfora da virgem louca e de seu conveniente anfitrião, um poeta imprudente e iniciante rejeita os termos positivos da tradição e mergulha (ou é lançado) em um lago de fogo, a saber, a “modernidade [que] conduz a novas experiências, cuja dureza e obscuridade exigem uma poesia suja e ‘negra’”. (FRIEDRICH, 1978, p.66) [grifo do autor]. O próprio poema é o inferno. O castigo é escrevê-lo, pois ele contém as palavras de condenação: profecia , (e)vidência.
A sessão intitulada Sangue ruim mostra profecias que se evidenciam tanto no plano real como no ficcional. Rimbaud transita do real para o não-real como já havia anunciado sobre sua tarefa de poeta: ausência de faculdades descritivas e instrutivas.
A origem que começa a ser narrada é a do próprio Rimbaud. Esta vai se diluindo entre as elucubrações acerca de sua história a ponto das metáforas desaparecerem, pois o universo se torna totalmente (ou puramente) metafórico. O homem real e o sujeito poético se equivalem nessa estética: “A mão que segura a pena vale tanto quanto a que empurra o arado.” Ambos, ao inferno, são condenados pelas próprias mãos: “ – Que século manual!” (RIMBAUD, 1983, p.47).
A origem genética constatada pelo próprio poeta faz com que se divida a culpa por sua condenação e ressalta a imanência. É pelas mãos que o poeta se condena, ao escrever, mas ele escreve o que ele é. Todos os atributos herdados, tanto dos antecessores estéticos como genéticos, se relativizam diante de sua descrição. Nada deve permanecer esclarecido – a (e)vidência se faz, não na explicitude, mas na crueza do simulacro: “Tenho deles [gauleses]: a idolatria e o amor ao sacrilégio; – Oh! Todos os vícios, cólera, luxúria, – magnífica a luxúria; – sobretudo mentira e indolência.”(RIMBAUD, 1983, p.47).
A misteriosa evidência contida nessas palavras, aos poucos retoma a metáfora do espelho e torna, aos olhos do leitor, um instrumento revelador de verdades universais. A família de Rimbaud é todas as famílias(Friedrich assim compreende a recorrência utilização da totalidade e dispersão do sujeito poético em Rimbaud: “[...] outra tendência de Rimbaud, a de isentar o individual de toda limitação local, ou de qualquer índole, mediante a expressão generalizante ‘todos’”[...] (1978, p.82)).
Essa verdade age, em nós leitores, como os descendentes que Rimbaud descreve como pilhadores que são “lobos que atacam o animal que não mataram” (RIMBAUD, 1983, p.48) Ou seja, não foi Rimbaud quem criou seus versos, foram legados a ele por seus ancestrais poéticos, mas somente Rimbaud poderia escrevê-los. Sabia-o o poeta: “Que era eu no século passado: só hoje é que torno a encontrar-me”(RIMBAUD, 1983, p.48).
Tendo consciência de sua inutilidade no processo literário, o poeta transforma, ou mesmo, deforma sua deficiência em prol de um projeto novo. Continuava sua descrição como se o tempo todo estivesse rindo de si e da humanidade, como fazia a Esfinge de Tebas. Para isso, palavras enganosas: “Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior, por toda a eternidade. [...] pela minha máscara, pensarão que sou de uma raça forte.” (RIMBAUD, 1983, p.49).
No que era fraco deveria fazer-se forte. A divindade deve ser invertida, por isso, para a virgem sem azeite, na demora do esposo, é preciso contentar-se em fazer como todos, prudentemente: “o melhor a fazer é dormir, bêbedo, na praia.” (RIMBAUD, 1983, p.49) Repito: o son(h)o é princípio de todo o inferno.
Nesse ponto, o poema sugere atribuições demoníacas como adorar animais, quebrar corações, sustentar mentiras etc. Se o inferno de ser poeta atormenta seu coração, Rimbaud instrui a ter consciência disso, pois negá-lo também não lhe salvará desses tormentos: “Não te matarão mais do que se fosses um cadáver.” (RIMBAUD, 1983, p.51)
A oposição de Rimbaud a Deus, portanto, pode se dar nos dois planos referidos. Nisso, creio, pouco importa acreditar-se ou não na carta de sua irmã à mãe relatando a conversão do poeta ao cristianismo. Se Rimbaud rogou mesmo a misericórdia divina, sabia ele que seu destino, já traçado, era a condenação. Se estas palavras fazem crer que defendo aqui que, de contrapartida, o que acontece no plano estético é refletido no plano real, digo, sobrenatural, então fiquemos, cada um à sua maneira, com nossos próprios infernos.
