Paulo acorda no meio da noite, os olhos como se lhes tivesse pingado colírio de pimenta. Havia dormido com o televisor ligado. Fora do ar a TV, a tela emite um brilho azulado, agride-lhe os olhos.
Por que quando se está acordado, ainda que por horas seguidas com os olhos fixos na programação eles não ardem? Sem nada entender do assunto Paulo imagina que, ao dormir, todos os sentidos se relaxam, inclusive a visão, tornando-se vulnerável, mais susceptível à agressão dos raios de luz, pelas ondas emitidas pela TV.
Pega o controle remoto, coloca o televisor em stand by, vira para o canto, procura dormir novamente.
Não dorme. Vem-lhe à memória o telefonema do dia anterior: Juvenal havia pulado no rio, de cima da ponte. Na Avenida Beira Rio turistas viram quando o corpo se projetou da ponte sobre o rio. A chegada dos bombeiros despertou a curiosidade de turistas e de moradores das proximidades. Quem viu? Quem era? Homem ou mulher? Por que será que fez isso?
Perguntas várias, respostas vagas, até controvertidas, não raras maldosas.
Aos poucos era montado o quebra-cabeça:
Um homem que parecia chorar caminhava como quem nada quisesse, sem pressa, distraído. Na ponte quase foi atropelado por um carro, de onde o motorista gritou algo ininteligível. Um xingamento? O homem parou, olhou para cima, para baixo, fez um gesto como se se benzesse, subiu no corrimão da ponte e saltou.
A princípio, Paulo não se importou com a notícia. Juvenal sabia nadar como ninguém. Muitas pessoas praticavam aquela aventura. Um esporte arriscado, mas do agrado de quem pulava e de quem assistia. Adrenalina pura. Paulo mesmo já havia feito isso muitas vezes, quando adolescente. Só que da outra ponte, a Afonso Pena, pênsil, metálica, mais baixa. A atual, de cimento armado, é alguns metros mais alta. Ainda assim muitos saltam de lá. Os desencorajados apenas admiram. Batem palmas. Os que consumam a aventura retornam vitoriosos, cheios de si, prontos para novos saltos. Saltavam em equipe. Uma canoa motorizada fazia guarda um pouco abaixo, para eventual emergência. Houve casos em que a polícia intervinha, por fim deixou de se importar com o que qualificou de insensata atitude. Brincadeira de louco. Um dia o rio ainda haveria de levar algum aventureiro.
Premonição ou argumento matemático?
De fato, muitas vidas já se foram no seio daquelas águas. Por negligência, descuido, imperícia, conseqüência de embriaguez, fatalidade. Ene causas.
O caso de Juvenal foi diferente. Ele saltou deliberadamente para a morte. Muitos do bairro de Juvenal já sabiam do caso. Paulo deveria ter sido o último a saber.
A família de Juvenal, em prantos, as filhas mais velhas descabelavam-se. A criança pequena não entendia o acontecido. A esposa, inconsolável, buscava motivos de sua parte para se culpar pela morte do marido. O que teria feito de tão ruim para ele tomar essa atitude tão radical? Procurava ser boa esposa, embora tivesse um segredo que ele não podia saber. Será que vazou? Por que não contou para ninguém o que se passava na cabeça dele? Tudo poderia se explicar, reconsiderar. Afinal, não há mal que sempre dure, assim como também não há bem que nunca acabe. Tudo é transitório, um dia se rema contra a maré, outro dia a favor, e assim é vivida a vida.
As pessoas mais íntimas sabiam que ele tinha surtos de depressão, mas... quantos não padecem desse mal e nem por isso se matam?
Paulo se lembra de que, enquanto os familiares de Juvenal padeciam na fúnebre angústia, a crônica da maldade desfilava motivos para o fato. Culpa foi da esposa que tinha um romance secreto? Culpa de alguma figuraça cujo nome não poderia ser dito. Teria sido alguma mulher de marido importante? Seria a verdade temerária? Haveria um iminente escândalo de proporções inusitadas? Problema no emprego? Intolerância de chefes? Exigências excessivas no trabalho?
Nada além de conjecturas.
Não faltaram os discursos da esquerda: o caso é que as empresas ainda não se conscientizaram de que os empregados também são gente, que o lucro não deve ser obsessão que justifique opressão do trabalhador. Serviço sempre mais, salário sempre menos, além da constante ameaça de corte nos quadros de pessoal. No ar sempre uma nuvem a anunciar: vai rolar cabeça. Uns e outros motivos desfilavam na boca dos plantonistas do diz que diz. Outra causa do suicídio? Dívidas impagáveis, patrimônio exaurido, nome na Serasa, cartões de crédito cancelados, crédito não extinto... inferno de vida. Melhor a morte.
Paulo não dorme, por mais que tente. Perdeu o sono.
Levanta-se, quer espantar aquelas lembranças que lhe atormentam a alma. Liga o televisor, troca de canais como se procurasse trocar de pensamentos, um fora do ar, outro também, em outro a imagem não presta. Prefere o canal local, repetidora de uma rede sensacionalista de programas tragicômicos, mas de boa imagem. Afinal não quer ver nada. Só quer um motivo a mais para não ficar pensando na tragédia do dia anterior. Mas pensa. Na tela da TV a imagem vai se apagando. Paulo vai criando uma imagem própria em sua mente. Atormenta-lhe a idéia de o corpo de Juvenal ainda não ter sido encontrado. Se o tivesse, pelo menos poderia estar ao lado do caixão. Numa hora dessas ninguém se incomodaria. Ele poderia fazer um último carinho no rosto de seu amado, que dentro de poucas horas haveria de partir para a cidade eterna.
