sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Carolina Ramos (O Tombo)



Se melancia tivesse pernas, certamente seriam as de João Sereno – curtas, gordinhas, atarrancadas – um parênteses, aberto na esquerda e fechado na direita. Pernas bastante fortes para sustentar um corpo rotundo.

Quando apontava na esquina, todo o mundo sabia: – Lá bem João Sereno. Inconfundível!

E o dia em que João Sereno caiu, foi memorável! Um tombinho à-toa como outro qualquer. Desses de cair e levantar num segundo. Mas, não foi isso o que aconteceu. A queda de João Sereno foi algo de sensacional, para não ser esquecido por ninguém, que viu ou ouviu contar!

Naquela tarde histórica, vinha ele da fábrica. Passo lento, cansado, pura imagem da exaustão.

Desde que apontara no alto da rua, cumprimentava, um a um, os amigos da vizinhança com a cordialidade costumeira e o sorriso que, mesmo debaixo de chuva, prenunciava sol.

João Sereno não esperava pela escorregadela. E quem a espera? Não fosse assim, os tombos, as topadas, as imprecações e os dedões esfolados deixariam de existir.

Aquela casca de manga, esquecida traiçoeiramente no meio da calçada, foi o bastante para que a melancia humana voasse, pernas acima da cabeça, estatelando-se, em seguida, espetacularmente no solo. Tudo terminaria nessa desastrosa aterrisagem, se o declive acentuado, não desse continuidade à tragédia. A própria rotundidade do acidentado favoreceu-a. João Sereno rolou, como rolaria a melancia, que largada ao topo da ladeira! Por mais que as pernas curtas e os braços mais curtos ainda, tentassem simular tentáculos para agarrar-se a alguma coisa, só conseguiram impulsionar, com maior ímpeto, o bólido humano. Mais abaixo, foi chocar-se contra a lata de lixo reciclável, à espera da coleta, e que rolou com ele, a esparramar, na trajetória, tudo o quanto engolira.

João Sereno deixou, temporariamente, de ser sereno. Sacudindo as roupas e compondo a dignidade, não pode deixar de considerar, maldita, a casca da manga e a não menos abominável displicência do dono dela. Mestres no ensino de vôo e no resguardo dos segredos para uma boa aterrisagem.

Ganhou algumas escoriações inevitáveis. Não graves. E ganhou, também, nova alcunha.

Os velhos amigos continuaram a chamá-lo, com simpatia, de João Sereno. Os mais novos, maliciosos e irreverentes, não deixaram por menos: – mal vislumbrada, ao longe, a figura redonda, já risos abafados e cochichos maldosos, alertavam:

– Sai da frente… lá vem o João Boliche!

Pilhéria ou precaução? – A questão é que o caminho ficava, num instante, completamente livre!.

Fonte:
RAMOS, Carolina. Interlúdio: contos. São Paulo: Editor: Cláudio de Cápua. Abril/93.

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