Uma vez uma formiga, que andava pelos campos, ficou com as perninhas presas na neve.
— Ó neve valente que meus pés prende! — exclamou a formiga, e a neve respondeu:
— Sou valente mas o sol me derrete. A formiga voltou-se para o sol:
— Ó sol valente que derrete a neve que meus pés prende! — e o sol respondeu:
— Sou valente mas a nuvem me esconde.
A formiga voltou-se para a nuvem:
— Ó nuvem valente que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e a nuvem respondeu:
— Sou valente mas o vento me desmancha.
A formiga voltou-se para o vento:
— Ó vento valente que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e o vento respondeu:
— Sou valente mas a parede me pára. A formiga voltou-se para a parede:
— Ó parede valente que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e a parede respondeu:
— Sou valente mas o rato me fura. A formiga voltou-se para o rato:
— Ó rato valente que fura a parede que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e o rato respondeu :
— Sou valente mas o gato me come. A formiga voltou-se para o gato:
— Ó gato valente que come o rato que fura a parede que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e o gato respondeu:
— Sou valente mas o cachorro me pega.
A formiga voltou-se para o cachorro:
— Ó cachorro valente que pega o gato que come o rato que fura a parede que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e o cachorro respondeu :
— Sou valente mas a onça me devora. A formiga voltou-se para a onça:
— Ó onça valente que devora o cachorro que pega o gato que come o rato que fura a parede que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e a onça respondeu:
— Sou valente mas o homem me caça. A formiga voltou-se para o homem:
— Ó homem valente que caça a onça que devora o cachorro que pega o gato que come o rato que fura a parede que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende! — e o homem respondeu:
— Sou valente mas Deus pode comigo. A formiga voltou-se para Deus:
— Ó Deus valente que pode com o homem que caça a onça que devora o cachorro que pega o gato que come o rato que fura a parede que pára o vento que desmancha a nuvem que esconde o sol que derrete a neve que meus pés prende!
Deus respondeu:
— Formiguinha, acaba com essa história e vai furtar.
É por isso que a formiga vive sempre na maior atividade, furtando, furtando.
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— Ora até que enfim ouvi uma história que merece grau dez! — gritou Emília. — Está muito bem arranjada, e sem rei dentro, nem príncipes, nem olho furado, nem burro bravo. Ótima! Meus parabéns a tia Nastácia.
— Também gostei bastante — disse Narizinho. — Só que não concordo com o fim. A formiga não furta. As coisas que há no mundo são tão dela como nossas e de todos os outros animais. Por que considerar gatuninha a formiga?
Dona Benta explicou:
— A gente vê aí o dedo das contadeiras de histórias. São em geral donas de casa, ou amas, ou cozinheiras, criaturas para as quais as formigas não passam dumas gatuninhas, porque vivem invadindo as prateleiras e guarda-comidas para furtar açúcar. Se fosse escrita por um filósofo, a história não teria esse fim, porque os filósofos nem sabem que há guarda-comidas no mundo. Só enxergam o céu, as estrelas, as leis naturais, etc. Mas as tias Nastácias sabem muito bem das. formiguinhas que furtam açúcar.
— E é mesmo, sinhá — confirmou a preta. — Outro dia esqueci de tampar a terrina de doce de laranja, e quando foi de manhã estava pretinha de formigas. As bobas se deixam grudar na calda e morrem afogadas. Bem feito! Quem manda serem gatuninhas?
— Então você também é gatuna — disse Emília — porque furta as laranjas da laranjeira para fazer doce.
— Mas a laranjeira é da gente, Emília, é da casa, é ali de dona Benta. Quem tira o que é seu não furta.
— E onde está a escritura da Natureza que deu a laranjeira a dona Benta? — gritou Emília pregando um soco na mesa.
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Continua… XVI – João Esperto
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
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