terça-feira, 2 de novembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) – Cap.1: Uma Idéia da Senhora Emília



Dona Benta, com aquela paciência de santa, estava ensinando gramática a Pedrinho. No começo Pedrinho rezingou.

— Maçada, vovó. Basta que eu tenha de lidar com essa caceteação lá na escola. As férias que venho passar aqui são só para brinquedo. Não, não e não. . .

— Mas, meu filho, se você apenas recordar com sua avó o que anda aprendendo na escola, isso valerá muito para você mesmo, quando as aulas se reabrirem. Um bocadinho só, vamos! Meia hora por dia. Sobram ainda vinte e três horas e meia para os famosos brinquedos.

Pedrinho fez bico, mas afinal cedeu; e todos os dias vinha sentar-se diante de Dona Benta, de pernas cruzadas como um oriental, para ouvir explicações de gramática.

— Ah, assim, sim! — dizia ele. — Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até virava brincadeira.

Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndios. . .

Emília habituou-se a vir assistir às lições, e ali ficava a piscar, distraída, como quem anda com uma grande idéia na cabeça.

É que realmente andava com uma grande idéia na cabeça.

— Pedrinho — disse ela um dia depois de terminada a lição —, por que, em vez de estarmos aqui a ouvir falar de gramática, não havemos de ir passear no País da Gramática?

O menino ficou tonto com a proposta.

— Que lembrança, Emília! Esse país não existe, nem nunca existiu. Gramática é um livro.

— Existe, sim. O rinoceronte (este personagem aparece pela primeira vez nas Caçadas de Pedrinho), que é um sabidão, contou-me que existe. Podemos ir todos, montados nele. Topa?

Perguntar a Pedrinho se queria meter-se em nova aventura era o mesmo que perguntar a macaco se quer banana. Pedrinho aprovou a idéia com palmas e pinotes de alegria, e saiu correndo para convidar Narizinho e o Visconde de Sabugosa. Narizinho também bateu palmas — e se não deu pinotes foi porque estava na cozinha, de peneira ao colo, ajudando Tia Nastácia a escolher feijão.

— E onde fica esse país? — perguntou ela.

— Isso é lá com o rinoceronte — respondeu o menino. — Pelo que diz a Emília, esse paquiderme é um grandessíssimo gramático.

— Com aquele cascão todo?

— É exatamente o cascão gramatical — asneirou Emília, que vinha entrando com o Visconde.

Os meninos fizeram todas as combinações necessárias, e no dia marcado partiram muito cedo, a cavalo no rinoceronte, o qual trotava um trote mais duro que a sua casca. Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho.

— Que zumbido será esse? — indagou a menina. —

Parece que andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis.

— É que já entramos em terras do País da Gramática — explicou o rinoceronte. — Estes zumbidos são os sons orais, que voam soltos no espaço.

— Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma — observou Emília. — Sons Orais, que pedantismo é esse?

— Som Oral quer dizer som produzido pela boca, A, E, I, O, U são Sons Orais, como dizem os senhores gramáticos,

— Pois diga logo que são letras! — gritou Emília.

— Mas não são letras! — protestou o rinoceronte. — Quando você diz A ou O, você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro há os Sons Orais; depois é que aparecem as letras, para marcar esses Sons Orais. Entendeu?

O ar continuava num zunzum cada vez maior. Os meninos pararam, muito atentos, a ouvir.

— Estou percebendo muitos sons que conheço — disse Pedrinho, com a mão em concha ao ouvido.

— Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus, Pedrinho.

— Querem ver que é o tal alfabeto? — lembrou Narizinho. — E é mesmo!. . . Estou distinguindo todas as letras do alfabeto. . .

— Não, menina; você está apenas distinguindo todos os sons das letras do alfabeto — corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de Dona Benta. — Se você escrever cada um desses sons, então, sim; então surgem as letras do alfabeto.

— Que engraçado! — exclamou Pedrinho, sempre de mão em concha ao ouvido. — Estou também distinguindo todas as letras do alfabeto: o A, o C, o D, o X, o M. . .

O rinoceronte deu um suspiro.

— Mas chega de sons invisíveis — gritou a menina. —-Toca para diante. Quero entrar logo no tal País da Gramática.

-— Nele já estamos — disse o paquiderme. — Esse país principia justamente ali onde o ar começa a zumbir. Os sons espalhados pelo ar, e que são representados por letras, fundem-se logo adiante em sílabas, e essas Sílabas formam palavras — as tais palavras que constituem a população da cidade onde vamos. Reparem que entre as letras há cinco que governam todas as outras. São as Senhoras vogais — cinco madamas emproadas e orgulhosíssimas, porque palavra nenhuma pode formar-se sem a presença delas. As demais letras ajudam; por si mesmas nada valem. Essas ajudantes são as consoantes e, como a palavra está dizendo, só soam com uma Vogai adiante ou atrás. Pegue as dezoito Consoantes do alfabeto e procure formar com elas uma palavra. Experimente, Pedrinho.

Pedrinho experimentou de todos os jeitos, sem nada conseguir.

— Misture agora as Consoantes com uma Vogai, com o A, por exemplo, e veja quantas palavras pode formar.

Pedrinho misturou o A com as dezoito Consoantes e imediatamente viu que era possível formar um grande número de palavras.

