sexta-feira, 22 de abril de 2011

Carlos Roberto Pellegrino (A Viúva)

Ilustração de Sebastião Miguel
Ivonaldo de Castro era da melhor cepa de Capinópolis. Sexagenário de respeito, família tradicional, gente rica. Descendia de família abastada, um senhor de muitos escravos, cuja lembrança o tinha como manso e humilde de coração, pai dos pobres, era como lhe convinha nos comentários dos amigos. Na linhagem comum gabava-se do avô médico, pai médico, filho médico e finalmente neto médico, residente na Santa Casa. Quanto a si, durante a vida fora artista da relojoaria pelo que cultivara o exercício da pontualidade até a morte inopinada na hora precisa em que Deus o chamou.

Durante a vida não houve Patek Philippe ou Omega-Ferradura que o desalentasse. Apesar de bons relógios, Ivonaldo lhes superava na qualidade das horas. Passados por suas mãos, os engenhos assumiam tal rigor que não derrapavam um segundo sequer, nem para mais ou para menos, a hora H. Corria a lenda que ao menor desgoverno dos ponteiros celestiais um mensageiro recomendava limpeza e ajuste acurado na máquina das horas. Assim os dias pareciam mais ligeiros e as noites longas na proporção dos minutos e segundos.

Numa tarde de calor intenso, antes que o anjo viesse recomendar novos encargos, Ivonaldo atendeu à irrecusável convocação para prestar– Lhe contas da vida. Não houve meio de escapatória, e lá se foi, sem que lhe tivesse sido concedido o benefício da recusa. Solícito e sem alternativa, acomodou-se definitivamente à troca do endereço ou, como costumava dizer com saudável ironia: desta para melhor. Morreu de síncope.

Na bagagem da herança, além dos amores jurados e prometidos incluía o afeto à Dorotéia, que o manteve o mesmo durante os longos anos de convivência. Amante ciumenta de marido fiel, a viúva assumiu, corajosa, a economia da casa. O cuidado com os filhos moços, todos bem arranjados, o que significava preocupação a menos. Na conta do zelo a atenção especial ao neto já rapaz, que mostrava formosura ao vestir o jaleco branco de futuro médico.

Das moças juradas no amor do pai, Isaurinha era a caçula. Guardava fiel o compromisso de casar-se com Manuel Espinho, filho de um fazendeiro de tantas cabeças quantas fossem os bois a perder de vista na invernada. Gláucia se mantinha na solteirice recatada, na diversão única de ensinar música no conservatório, ao que dedicara toda a vida. Virgininha, a mãe do médico residente, casara-se com um capitão da Força. Já Dorotéia mantinha-se incansável na faina de mãe extremosa e viúva piedosa.

Na manhã seguinte ao passamento, ajaezaram o finado com o melhor que havia; terno escuro folgado, gravata amarela de seda pura, e o depuseram sobre a mesa da sala ao lamento de rosários e ladainhas. Decoraram a morte com um lençol de flores brancas e a toalha de renda da Madeira, lembrança amarelecida do casamento, conforme recomendação da viúva desconsolada Tudo o mais houve para despertar a contrição dos amigos. As fitas bentas de amarração foram dispostas em cada canto da sala e deveriam ser reverenciadas somente com a menção de beijo para mantê-las limpas.

Desfiaram-se jaculatórias e ladainhas chorosas, velas e louvações ocasionais em torno do caixão. As beatas se engabelavam no gemido modorrento de um canto arrastado como portas rangedeiras. Ivonaldo merecia as homenagens do amigo dos amigos, pai exemplar e marido fiel.

O jornal noticiou o passamento do pai, marido, sogro e avô, estando convidados os amigos para o seu sepultamento a realizar-se às quinze horas, saindo o féretro da rua das Acácias número tal para a necrópole municipal. Antecipavam-se agradecimentos por quantas houvessem sido as manifestações de pesar, carinho e solidariedade recebidas. Descansasse em paz. O pequeno anúncio, com moldura de nojo, convinha à ocasião, nada mais se comentou.

Amparada pelas filhas, Dorotéia encontrava forças para prantear o finado. Respirou coragem para entrar na sala pela porta da frente. Ao dar com o semblante do marido conteve o soluço na borda do lencinho de cambraia como recomendado por Isaurinha. A viúva guardava as lágrimas em boa compostura.

Tudo correu conveniente até o instante de fecharem o caixão. Dorotéia então buscou um soluço mais forte. Um adeus pungente. Sem dar tempo a mais sofrimento, logo aplicaram as tarraxas em cada extremo do caixão. Ivonaldo assumia solitário o destino incerto e não sabido, de onde jamais retornaria.

No tom da toada houve o gemido de uma voz pequena que reverberou entre os circunstantes. Para Dorotéia foi mais um lamento pelo finado. Um amigo, quem sabe. O risco era de alguém indesejável, mesmo que privasse da intimidade do morto. Ou uma amiga. Uma amante! Passou-lhe pala cabeça atordoada.

Uma amante? – a grita veio retumbante.

Sim ou não, a questão estava lançada, conquanto. Ivonaldo sempre foi pessoa discreta, de hábitos morigerados. Estaria a salvo dos amores furtivos. Nas filhas, veio à imaginação da mulher alta, vistosa, peitos grandes e pontudos, pernas torneadas e o que mais lhe sobressaísse: a bunda. Roliça e insinuante mantinha-se reservada às investidas clandestinas, ainda que poucos ousassem.

