sexta-feira, 15 de abril de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XIII – A Fonte das Três Comadres


Havia um rei que cegou. Por mais que os médicos o tratassem com quanto remédio havia, não recobrava nem um pingo de vista. Certa vez bateu no palácio uma mendiga, a pedir esmola; sabendo da cegueira do rei, disse que desejava ensinar-lhe um bom remédio.

O rei a recebeu.

— Saiba S. Majestade que só existe no mundo uma coisa capaz de curar a cegueira, e é banhar os olhos com água da fonte das Três Comadres. Mas é muito difícil obter essa água. Quem for buscá-la tem que entreter-se com uma velha que mora por lá; só essa velha pode dizer se o dragão que toma conta da fonte está acordado ou dormindo.

E contou o caminho para chegar à fonte. O rei agradeceu-lhe a informação e presenteou-a com um saco de moedas de ouro. Em seguida ordenou que uma esquadra saísse com seu filho mais velho em busca da tal água milagrosa, e recomendou ao príncipe que não se distraísse com coisa nenhuma, e que estivesse de volta dentro de um ano.

O príncipe partiu. Depois de muito navegar, chegou a um reino muito rico, onde saltou em terra e caiu na folgança com as lindas moças que lá havia. Gastou todo o seu dinheiro, fez dívidas e ao esgotar-se o prazo nem coragem teve de voltar para casa.

O rei, muito aborrecido, mandou aprestar outra esquadra, que partiu levando o filho do meio. Esse moço foi também .ao tal reino, onde igualmente se enfeitiçou pelas moças bonitas, esquecendo o pai cego e a água milagrosa.

Mais um ano se passou sem que ele voltasse. O rei quase morreu de desgosto.

Foi então que o filho mais novo se apresentou dizendo:

— Meu pai, deixe-me ir, que juro trazer a água maravilhosa.

O rei riu-se.

— Como? Não vês que és uma criança? Se teus irmãos, homens feitos, nada conseguiram, que esperas conseguir, tu que ainda estás tão perto dos cueiros?

Mas tanto o principezinho insistiu que o rei cedeu, pensando lá consigo que donde menos se espera é que as coisas vêm. Deu-lhe uma esquadra e o menino partiu.

Também essa esquadra foi ter ao reino das moças perigosas, onde os dois príncipes se achavam encarcerados por dívidas. O principezinho pagou as dívidas deles, único meio de os restituir à liberdade. Esses maus príncipes, porém, deram-lhe maus conselhos — que ficasse ali, que desistisse de achar a tal água, etc. Mas o principezinho não cedeu. Tocou a esquadra para diante.

Chegou por fim ao reino onde era a fonte, e tanto fez que descobriu a velha do dragão. Vendo aquele meninote com uma garrafa vazia debaixo do braço, a velha espantou-se.

— Que vem fazer aqui, meu netinho? Não sabe que o perigo é grande e ninguém escapa ao dragão? Esse monstro não passa duma princesa encantada, que devora todas as criaturas que se aproximam da fonte.
Mas o principezinho contou sua história e insistiu para que a velha o ajudasse.

— Está bem — disse ela. — Aproxime--se do dragão sem ser visto e espie se está de olhos abertos ou fechados. Se estiver de olhos abertos é que está dormindo, e se estiver de olhos fechados é que está acordado. Por não saber disto muita gente foi devorada pelo monstro.

O principezinho agradeceu o aviso e partiu. Aproximou-se cautelosamente do dragão. Espiou. Estava de olhos abertos. "Bem — disse ele consigo — o dragão está dormindo" — e avançou com a garrafa na direção da fonte para enchê-la. Mas o monstro fechou os olhos e saltou sobre ele. O principezinho não teve medo. Puxou da espada e enfrentou-o. Luta que luta, de repente conseguiu dar-lhe um golpe certeiro. O sangue espirrou do dragão, que imediatamente se transformou na mais linda princesa que se possa imaginar.

— Tu me desencantaste, principezinho — disse ela — e minha sorte me manda casar contigo. Dou-te um ano para voltares. Se não voltares irei em tua procura. Toma este lenço como sinal. Adeus

O príncipe regressou, muito alegre, para o reino de seu pai. Em caminho apanhou os irmãos no reino das moças bonitas e levou-os também. Mas esses maus irmãos armaram-lhe uma boa peça. Com o fim de roubarem a água milagrosa, que ele guardava num baú cuja chave trazia num fio ao peito, prepararam um grande banquete a bordo, com muito vinho. E tanto fizeram que o embebedaram, e lhe tiraram a chave, trocando lá no baú a garrafa de água milagrosa por água à-toa do mar.

Quando a esquadra chegou ao reino do rei cego, os príncipes foram recebidos com grandes festas. O principezinho contou toda a sua viagem e entregou ao pai a garrafa de água milagrosa. O efeito, porém, foi um desastre. Em vez de curar a cegueira, deixou-a ainda pior. Os maus príncipes, então, adiantaram-se e disseram que o principezinho não passava dum impostor, pois trouxera água do mar em vez de água milagrosa. O rei que experimentasse a que eles haviam trazido — e mostraram a garrafa de água da fonte. O rei experimentou-a e imediatamente sarou da cegueira.