No plano estético, outrossim, (não) somente no estético, percebemos uma trindade julgando os procedimentos do poeta: “pai, professores, patrões”, a saber, a moral familiar, a ciência e o capital.
Para tentar fugir, como Édipo, de seu destino, Rimbaud, com suas máscaras vai para a África traficar armas: “Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam” (RIMBAUD, 1983, p.52). Volta para onde teria sido o berço das artes e da humanidade, dizendo conhecer a natureza e a si mesmo. Tanto propõe o enigma como o desvenda. Prescinde de palavras e busca nos gritos e nas danças as verdadeiras origens da poética. Então todos os poetas cabem natimortos dentro de sua poesia: “Sepultei os mortos no meu ventre” (RIMBAUD, 1983, p.52).
Ali Rimbaud, como desejou Alberto Caeiro, revê a criação e vê-se criança: “Vou ser arrebatado como uma criança, para brincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças.” (RIMBAUD, 1983, p.52).
Se pode renascer (de si mesmo), além de somente ver-se, conhecer-se, Rimbaud faz-se Deus, daí, sim, poder ter-se convertido: “A razão nasceu em mim. [...] tendo Jesus Cristo como sogro. Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus.”(RIMBAUD, 1983, p.53).
Este foi o percurso que o Príncipe e o Gênio fizeram a fim de se recuperarem de suas angústias (Estes personagens, já referidos anteriormente, constam na sessão “Conto” do poema “Iluminações” (Iluminations, de 1873). O destino do Príncipe e do Gênio é o aniquilamento, como sugerem os versos: “O Príncipe e o Gênio se aniquilaram provavelmente na saúde essencial. Porque não morreriam eles disto? Juntos, então, eles morreram.” (RIMBAUD 1983, p.87)). Mesmo porque, somente nessa posição de criador, poderiam assoprar nas narinas das outras criaturas seus próprios destinos; assoprar palavras de liberdade e de condenação; e saber de todos os mistérios e revelações oraculares das palavras desde a primeira delas; reconhecer-se no princípio e únicos. Conhecer e reinar absoluto: mistérios lacrados pelo engano de que as palavras elucidam. Pelo contrário, elas nos retardam à obscuridade, a qual existia na solidão de um Deus que precisava de um outro. Anterior ao Haja luz! , teria dito: Haja Eu!; então, no princípio era o verbo!
4. E o verbo, (a)traído, fez-se inferno
Estando configurada a predestinação do poeta ao inferno, fechada a porta do paraíso, a próxima sessão do poema em prosa é Noite do inferno. Nela o poeta tenta superar as dificuldades da descrição com sensações promovidas pelo efeito das palavras: “Possa eu descrever a visão, o ar do inferno não tolera hinos” (RIMBAUD, 1983, p.55).
Diante do impasse, apela para os sentidos evidenciados na forma. As sensações se alternam com ensaios de descrições e metáforas não usuais. Apresentando o seu projeto estético, Rimbaud, nessa sessão, supera os limites da objetividade e convoca o leitor a perceber a sua diferença para com a tradição poética: forma em explosão, conteúdo em explosão, projeto em explosão; a reiteração aqui é necessária: “As alucinações são inumeráveis.[...] Eu deveria ter um inferno para a minha cólera, um inferno para o meu orgulho, – e o inferno da carícia; um concerto de infernos.”(RIMBAUD, 1983, p.56-57)
Há sugestões para todos os sentidos humanos, inclusive a alucinação: “morro de sede, sufoco, não posso gritar.[...] magias, perfumes falsificados, músicas pueris [...] à luz da lanterna...”(RIMBAUD, 1983, p.55-56)
Entretanto, o sentido que mais se destaca é o do tato. É através dele que é apresentado um outro agente cuja voz o poeta utilizará: o traidor, Judas – a traição, um beijo. A história – todos conhecemos – mudou a nossa era: “este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo!”(RIMBAUD, 1983, p.57).
