sábado, 9 de fevereiro de 2008

Lenda Árabe: A História do Burro, do Boi e do Comerciante

Havia, no tempo do grande Califa Haroun al Raschid, que viveu em Bagdá, um comerciante, senhor de muitas posses, casado e pai de muitos filhos. Alá, o Altíssimo, lhe deu o dom de entender a língua dos animais. Esse comerciante morava numa região fértil à margem de um rio e tinha um burro e um boi.

Certo dia o boi chegou ao lugar que era ocupado pelo burro e o encontrou varrido e regado de água. No cocho havia cevada bem joeirada e palha desfiada. O burro estava deitado, em repouso, como se fosse uma figura importante. Indignado, o boi se lembrou que, quando seu senhor montava o burro, era apenas para uma curta viagem, quando havia urgência, pois o burro voltava logo ao seu repouso. Protestou, então, sem perceber que o comerciante o ouvia.
— Comes do bom e do melhor e que isso te seja saudável, proveitoso e de fácil! Eu estou fatigado e tu, repousado. Tu comes a cevada bem joeirada, a palha desfiada e és bem cuidado em seu estábulo. Se às vezes, por alguns momentos, teu senhor te monta, bem depressa te traz de volta! Quanto a mim, sirvo apenas para a labuta e para o trabalho pesado do moinho!

Então o burro disse em resposta:
— Ó pai do vigor e da paciência, em vez de te lamentares, faze o que vou te dizer. Digo-te isso por amizade, simplesmente pelo gosto de Alá. Quando saíres para o campo e meterem o jugo no teu pescoço, atira-te por terra e não te levantes, mesmo que te batam. Quando te levantares, deita-te depressa pela segunda vez. Se te fizerem voltar ao estábulo e te apresentarem favas, não as coma. Finge-te de doente e esforça-te por não comer nem beber por uns três dias. Dessa maneira, repousarás da fadiga e do trabalho e te trarão da melhor palha e da melhor cevada para tua alimentação.

O comerciante, escondido, ouviu aquelas palavras. Quando o tratador foi para junto do boi para lhe dar forragem, viu que o animal comia muito pouco. No dia seguinte, pela manhã, quando foi buscá-lo para o trabalho, encontrou-o doente. Foi depressa e comunicou o fato ao seu senhor, que lhe disse em resposta:
— Leva o burro e faze com que ele trabalhe no lugar do boi, durante o dia todo!

O tratador assim fez e levou o burro no lugar do boi, fazendo-o trabalhar durante o dia inteiro. No fim do dia, quando o burro voltou para o estábulo, o boi lhe agradeceu a benevolência, que permitiu que ele, o boi, repousasse de sua fadiga durante aquele dia. Arrependido, o burro não respondeu.

Na manhã seguinte, um semeador foi buscar o burro e o fez trabalhar o dia inteiro. O burro voltou com o pescoço esfolado e vencido pela fadiga. O boi, vendo-o naquele estado, agradeceu efusivamente, glorificando o amigo com louvores.

Disse o burro, então:
— Antes, eu estava muito tranqüilo. A minha esperteza me condenou. Mas é preciso que eu lhe diga que ouvi nosso amo dizer que o boi não se levantar de seu lugar, será dado ao magarefe para que o mate e faça de sua pele um couro para a mesa. Eu ouvi e tive muito medo por ti. Aviso-te, portanto, para tua salvação.

Ao ouvir as palavras do burro, o boi agradeceu-lhe e disse:
— Amanhã mesmo irei livremente com o tratador, cuidar de minhas ocupações.

Na mesma hora começou a comer toda a forragem. Nenhum dos dois percebeu, no entanto, que o comerciante, escondido, ouvia cada uma das palavras deles. Quando o dia amanheceu, o comerciante saiu com a esposa para onde ficavam os bois e as vacas e ali sentaram. Veio o tratador, tomou o boi e saiu. Como não estava acostumado com a comida que havia ingerido durante aquele tempo de inatividade, inesperadamente e à vista de seu amo, o boi começou a agitar a cauda e a soltar ventos ruidosamente, girando como doido de um lado para outro. O comerciante foi tomado de tal ataque de risos que caiu de seu assento. Sua esposa quis saber:
— De que te ris tanto?