Houve grandes festas em todo o reino, mas o principezinho foi condenado à morte pela sua impostura. Os carrascos, entretanto, tiveram dó dele, e em vez de matá-lo, como ordenara o rei, apenas lhe cortaram um dedo como prova, soltando-o em seguida na floresta.

O pobre moço foi ter à casa de um lenhador, a quem pediu emprego. Foi ajustado como escravo e muito judiado. E o prazo de um ano concedido pela princesa chegou ao fim sem que o coitadinho pudesse pensar em ir procurá-la tão longe. Vendo que o seu desencantador não vinha, a princesa mandou aparelhar uma esquadra e partiu em sua procura, conforme prometera.

Quando a esquadra chegou ao reino, a princesa mandou um emissário, ricamente vestido, dizer ao rei que tinha combinado casamento com o príncipe que a desencantara, e agora estava ali para dar cumprimento à promessa. E que mandasse a bordo o príncipe, sob pena de seus navios abrirem fogo contra a cidade, incendiando-a.

O rei, muito agoniado, teve de ceder, e o príncipe mais velho apresentou-se a bordo como sendo o desencantador da princesa.

— Homem atrevido! — gritou esta — como ousa fingir ser quem não é? Onde está o lenço que dei ao meu desencantador?

O príncipe voltou para terra, muito triste. O rei então mandou o do meio. O resultado não foi melhor, e a princesa, furiosa, fez outra intimação ao rei. Ou mandava o príncipe verdadeiro ou os seus canhões bombardeavam a cidade, destruindo tudo.

O rei ficou aflitíssimo, porque o príncipe mais novo havia sido executado por sua ordem. Estava a arrancar as barbas no maior desespero, quando os carrascos vieram dizer que não o tinham matado, mas apenas se limitado a cortar-lhe um dedo. Suspirando de alívio, o rei deu ordem para que procurassem o principezinho, com grandes recompensas a quem o descobrisse.

O lenhador que conservava o príncipe como escravo ficou mais morto do que vivo quando soube de tudo. Botou-o às costas e lá se foi ao palácio do rei, chorando de alegria e medo.

Estava o pobre príncipe em miserável estado de sujeira, vestido de andrajos. Tiveram de lavá-lo e vesti-lo com as suas roupas deixadas no palácio, por sinal que curtas e apertadíssimas. Enquanto faziam esses preparativos, o prazo dado pela princesa, de bombardear a cidade, ia chegando ao fim. Os canhões já estavam apontados. Mas tudo correu bem. O principezinho entrou no navio da princesa e mostrou-lhe o lenço.

— Agora sim — disse ela — reconheço em ti o meu desencantador — e seguiu com ele para o seu reino, onde se casaram e foram muito felizes. Os príncipes maus, esses tiveram o castigo merecido. Foram amarrados à cauda de cavalos bravos para morrerem despedaçados.
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— Continua o negócio do número três — disse Emília. — Tudo tem que ser três! O povo não passa sem um rei e três príncipes, dois maus e um bom. E o bom é sempre o mais criança.

— E o castigo dos maus — ajuntou Narizinho — também é sempre o mesmo: amarração em cauda de cavalo ou burro bravo. Acho muito bárbaras essas histórias.

-- É que vêm de muito longe — disse dona Benta. — Se fossem histórias de hoje, teríamos automóveis em vez de forcas, e não veríamos nunca esse horrendo castigo do despedaçamento por burros bravos. O povo, muito conservador, repete hoje as mesmas histórias contadas na Idade Média, tempo em que enforcar gente correspondia a um divertimento público, como hoje ir ver fitas.

— Mas se os contadores vão alterando as histórias — disse Pedrinho — por que conservam essas barbaridades?

— As alterações são só na cor local, em detalhes superficiais. Na essência, no fundo, as histórias não são alteradas. Por isso aparecem tantos príncipes, tantos reis, tanta forca e tanto burro bravo — explicou dona Benta.

— E os dragões e encantamentos?

— Também coisas da Idade Média. Naquele tempo a imaginação popular andava povoada de monstros. Um dia havemos de ler o poema de Ariosto, Orlando Furioso, no qual vocês verão que delírio de pesadelo era a cabeça da gente medieval. As histórias que correm entre o nosso povo são reflexos da era mais barbaresca da Europa. Os colonizadores portugueses trouxeram essas histórias e soltaram-nas por aqui — e o povo as vai repetindo, sobretudo na roça. A mentalidade da nossa gente roceira está ainda muito próxima da dos primeiros colonizadores.

— Por que, vovó?

— Por causa do analfabetismo. Como não sabem ler, só entra na cabeça dos homens do povo o que os outros contam — e os outros só contam o que ouviram. A coisa vem assim num rosário de pais. a filhos. Só quem sabe ler, e lê os bons livros, é que se põe de acordo com os progressos que as ciências trouxeram ao mundo.
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Continua… XIV – A Rainha que Saiu do Mar
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
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