Um Judas, digo, um traidor no meio dos poetas franceses. Um discípulo que rejeita sua escola por muito se alimentar dela. Se enriquecer de seu saber, e, a partir disso, inaugura uma nova era da poesia. O aluno despreza seus mestres e os provoca: “É, sem dúvida, o que sempre tive: falta de fé na história, o esquecimento dos princípios. Silenciarei sobre isto: poetas e visionários ficariam enciumados. Sou mil vezes o mais rico, sejamos avaros como o oceano.” (RIMBAUD, 1983, p.56).
Parece ser o último aviso do poeta sobre o seu comportamento deslocado da estética tradicional. A partir de então, o poema se perde em Delírios sem concessões descritivas ou instrutivas.
Para que o leitor aceite o convite do poeta a acompanhá-lo pelo inferno, como o de Virgílio a Dante, basta um sinal, um beijo, e a aquiescência; acreditar nas sugestões proferidas: “Creio estar no inferno, então estou nele”(RIMBAUD, 1983, p.55).
A resposta para esse convite, o sinal e a assinatura do contrato com o Demônio podem ter sido feitos mesmo sem o consentimento anteriormente às formulações de decisão do leitor, na própria aquisição da leitura, quando o leitor treina os primeiros preceitos da decodificação. Desde as primeiras liturgias, obedecendo os sagrados sacramentos da escrita até a interpretação: “É a execução do catecismo. Sou escravo do meu batismo. Pais, fizeste a minha desgraça, e também a vossa. Pobre inocente! – o inferno não pode investir contra os pagãos.” (RIMBAUD, 1983, p.55).
Quem lê, então, não é mais inocente, não é mais pagão. Mais uma vez a palavra provoca a danação humana. Mas não é ela inerente ao homem?!
Além do aviso sobre o seu comportamento estético, o poeta alerta para os perigos da palavra, da poesia, batismo infernal, processo pelo qual o leitor será iniciado, tendo ou não feito uma opção.
O projeto do poeta torna-se consciente e notório em suas palavras. Se esse projeto caracteriza uma vida independente para as palavras, então fica perceptível, na voz poética, a consciência das palavras além do que elas dizem (metalinguagem), e também sobre o que elas se calam. Há um vazio silencioso e escuro que as palavras guardam, um continente ilógico e caótico que grita, não pela materialidade nelas, mas pelo que elas cheiram, comem, tocam, ouvem ou vêem – o que, em essência, deveriam ser ações materiais, contudo, no caso de serem palavras, não o são.
Sobre este aspecto, a percepção de Michel Foucault a respeito da obra de Borges parece bastante oportuna. Impressão por impressão, se tudo é crítica, uma desconfiança infernal exige um espaço aberto neste texto para o impressionante pensador d’As palavras e as coisas: “O embaraço que faz rir quando se lê Borges [para mim, Rimbaud] é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o ‘comum’ do lugar e do nome. Atopia, afasia.” (FOUCAULT, 1995, p..9).
Abertas as portas do inferno intertextual, convém um exemplo a mais, conhecido entre nós, talvez sobre a personagem mais metalingüística da literatura brasileira, justamente por provocar reflexões incompreensíveis na linguagem. Alfredo Bosi aponta a boa concisão terminológica do narrador para auxiliar uma aparente afasia no Menino mais velho de Vidas Secas:
O que interessa ao narrador é fixar o instante do curto-circuito, o processo da incomunicação, a conversa truncada na origem, o diálogo impossível; em suma, a barbárie que pulsa na assimetria de adulto e criança, de forte e fraco, e que está prestes a explodir a qualquer hora. Mas como o texto de Graciliano se produz em um regime de consciente economia, não esperdiçando símbolos ao acaso, importa a escolha do signo motivado. É exatamente a palavra inferno que acaba funcionando como analogon de toda a relação intersubjetiva de base (BOSI, 1988, p.16).
Portanto, o projeto de Rimbaud é mais voltado para esse desespero diante da não-linguagem. Algo ousado no contexto de uma cultura totalmente logocêntrica capaz de definir o homem como possível de ser definido por palavras. Nesse caso, aquilo que se vai desfigurar o homem, as coisas, deslocados de sua base essencial – a linguagem – necessitará de um novo lugar.