Rei morto rei posto, alguém sentenciou. Não haveria de ser assim tão fácil beliscar a bunda da suposta amante de Ivonaldo. Antes era preciso desvendá-la, nudificar, como propôs Adamastor, fiel escudeiro e confidente do falecido. Mas, quem haveria de ser amante de Ivonaldo àquela altura?

Nos três lances de escada da varanda que levavam à sala onde haviam colocado os despojos do amantíssimo, um grupo de senhoras conversava. Nenhuma delas era amante, pelo menos nada que denunciasse qualquer delas. Respeitáveis e assíduas frequentadoras das rezas vespertinas. Definitivamente não tinham cara de amante.

A garantia dessa afirmativa assim peremptória relançou a dúvida: mas qual haveria de ser a cara de amante? Talvez um olho menor que o outro, orelha de abano, a verruga saliente numa das bochechas, lábios finos, sobrancelha circunflexa, e o que mais? Eram dúvidas que não se ousava comentar, receosos da cumplicidade confessa. Segundo Adamastor, cioso das virtudes do amigo, era preciso preservá–la. Haveria de ser igual a todas, em qualquer lugar. Sim, mas como, e onde? Antes de tudo tinha de ser bonita, atraente, vistosa. Gostosa, arrematou um mais irreverente, que, de pronto, mereceu discreto olhar de apoiamento. Amante tem que gostar; gostar de quê? Daquilo. Daquilo o quê? Indagavam com nervosismo crescente. Do amante, ora, tratou de afastar a malícia. Amante é amante e pronto, sentenciou o cunhado do morto com autoridade insuspeita de parente postiço. Temia-se que o assunto descambasse para detalhes inconvenientes, sobretudo naquela circunstância.

Entre os conhecidos, o assunto deu panos pra mangas. No espichamento do debate, acrescentaram comentários insolentes sobre o desempenho do Ivonaldo no reservado dos seus aposentos. Um atleta, exagerou o tipo que trazia um bigodinho recalcado a lápis. Coisas do arco-da-velha, meu amigo. Do velho, só ele mesmo, bradou o outro exigindo respeito ao amigo morto. Tudo dito e assim feito, Adamastor chamou à ordem. A partir de então, decidiu-se que o pranteado receberia os lauréis dos amantes.

Na sala respiravam incerteza entre os grupos. Fecha? Não fecha? Fecha o que? O caixão, ora! À boca pequena, expunha-se Ivonaldo à execração pública.

Dorotéia ignorou a sentenças. Reforçou as orações com o vozerio troante. Louvaram-se o quanto era santo. Atônitos, os amigos se entreolhavam, acusadores. Quando eu morrer, vou só, comentavam os mais mordazes. Olhos nos olhos, desconfiavam de todos. Entretidas, as senhoras beatas cofiavam as recomendações do catecismo com súplicas por um lugar nos céus.

No passo lento desfilaram pela última vez diante de Ivonaldo. Persignaram-se circunspetos, desenhando com a ponta dos dedos um sinal rápido e mal espalhado no peito, ao que todos resmungavam amém. Estava confirmada a presença.

Rapidamente ganhou fama a versão de que certa senhora ali presente, ao acariciar respeitosamente o rosto do finado, depositara furtivamente um bilhete num dos bolsos do terno de encomendação. Foi o bastante para reaquecer o fogo das maldades. O derradeiro recado, um adeus definitivo. A autenticidade do bilhete haveria de ser a chave que desvendaria a identidade da traidora. Dito e feito. Mas onde? Como? Quando? Era preciso buscar a evidência, e mais gritava a curiosidade alheia por conta da suposta ofensa ao marido. Afinal era a fama sobre a cabeça.

Na passagem da fila pelo morto fizeram questão de tocar-lhe o peito com a palma da mão, como prova de estreita amizade. Aproveitaram a oportunidade para enxerir nos bolsos do defunto buscando o bilhete. E tanto foi assim que muitos que já haviam passado, repassavam, agora com a curiosidade à flor da pele.

Agora não dava mais para esperar; fechariam o esquife. De pronto, alguns reagiram à idéia aos gritos de que ainda não era a hora. Deixa disso, erguiam os braços, contrariados e temerosos pela surpresa iminente. Na peleja a que se dispuseram, chegou Isaurinha e aos sete sóis de espanto entregou à mãe o recado que havia encontrado no sapato do pai ao aprontá-lo horas antes. Desabou um grande silêncio na sala. Não se ouviu nem mesmo o piar do coleirinha. Entreolharam-se mudos, as mulheres pela fama, os maridos na cumplicidade aturdida.

Dorotéia leu a mensagem e não se conteve. Escapou o grito lancinante contrariando as recomendações da filha para que se contivesse. Suportou a mãe. Tinha razão. Espera um pouco, recomendou Dorotéia. Ainda não.

Vagarosamente tornou a dobrar o bilhete, beijou-o e o depositou entre as mãos de Ivonaldo. Vai, meu querido.

Nada mais foi dito nem se soube do escrito e o seu nome.

Fonte:
Colaboração da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. In Suplemgnto Literário. N. 1333. Novembro/dezembro 2010.

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