domingo, 14 de novembro de 2010

Nogueira Tapety (Cristais Poéticos)



SENHORA DA BONDADE

Não te quero por tua formosura
De rainha da graça entre as mulheres,
Quero-te porque és boa, porque és pura
E ainda mais porque sei que tu me queres.

A beleza exterior nem sempre dura.
E a d'alma, estejas tu onde estiveres,
Ungiras de meiguice e de doçura
Tudo em que a bênção deste olhar puseres.

Eu sou artista: encanta-me a beleza,
Em ti, porém, abstraio-a, inteiramente,
E penso amar-te assim com mais nobreza;

Pois, se te esqueço a forma e a mocidade,
É para amar em ti unicamente
A encarnação suprema da bondade.

HOLOCAUSTO

Eu devia prever que toda essa loucura
E esta dedicação com que te tenho amado,
Não podiam mover-ter a impassível ternura
Pois nunca existiu o bem com o bem recompensado.

Entretanto, bendigo a terrível tortura
E os suplícios cruciais por que tenho passado,
Pois sofrendo por ti, eu sinto que a amargura
Tem o doce sabor de um fruto sazonado.

Olha bem pra mim: vê que vinte e seis anos
Não podiam me ter por tal forma abatido
Nem roubar minha força e vigor espartanos,

Se estou precocemente exausto e envelhecido,
É do efeito fatal dos tristes desenganos
E do atroz desespero em que tenho vivido.

QUOS EGO

Nunca direi que te amo — esta expressão
É muito fraca para traduzir
Esse mundo infinito de afeição
Que de dentro do meu ser anda a florir ...

O que sinto é quase uma adoração,
Um desejo infinito de fundir
Nossos dois corações num coração
E as nossas almas numa só reunir;

É ânsia de ligar, de amalgamar
As nossas vidas que o destino afasta
E que o próprio destino há de juntar;

Uma afeição consciente e excepcional
Que é humana demais para ser casta
E demais pura para ser carnaval.

CANÇÃO DE OUTONO

Outono! Outono! ai! que tristeza
Erra pelo ar e em tudo atua
Amortalhando a Natureza
Em brumas claras como a lua.

Uma cortina branca e fria
Oculta o sol, vela o horizonte,
Despe os rosais a ventania
E a neve gela e embuça o monte.

Outono! outono! O vento Norte
Arranca as flores do arvoredo,
E a mata, triste como a morte,
Cai num silêncio que faz medo.

Ó vento mau que as incolores,
As mortas folhas carregais,
Levai também as minhas dores,
Que eu tenho já dores demais.

Já não se escuta a voz das aves
Nos pinhais todos descobertos,
Cujas sombrias e altas naves
Fazem lembrar templos desertos.

As velhas árvores despidas
São como espectros de gigantes,
Erguendo as mãos emagrecidas,
Num louco apelo aos céus distantes.

Árvores tristes desfolhadas,
De galhos hirtos, a tremer,
Lembrais mulheres desgrenhadas
Depois de noites de prazer.

Qual leão ferido e prisioneiro,
O velho mar furioso ruge,
E toda a noite, o dia inteiro
Troveja, estoura, estronda, estruge.

No mar eu vejo o grande apólogo
Do meu viver de torturado,
Quando ele fala o seu monólogo
De Hamlet estranho e revoltado.

E fico absorto a contemplar
A profundeza dessas águas,
Poucas demais para lavar
O turbilhão de minhas mágoas.

Nem uma flor brilha no campo
De onde emigrou toda a alegria,
E o céu profundo, azul e escampo
É como uma órbita vazia.

Ai! que tristeza e que saudade
Do lindo céu de minha terra
E da profusa claridade
Dos astros de ouro que ele encerra.

Outono! adoro-te a incerteza
Das cores dúbias a Rembrandt,
Envocadoras da tristeza
Que é minha musa e minha irmã.

MANHÃ DE INVERNO

Que esplêndida manhã tranqüilamente muda!
Rebrilha o ouro do sol no azul do céu turquesa,
E a grama a rebentar em pelúcia transmuda
O que há pouco no campo era rude aspereza...