Ele respondeu:
— De uma coisa que vi e ouvi, mas que não posso divulgar sem morrer.

Ela insistiu:
— Eu exijo que me contes a razão de teu riso, mesmo se devesses morrer por isso.

Ele replicou:
— Não posso divulgar isso, porque tenho medo da morte.

Ela lhe disse:
— Mas então estás rindo de mim!

Concluindo isso, não cessou de discutir com ele e de o atormentar com palavras, teimosamente. Tanto fez que, por fim, ele se sentiu obrigado a lhe contar. Fez vir seus filhos a sua presença e mandou chamar o cádi e testemunhas, pois queria fazer seu testamento, antes de revelar o mortal segredo à esposa, a quem ele amava e com quem tinha vivido um tempo considerável de sua vida. Ao saberem da exigência da mulher, amigos e parentes disseram:
— Por Alá! Deixa de lado essa história pelo temor que morra teu marido, o pai dos teus filhos!

Mas ela lhes disse:
— Não lhe darei paz enquanto não me tiver dito seu segredo, mesmo que deva morrer!

Então cessaram de falar com ela. E o mercador se levantou de junto deles e se dirigiu para o lado do estábulo, no jardim, a fim de fazer suas abluções e voltar para contar o segredo e morrer. Ocorre que ele tinha um galo valente, capaz de satisfazer cinqüenta galinhas. Tinha também um cão muito valente. Ele ouviu, naquele momento, o cão que chamava o galo, insultava-o, dizendo:
— Não tens vergonha de te mostrares alegre quando nosso senhor vai morrer?

E o galo disse ao cão:
— Como é isso?

O cão contou toda a história e o galo disse:
— Por Alá! Nosso senhor é bem pobre de inteligência. Eu, que tenho cinqüenta esposas, sei me desembaraçar delas, agradando uma e ralhando com outra! Ele tem uma só e não sabe nem o bom meio nem a maneira de tratar com ela! Ora, é bem simples! Não tem senão que cortar, em intenção dela, algumas boas varas de amoreira, entrar bruscamente em seu reservado e bater-lhe até que ela morra ou se arrependa: e nunca mais ela tornará a importuná-lo com qualquer pergunta que seja!

Ao ouvir aquelas palavras, o comerciante sentiu a luz voltar a sua razão e ele resolveu espancar a esposa. Assim, ele entrou no quarto reservado de sua esposa, depois de ter cortado em sua intenção as varas de amoreira e de as ter escondido.

Disse-lhe, chamando-a:
— Vem até o quarto reservado para que eu te diga o segredo e ninguém me possa ver morrer depois!

Ela entrou com o marido e ele fechou a porta do quarto reservado sobre ambos e caiu-lhe em cima a golpes dobrados, até vê-la desmaiar.

Exclamou ela em altos brados, então:
— Eu me arrependo! Eu me arrependo! — e se pôs a beijar as mãos e os pés do marido, demonstrando que estava verdadeiramente arrependida.

Depois, saiu com ele e toda a assistência se regozijou. O casal viveu no estado mais feliz e afortunado até a morte. O burro jamais tentou ser mais esperto que seu amo e o boi jamais lamentou sua sorte novamente. Como gratidão, o comerciante dobrou a quantidade de galinhas aos cuidados de seu galo.

Às vezes, quando o comerciante, sozinho a um canto, começava a rir, lembrando daquilo que não podia contar, sua esposa imediatamente se lembrava da surra de varas de amoreira e espantava toda a curiosidade de seu coração.

Fonte:
BAÇAN, L. P.
Lendas Árabes - E-book Virtual
Pérola, PR: Ed. do Autor, 2007.

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