Nisto dobraram uma curva do caminho e avistaram ao longe o casario de uma cidade. Na mesma direção, mais para além, viam-se outras cidades do mesmo tipo.

— Que tantas cidades são aquelas, Quindim? — perguntou Emília.

Todos olharam para a boneca, franzindo a testa. Quindim? Não havia ali ninguém com semelhante nome.

— Quindim — explicou Emília — é o nome que resolvi botar no rinoceronte.

— Mas que relação há entre o nome Quindim, tão mimoso, e um paquiderme cascudo destes? — perguntou o menino, ainda surpreso.

— A mesma que há entre a sua pessoa, Pedrinho, e a palavra Pedro — isto é, nenhuma. Nome é nome; não precisa ter relação com o "nomado". Eu sou Emília, como podia ser Teodora, Inácia, Hilda ou Cunegundes. Quindim!. . . Como sempre fui a botadeira de nomes lá do sítio, resolvo batizar o rinoceronte assim — e pronto! Vamos, Quindim, explique-nos que cidades são aquelas.

O rinoceronte olhou, olhou e disse:

— São as cidades do País da Gramática. A que está mais perto chama-se Portugália, e é onde moram as palavras da língua portuguesa. Aquela bem lá adiante é Anglópolis, a cidade das palavras inglesas.

— Que grande que é! — exclamou Narizinho.

— Anglópolis é a maior de todas — disse Quindim. — Moram lá mais de quinhentas mil palavras.

— E Portugália, que população de palavras tem?

— Menos de metade — aí umas duzentas e tantas mil, contando tudo.

— E aquela, à esquerda?

— Galópolis, a cidade das palavras francesas. A outra é Castelópolis, a cidade das palavras espanholas. A outra é Italópolis, onde todas as palavras são italianas.

— E aquela, bem, bem, bem lá no fundo, toda escangalhada, com jeito de cemitério?

— São os escombros duma cidade que já foi muito importante — a cidade das palavras latinas; mas o mundo foi mudando e as palavras latinas emigraram dessa cidade velha para outras cidades novas que foram surgindo. Hoje, a cidade das palavras latinas está completamente morta. Não passa dum montão de velharias. Perto dela ficam as ruínas de outra cidade célebre do tempo antigo — a cidade das velhas palavras gregas. Também não passa agora dum montão de cacos veneráveis.

Puseram-se a caminho; à medida que se aproximavam da primeira cidade viram que os sons já não zumbiam soltos no ar, como antes, mas sim ligados entre si.

— Que mudança foi essa? — perguntou a menina.

— Os sons estão começando a juntar-se em sílabas, depois as Sílabas descem e vão ocupar um bairro da cidade.

— E que quer dizer Sílaba? — perguntou a boneca.

— Quer dizer um grupinho de sons, um grupinho ajeitado; um grupinho de amigos que gostam de andar sempre juntos; o G, o R e o A, por exemplo, gostam de formar a Sílaba Gra, que entra em muitas palavras.

— Graça, Gravata, Gramática. . . — exemplificou Pedrinho.

— Isso mesmo aprovou Quindim. — Também o M e o U gostam de formar a Sílaba Mu, que entra em muitas palavras.

— Muro, Mudo, Mudança. . . — sugeriu a menina.

— Isso mesmo — repetiu Quindim. — E reparem que em cada palavra há uma Sílaba mais emproada e importante que as outras pelo fato de ser a depositária do acento tônico. Essa Sílaba chama-se a tônica.

— O mesmo nome da mãe de Pedrinho!... — observou Emília arregalando os olhos.

— Não, boba. Mamãe chama-se Tônica e o rinoceronte está falando em Sílaba Tônica. É muito diferente.

— Perfeitamente — confirmou Quindim. — No nome de Dona Tônica a Sílaba Tônica é Ni; e na palavra que eu disse a Sílaba Tônica é o To. E na palavra Pedrinho, qual é a Tônica?

— Dri — responderam todos a um tempo.

— Isso mesmo. Mas os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de nomenclaturas rebarbativas, dessas que deixam as crianças velhas antes do tempo. Por isso dividem as palavras em oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas, conforme trazem o Acento Tônico na última Sílaba, na penúltima ou na antepenúltima.

— Nossa Senhora! Que "luxo asiático"! — exclamou Emília. — Bastava dizer que o tal acento cai na última, na penúltima ou na antepenúltima. Dava na mesma e não enchia a cabeça da gente de tantos nomes feios. Proparoxítona! Só mesmo dando com um gato morto em cima até o rinoceronte miar. ..

— E há mais ainda — disse Quindim. — As pobres palavras que têm a desgraça de ter o acento na antepenúltima sílaba, quando não são xingadas de Pro-pa-ro-xí-to-nas, são xingadas de esdrúxulas. As palavras Áspero, Espírito, Rícino, Varíola, etc, são Esdrúxulas.

-— Es-drú-xu-las! — repetiu Emília. — Eu pensei que Esdrúxulas quisesse dizer esquisito.

— E pensou certo — confirmou o rinoceronte. — Como na língua portuguesa as palavras com acento na antepenúltima não são muitas, elas formam uma esquisitice, e por isso são chamadas de Esdrúxulas.

E assim conversando, o bandinho chegou aos subúrbios da cidade habitada pelas palavras portuguesas e brasileiras.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

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