Tudo o que é vegetal em verde se aveluda;
Há como um despertar por toda a Natureza
E a floresta no outono esfolhada, desnuda,
De repente retoma à perdida beleza.

Cada raio de sol, é um turbilhão de vida,
Ao contato do qual estremece a semente
Na umidade da gleba escura, adormecida...

Campânulas em flor abrem profusamente,
E a terra canta, assim, fecundada e florida,
Hinos de aroma à luz e à vida onipotente.

A TEIA DE PENÉLOPE

Penélope tecendo e destecendo a trama,
Num trabalho incessante, improfícuo e exaustivo
Simboliza este amor fatal que nos inflama
A cuja ação ela há de viver, como eu vivo.

Ao seu lado fui sempre inexprimido e esquivo,
Entretanto hoje, ausente, em mim tudo a reclama
E ela que me foi sempre um vulto fugitivo,
Há de a esta hora sentir que sua alma me chama.

Ah! capricho cruel, como dói teu efeito teu efeito
Que me isola inda mais na minha soledade
E um deserto sem fim vem semear no meu peito.

Agora, busco-a em vão na maior ansiedade;
Desgraçado que eu sou, pois nem sinto o direito
De invocá-la através desta amarga saudade.

VERÃO

O verão nesta terra é uma apoteose de ouro,
No ar, nos montes, no céu, na terra difundida,
Feericamente acesa, arde a essência de louro
Numa fulguração de flama enfurecida.

Do reino vegetal o pródigo tesouro,
Brilha febril ao sol, numa messe florida:
Heliantos e paus-d’arco, onde a abelha, o besouro
Se vão nutrir de luz em pólen convertida...

A cigarra sibila o seu chiar penetrante,
E ao longe ouve-se a voz da araponga vibrante
Que estridula e retine a estridente canção.

E seja de manhã, meio-dia ou de tarde,
O sol dominador a cuja ação tudo arde,
Ilumina, flameja: - é o senhor do verão.

TEUS OLHOS

Quanta cousa formosa arde em teus olhos claros,
Extravagantemente esquisitos e raros!

Gemas, topázios, luz, o fulvo dos desertos,
Campos longos, sem fim, de áureos trigais cobertos,
Heliantos de ouro ao sol da primavera abertos,
Paus-d’arco, recordando em seu louro que aberra
As matas do sertão feraz de minha terra,
O espírito da luz, a luz humanizada,
Mais brilhante e maior do que a própria alvorada
Que brilha, mais não vê, nem pode sentir nada!
Astros, planetas, sóis, estrelas nebulosas,
Vivas constelações fulgentes e formosas,
Em claras radiações, febris, transluminosas,
Vias-lácteas ideais, cobertas de ouro em pó,
Todo um céu para o qual sou astrônomo eu só,
E cujo original sistema planetário
Tem por centro este amor imenso, extraordinário
Que é toda a minha vida e há de ser meu calvário.
Ah! quanta cousa existe em teus olhos a arder!
Nem eu mesmo que as vejo, as posso descrever:
O outono na explosão das cores amarelas,
Essas tardes de outubro estranhamente belas,
Feitas para brilhar em geniais aquarelas.
A languidez da lua ungindo largos campos,
Onde arde zizagueando a luz dos pirilampos,
E há também o esplendor dessas manhãs de abril,
Em que a glória imortal do sol primaveril
Bóia como uma flor num grande mar de anil...
E brancuras ideais que a pena não descreve:
As reverberações fantásticas da neve,
A deslumbrante ação das auroras boreais,
E mares a ocultar sob as águas fatais
Um tesouro infinito em rubis e corais...
Ah! quanta cousa existe em teus olhos arder!
Nem eu mesmo que as vejo, as posso descrever...
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Fontes:
TAVARES, Zózimo. Sociedade dos Poetas Trágicos. Vida e obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens. 2 ed. Teresina, PI: Gráfica do Povo, 2004.
– Fundação Nogueira Tapety

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