sábado, 16 de fevereiro de 2008

Hélder Santana (Conto: A Mocréia)

Quando entrou naquele ônibus lotado e percebeu que todos a olhavam, Gisele teve contato com um prazer maior que o sexual por alguns instantes. A cada olhada, discreta ou escancarada, cada comentário cochichado no ouvido ao lado, ela sentia um prazer indescritível, e até mesmo alívio por saber que sua qualidade mais marcante e mais querida estava lá,firme e forte: ela era feia. Incomparavelmente feia. E cada dia mais feia. Isso era seu orgulho, seu ponto de honra, sua filosofia de vida e sua glória.

Quando nasceu, era uma criança bonita, como outra qualquer. A medida que foi crescendo,foi se tornando terrivelmente feia. Seu rosto era a demonstração da crueldade e do mau gosto que a natureza pode exprimir em alguns casos. Um infortúnio, um verdadeiro castigo estético.

Certo dia voltou para casa chorando. Desesperada e aos prantos, gritou para a mãe:

— Nunca mais volto àquele lugar.

— Mas por quê?

— Não cansam de me chamar de mocréia, horrorosa. Ninguém gosta de ficar ao meu lado, porque eu sou feia.

A mãe não sabia mesmo como reagir. Se acostumara com o desastre que era o rosto da filha, passara a achar aquilo tão normal que nem pensara que na escola, sob os olhos cruéis dos inocentes, a história seria outra. Mas se Gisele era realmente tão horrorosa, por que então...? Foi direto ao ponto:

— E daí? Você deveria se orgulhar disto. Ser feia é um diferencial. Todo mundo quer ser bonito. Você não precisa ser escrava deste padrão. Quando alguém te chamar de mocréia, reaja com um sorriso. Mostre toda a sua feiúra e diga obrigado. Ser feia não é pecado. Se existe feiúra no mundo, ela tem o seu lugar. Imponha-se. Seja feia e seja feliz.

A partir desse dia ela mudou. Passou a olhar sua falta de beleza como um ponto forte. Toda vez que alguém a chamava de feia, Gisele recebia como um elogio. A feiúra era seu ponto de honra, seu toque original, sua marca registrada.

Nada a deixava mais irritada e deprimida que a idéia de receber cantadas.

Detestava que notassem qualquer traço de beleza em seu corpo. E cresceu feliz assim, já que ninguém a elogiava mesmo, muito menos recebia cantada de homem algum.

Os anos transcorriam tranqüilos. Gisele, trancada no seu mundo, estava satisfeita com sua feiúra, seu orgulho. Até que...

— Oi, a gatinha está sozinha?

Pânico! “Gatinha? Quem é esse animal? De onde saiu essa criatura grotesca e com quem ele pensa que está falando? Gatinha é a mãe!”

— Sim, estou sozinha e vou continuar assim.

— Mas por quê? Que desperdício. Uma mulher tão bonita assim, sozinha!

“Eu vou dar na cara desse animal. Pensa que está falando com quem? Mulher bonita é a puta que pariu.”

— Porque eu quero. Escuta, tem tanta mulher nesta festa e você cismou justamente comigo. Vai procurar outra pra cantar, vai.

Não adiantou. O cara cismou com Gisele. Descobriu seu celular, mandava cartões por correio eletrônico. E sempre com elogios: linda, gata. Não adiantava responder mal, ignorar, dizer desaforos.

Um dia ligou o computador e deparou com uma mensagem que a deixou emocionada, mais tocada que nunca. Mudou tudo em relação aquele homem. O texto de e-mail era curto mais contundente:

“Você é realmente uma estúpida. Grossa, insensível e além de tudo um canhão.
Não sei se alguém já te disse isso com todas as letras, mas você é uma
mocréia.”

Não. Ninguém jamais havia dito isso antes, pelo menos desta forma. Não! Como alguém tão insosso e inoportuno poderia ter mudado tanto a ponto de dizer coisas tão maravilhosas?

Ligou imediatamente para ele:

— Ricardo? Sou eu, Gisele.

— Desculpe, pela mensagem, eu estava nervoso e...

— Não, eu adorei.Adorei mesmo.

— Adorou...?

— É. Ninguém jamais tinha falado assim comigo antes!

Ele, desconfiando que tinha acertado no alvo:

— É... você é mesmo uma mocréia, mas eu gosto de você assim mesmo. Gosto desde a primeira vez que vi você.

— Jura?

— Juro!

— Eu quero te ver.

— Também quero te ver meu canhãozinho. Minha mocreinha!

O romance tomou pé. Os dois estavam cada vez mais apaixonados. Se viam todos os dias, sem falta. Toda vez que saia para encontrar o namorado, Gisele fazia questão de ir de ônibus. Tinha mais gente para reparar sua feiúra. Ela se sentia bem e chegava feliz da vida pra encontrar Ricardo. Principalmente naquele dia. Ela sabia que seria pedida em casamento.

Por isso, quando entrou naquele ônibus e percebeu o espanto de algumas pessoas, os olhares de estranhamento de outras. Ficou especialmente animada. Uma onda de euforia tomou-a de surpresa. Levantou-se do seu assento, foi para a frente do ônibus e gritou com toda força que pôde:

— Sou feia, mas sou feliz!

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Nota sobre o Autor:
Hélder Santana (1976) nasceu em Salvador (BA) e cresceu em Macaé (RJ). Formou-se em publicidade e propaganda pela Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro e passou a trabalhar como redator em uma agência de publicidade. Apesar de escrever há algum tempo, só agora passou a enviar textos para publicação, tendo seu conto “Helena” publicado no Macaé Jornal.
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Fontes:
http://www.releituras.com/

Um comentário:

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