Esse deslocamento é um processo de transcendência: remete-se o que é aparente ao que é essencial. Platão, Kant, Nietzsche e outros que buscam pelo conceito de humano deram suas indicações. Segundo Friedrich, Rimbaud indica um vazio pleno, uma transcendência vazia.
Por isso é que o caminho se torna potencialmente perigoso. Todas as aventuras, tanto celestes como infernais poderão não passar de um efeito alucinógeno, de Delírios, como o do ópio ou do vinho, mas todas elas serão desregradas a ponto de serem questionadas, mesmo aquelas das quais não se podia sequer suspeitar: “Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias.” (RIMBAUD, 1983, p.56).
É nessa sessão Delírios que os desvendamentos começam a se desatar em tons confessionais. Tudo pode conter semelhança com o real através dos discursos pseudo-enganadores de uma virgem louca e de um poeta-traidor, ambos em busca de redenção: irrealidades sensíveis na concepção de Friedrich, pois “estamos num mundo cuja a realidade existe só na língua.” (1978, p. 79)
A virgem louca procura argumentos que a fazem diferenciar-se das outras loucas, suas amigas, e dialoga com o esposo infernal a fim de escusar-se de seus pecados. Sente saudades, arrependida, dos tempos em que esperava pelo esposo dos céus. Uma relação de infidelidades se delineia em seu discurso, inclusive, lembrando o conturbado romance de Rimbaud e Verlaine. Torna-se interessante, a propósito, por conter os conturbados diálogos entre a poesia tradicional com a sinestésica poesia moderna:
Com seus beijos e abraços amigos, era sem dúvida num céu, num céu sombrio, que eu entrava, e onde desejaria ser deixada, pobre, surda, muda, cega.[...] Pois será preciso que eu parta um dia, para muito longe.[...] Esta promessa de amante, ele a fez vinte vezes a mim. Era tão frívola quanto minha frase que lhe dizia: ‘Eu te compreendo’.[...]Que estranho casal! (RIMBAUD, 1983, p. 61-62).
O diálogo fica mais intenso, e talvez mais explícito, na segunda sessão dos Delírios, a saber, Alquimia do verbo. Nela, Rimbaud promove uma reflexão de seus atos poéticos. A sessão, dedicada a ele próprio, reporta, em estrutura quase narrativa, suas aventuras de criador, portanto de usurpador do trono de Deus. O reconhecimento de sua desmedida tem um caráter de arrependimento, mas, em vez disso, torna-se uma auto-delação, sobretudo porque contém confissões irreversíveis que o fazem se contradizer: “Nenhum dos sofismas da loucura, – a loucura que leva ao hospício, – ficou esquecido por mim: eu poderia repeti-los todos, tenho um sistema.” (RIMBAUD, 1983, p.68).
A condenação é inevitável, uma vez que a palavra cria uma nova realidade, como o próprio poeta o faz perceber, e o verbo está em constante alquimia. Todas as vezes que pronunciar seus pecados, mesmo em confissão, ele confirmará o seu merecido castigo. Para tanto, a quantidade e qualidade dos verbos (Essa leitura pode ser arriscada se não evidenciar aqui os respectivos elementos. Os verbos, para citar alguns, ressaltam os comprometimentos estéticos no projeto de Rimbaud: possuir, amava, sonhava, inventei, regulei, nutri, traduzi, escrevi, anotava, fixava, assumia, tornei-me etc.), em abundância na sessão, negam o novo projeto ao qual o poeta se lançará no futuro: “Isso passou. Sei hoje saudar a beleza” (RIMBAUD, 1983, p.69). Mas a sorte já estava lançada, pois ele já havia informado o seu pior pecado quando elegia uma nova divindade: “Terminei achando sagrada a desordem de meu espírito”(RIMBAUD, 1983, p.65).
Na verdade, Rimbaud encontrou seu descanso, fugindo do conteúdo infernal da poesia. No plano estético, buscou a aproximação da pintura na composição de Iluminações e, no plano real, buscou a vida evasiva nos desertos africanos. Ali, seus afazeres comerciais não o deixariam lembrar-se ou pronunciar as palavras proféticas ou poéticas de condenação.