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Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.2
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Sobre o autor : http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/jose-faria-nunes-1948.html
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Fontes:
Colaboração de José Faria Nunes.
Imagem = Historinhas Beatitudes
Por que quando se está acordado, ainda que por horas seguidas com os olhos fixos na programação eles não ardem? Sem nada entender do assunto Paulo imagina que, ao dormir, todos os sentidos se relaxam, inclusive a visão, tornando-se vulnerável, mais susceptível à agressão dos raios de luz, pelas ondas emitidas pela TV.
Pega o controle remoto, coloca o televisor em stand by, vira para o canto, procura dormir novamente.
Não dorme. Vem-lhe à memória o telefonema do dia anterior: Juvenal havia pulado no rio, de cima da ponte. Na Avenida Beira Rio turistas viram quando o corpo se projetou da ponte sobre o rio. A chegada dos bombeiros despertou a curiosidade de turistas e de moradores das proximidades. Quem viu? Quem era? Homem ou mulher? Por que será que fez isso?
Perguntas várias, respostas vagas, até controvertidas, não raras maldosas.
Aos poucos era montado o quebra-cabeça:
Um homem que parecia chorar caminhava como quem nada quisesse, sem pressa, distraído. Na ponte quase foi atropelado por um carro, de onde o motorista gritou algo ininteligível. Um xingamento? O homem parou, olhou para cima, para baixo, fez um gesto como se se benzesse, subiu no corrimão da ponte e saltou.
A princípio, Paulo não se importou com a notícia. Juvenal sabia nadar como ninguém. Muitas pessoas praticavam aquela aventura. Um esporte arriscado, mas do agrado de quem pulava e de quem assistia. Adrenalina pura. Paulo mesmo já havia feito isso muitas vezes, quando adolescente. Só que da outra ponte, a Afonso Pena, pênsil, metálica, mais baixa. A atual, de cimento armado, é alguns metros mais alta. Ainda assim muitos saltam de lá. Os desencorajados apenas admiram. Batem palmas. Os que consumam a aventura retornam vitoriosos, cheios de si, prontos para novos saltos. Saltavam em equipe. Uma canoa motorizada fazia guarda um pouco abaixo, para eventual emergência. Houve casos em que a polícia intervinha, por fim deixou de se importar com o que qualificou de insensata atitude. Brincadeira de louco. Um dia o rio ainda haveria de levar algum aventureiro.
Premonição ou argumento matemático?
De fato, muitas vidas já se foram no seio daquelas águas. Por negligência, descuido, imperícia, conseqüência de embriaguez, fatalidade. Ene causas.
O caso de Juvenal foi diferente. Ele saltou deliberadamente para a morte. Muitos do bairro de Juvenal já sabiam do caso. Paulo deveria ter sido o último a saber.
A família de Juvenal, em prantos, as filhas mais velhas descabelavam-se. A criança pequena não entendia o acontecido. A esposa, inconsolável, buscava motivos de sua parte para se culpar pela morte do marido. O que teria feito de tão ruim para ele tomar essa atitude tão radical? Procurava ser boa esposa, embora tivesse um segredo que ele não podia saber. Será que vazou? Por que não contou para ninguém o que se passava na cabeça dele? Tudo poderia se explicar, reconsiderar. Afinal, não há mal que sempre dure, assim como também não há bem que nunca acabe. Tudo é transitório, um dia se rema contra a maré, outro dia a favor, e assim é vivida a vida.
As pessoas mais íntimas sabiam que ele tinha surtos de depressão, mas... quantos não padecem desse mal e nem por isso se matam?
Paulo se lembra de que, enquanto os familiares de Juvenal padeciam na fúnebre angústia, a crônica da maldade desfilava motivos para o fato. Culpa foi da esposa que tinha um romance secreto? Culpa de alguma figuraça cujo nome não poderia ser dito. Teria sido alguma mulher de marido importante? Seria a verdade temerária? Haveria um iminente escândalo de proporções inusitadas? Problema no emprego? Intolerância de chefes? Exigências excessivas no trabalho?
Nada além de conjecturas.
Não faltaram os discursos da esquerda: o caso é que as empresas ainda não se conscientizaram de que os empregados também são gente, que o lucro não deve ser obsessão que justifique opressão do trabalhador. Serviço sempre mais, salário sempre menos, além da constante ameaça de corte nos quadros de pessoal. No ar sempre uma nuvem a anunciar: vai rolar cabeça. Uns e outros motivos desfilavam na boca dos plantonistas do diz que diz. Outra causa do suicídio? Dívidas impagáveis, patrimônio exaurido, nome na Serasa, cartões de crédito cancelados, crédito não extinto... inferno de vida. Melhor a morte.
Paulo não dorme, por mais que tente. Perdeu o sono.
Levanta-se, quer espantar aquelas lembranças que lhe atormentam a alma. Liga o televisor, troca de canais como se procurasse trocar de pensamentos, um fora do ar, outro também, em outro a imagem não presta. Prefere o canal local, repetidora de uma rede sensacionalista de programas tragicômicos, mas de boa imagem. Afinal não quer ver nada. Só quer um motivo a mais para não ficar pensando na tragédia do dia anterior. Mas pensa. Na tela da TV a imagem vai se apagando. Paulo vai criando uma imagem própria em sua mente. Atormenta-lhe a idéia de o corpo de Juvenal ainda não ter sido encontrado. Se o tivesse, pelo menos poderia estar ao lado do caixão. Numa hora dessas ninguém se incomodaria. Ele poderia fazer um último carinho no rosto de seu amado, que dentro de poucas horas haveria de partir para a cidade eterna.
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Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.2
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Sobre o autor : http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/jose-faria-nunes-1948.html
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Fontes:
Colaboração de José Faria Nunes.
Imagem = Historinhas Beatitudes
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