Em ambos os casos, percebe-se que a alternativa encontrada não diz respeito aos expedientes comumente utilizados pelo poeta, ou seja: os son(h)os, a alucinação, o espelho e a (e)vidência; os quais somente confirmariam sua angústia. As alternativas são o esquecimento, a fuga, e, sobretudo, o que tratarei na última e breve parte desse ensaio: a caridade. “A caridade é essa chave.”( RIMBAUD, 1983, p.45)
5. Vigiai e orai para que (não) entreis em (com)tradição
A chave para manter-se em vigília é a caridade. Isso para Rimbaud é uma incerteza, mas esta incerteza é a única coisa certa que possui.
A caridade tem morada: é no Oriente. Longe (ou muito próximo?) das potestades cristãs e suas respectivas punições, o poeta procura o alento oriental, berço das divindades primevas. Se a alternativa não foi a mais adequada, pelo menos é uma fuga.
Na sessão O impossível, o poeta anuncia a sua despedida com resolução: “Evado-me!” (RIMBAUD, 1985, p.70). Ignorar o céu é, pelo menos, fugir de suas determinações.
Uma nova mitologia é requerida para a poesia moderna. Rimbaud se cansa das tradições ocidentais e seus símbolos capitalistas como o Senhor Prudhomme. A ciência racional e a Igreja moralista do ocidente são venenos para a estética do poeta. Elas o mantêm sob um falso estado de vigília, a fim do trabalho, do progresso, mas ele reclama: “Mas me apercebo que meu espírito dorme”(RIMBAUD, 1985, p.72). Na iminência da chegada do noivo, o poeta-virgem-louco teme esse sono infernal proporcionado pela palavra lógica e venenosa.
Eis que a terceira via se abre: a meditação oriental, aquela que se faz, finalmente, de olhos abertos – venenos diferentes. A poesia deve ser diferente: pura e moderna; o poeta clama por pureza.
São os olhos abertos diante do espelho que poder ver, em todos os sentidos, O relâmpago. Esta é a sessão que anuncia a vinda do juízo final para a poesia e para todos: “Porque assim como um relâmpago que sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser a vinda do filho do homem.” (BÍBLIA SAGRADA, 1969, P.38).
Como já dói condenado, mesmo que nos últimos dias tenha arrependido e se esquecido, o poeta vai a julgamento acusado de usurpação. Há, nesse momento, duas direções para seguir, segundo a ordem de Deus, o qual está no centro. Rimbaud entende que a poesia é infinita, cíclica e seu destino não é decidido em apenas duas palavras:
Não! Não! Agora eu me revolto contra a morte! [...] No derradeiro momento, eu investiria para a direita, para a esquerda...[para o centro?]
Então, – oh! – cara e pobre alma, a eternidade estaria perdida para nós! (RIMBAUD, 1985, p.74).
A perdição eterna estaria, em quaisquer casos, decretada e só não se cumpriria se, tendo imergido nesse abismo dos son(h)os, o poeta acordasse. A ação temporal de levá-lo da noite ao dia seria providencial e redentora: “Venha, venha o tempo/que nos enamora” (RIMBAUD, 1985, p.65). É isso que se segue na sessão Manhã, a parte do dia em que, segundo Édipo, o homem é criança.
É nesse período que as primeiras palavras vêm e com elas um novo ciclo se inaugura, de narrações e imaginações. O poeta sente que seu dever foi cumprido e que suas sugestões de memória ainda se afloram nos seus sonhos pueris: “[...]que mortos têm pesadelos, tratai de narrar minha queda e meu sono. [...] Contudo, creio ter terminado hoje a minha narração de minha temporada no inferno. Era realmente o inferno: o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.”(RIMBAUD, 1985, p. 75).
Portanto, o poeta continua ciente de sua angústia com a palavra. Com ela viriam o natal, o trabalho novo, os primeiros e os escravos: o mundo é uma prisão!, disse Hamlet.
A partir desse moto-contínuo, tudo é redundância.
Por isso disse que é quase impossível falar desse poeta. Estou falando de todos: acordados, desacordados, sonolentos, sonâmbulos, taciturnos, madrugadores, vigilantes, sonhadores, tosquenejantes, entorpecidos, alucinados e os que me fogem ao léxico. Entre eles, este crítico que escreve em devaneios e este leitor que pestaneja sob enfados. A todos nós, um último aviso: o son(h)o é o princípio de todo o inferno!
Isto é crítica: falar de quando é impossível, como a mim foi; fazer adormecer crianças e acordar os homens, tanto quanto embalar os homens no colo e despertar crianças de um pesadelo. Fazer crítica se limita com catar verdades. Esta é uma tarefa de homens totalmente modernos: “Poesia só pode ser criticada por poesia” (SCHELEGEL, 1994, p.91). Poesia criticada: “alma de corpos mortos e que serão julgados!” (RIMBAUD, 1985, p.76)
A crítica à poesia é uma forma de pôr-se no lugar da poesia como uma nova poesia, daí ser fiel e conspirar ao mesmo tempo; é postergar a palavra-poética destruindo-a como se faz com sementes enterradas em “minha imaginação e minhas lembranças!”; portanto, é voltar à terra, ser plantador de poesias, “Camponês!” (RIMBAUD, 1985, p.76-77)
É esse constante destruir e recriar, dualidade da sessão Adeus, que nos permite relacionar a obra de Rimbaud ao que Nietzsche conceitualiza de niilismo ativo, a saber, o que, por força da vontade de potência se supera eternamente em movimentos espirais. Nesse ponto, vale destacar a polêmica que Steban estabelece com uma pretensa poesia moderna outra, desprovida de sentido, a qual não crê numa superação: “É preciso com Rimbaud, após Rimbaud, não deixar de crer nisso. Pois toda sua poética, mesmo ligada à sua noite, aspira a construir como que uma arquitetura de signos, e portanto uma morada possível para o sentido.” (STEBAN, 1991, p.17).
O sentido não está distante dessa poesia moderna pregada por Rimbaud, mas se fragmenta numa linguagem caótica. Segundo Friedrich, nas unidades desses fragmentos, “vibra o caos que foi necessário para a unidade tornar-se linguagem: na unidade de uma musicalidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias e harmonias.” (1978, p.60).
Essas afirmações afinam-se com o conceito de poesia moderna de Barbosa: “O que chamo de poesia moderna é, sobretudo, aquela em que a busca pelo começo se explicita através da consciência de leitura: a linguagem do poeta é, de certo modo, a tradução/traição desta consciência.” (1986, p.14).
As concepções acima, com as quais concordo, propositadamente enchendo o meu texto, meu discurso, me valendo de conclusão, auxiliam-me e me autorizam a criticar a poesia de Rimbaud em forma de um concerto de poesias e críticas. Desafinar, entretanto, é um risco que todo poeta-crítico deve correr, sobretudo aquele educado com escalas próprias e diapasões artesanais de sua própria oficina.
Tal concerto me vale, agora, como aquela mão amiga requerida por Rimbaud no final de seu poema, de sua temporada. Neste ensaio, o que é nota marginal sobe ao corpo do texto – note o leitor o meu próprio inferno! O final, por mais que o adio, avança contra a resistência à morte do poeta e sua intolerância à vida. Viver, eis sua função maldita! Um poeta fantasma e desalmado que, de corpo e alma, busca a verdade.
“[...]e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.”(RIMBAUD, 1873, p.78) ...e tentar resgatar aquela parte desgarrada de Deus, se lhe somos semelhantes, que, pela alquimia do verbo, fez-se carne e, de tempos em tempos, criações em criações, dilúvios em dilúvios, juízos em juízos, tenta lançar-se contra os grilhões temporais da linguagem, a fim de, diante de um espelho, de olhos abertos, em constante vigília, em oração, sem querer cair na tentação do son(h)o profundo do inferno, ser novamente, e pela primeira vez, Deus.
Ou, então, ser antes d’Ele, pois avisei que seria redundante!, o caos.
Fonte:
Artigo apresentado em Simpósio realizado na Universidade Federal de Uberlândia, em 2006.
Fonte: SOUZA, Enivalda Souza Freitas de. TOLLENDAL, Eduardo José. TRAVAGLIA, Luíz Carlos (orgs.). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: EDUFU, 2006. CD-ROM.
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