sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Soares de Passos (Catão)


Como em tarde anuviada
Em tarde de negros véus.
Para a terra contristada
Sorri o íris dos céus;
Mas quando o sol esmorece,
O íris desaparece,
Tudo é negra escuridão;
O mar ruge e se encapela,
E nas asas da procela
Corre bramindo o trovão:

Tal ao sol da liberdade
Que sobre Roma luziu,
Qual íris em tempestade,
Catão à pátria sorriu.
Mas esse astro que fulgente
Das águias brilhara à frente,
Do Capitólio baixou;
E ele, o íris da bonança,
Ele, de Roma a Esperança,
Com seu fulgor expirou.

Contra as iras da tormenta
Ó forte lutaste em vão:
Que pode a virtude isenta
Contra a geral corrupção?
Já não luziam virtudes
Como nos séculos rudes
Dessa Roma consular;
O templo da tirania
A seus ministros abria
As portas de par em par.

Inda infante, viste Mário
De Roma o sangue beber;
E envolvida num sudário
A pobre Itália gemer.
Viste Sila, o monstro infando,
Entre as cabeças folgando,
Qual tigre, no seu festim;
E, infante, bradaste ufano:
– Dai-me um ferro, e o tirano
Livremos a pátria enfim! –

Não to deram: que lucrava
O teu valor juvenil?
Dum tirano outro brotava,
Nascia a guerra civil.
Enxuto de Roma o pranto,
Eis que envolto em negro manto
Lá surge um conspirador:
Cintila a morte, a ruína
No punhal de Catilina,
De Catilina, o traidor,

Surge, víbora gerada
Dos vícios do lodaçal!
Sobre Roma descuidada
Lança o veneno fatal!
Eia, empunha o facho ardente!
Entrega a pátria inocente
Aos punhais da tua grei!
E entre o sangue, à luz do incêndio,
Num trono de vilipêndio
Vem sentar-te como rei!

Mas treme! lá soa o brado
De Marco Túlio, orador.
Treme! Catão no senado
Já dos teus vence o furor.
Sucumbiste, algoz ferino!
Oh! mas vinga-te o destino
Que Roma jurou perder.
Catão, cobre-te de luto,
Que da Gália já escuto
A guerra civil descer.

Gerou-a o triunvirato,
Esse monstro d'ambição;
Que as eras de Cincinato,
Essas eras já lá vão.
D'olhos fitos sobre a Itália
Eis desce o leão de Gália,
E Arimino já tomou.
É César! ei-lo que assoma:
Abre-lhe as portas, ó Roma,
Que às tuas portas chegou!

Ei-lo parte, e já na Espanha
Os três legados venceu!
Só em Dyrrachio lhe ganha
A espada do grão Pompeu.
Os mortos jazem aos centos:
Sobre os seus restos sangrentos
Um homem chora: é Catão.
É ele que ali deplora
Essa guerra assoladora,
Guerra d'irmão contra irmão.

A liberdade expirava:
O coração lho prediz.
Roma, a livre Roma escrava
Ia dobrar a cerviz.
Não se enganou: lá troveja
O fragor d'alta peleja
Em Farsália inda uma vez;
Pompeu vacila e fraqueia;
A liberdade baqueia
De Júlio César aos pés.

Ei-la que expira, ei-la morta...
Oh! que não! ressurge além!
Catão é vivo: que importa
Quanto César ganho tem?
De Farsália aos naufragantes
Sobre as areias distantes
Da Líbia surge um fanal:
São dele, dele as bandeiras
Juntando as rotas fileiras
Para um combate final.

Mas César lá corre ovante,
Vence Juba e Cipião;
Tudo ante ele vacilante
Se prostra enfim maldição!
Não tarda a hora funesta:
De liberdade só resta
Dentro d'Utica um fulgor.
Inda Catão lá impera:
É lá que o vencido espera
As iras do vencedor.

Que venha, que ao seu aceno
Curvado não há-de ver
Aquele rosto sereno,
Que nunca soube tremer.
Caminha, César altivo,
E acharás em teu cativo,
Em vez de preito, o desdém!
Sabes vencer, porém corre
Vem saber como se morre,
Aprende a morrer também!

Catão, Catão, eis chegado
O momento de partir!
Com que rosto sossegado
Te vejo à morte sorrir!
Antes do golpe supremo
Tu paras inda no extremo
A meditar com Platão:
Assim a águia alterosa
D'alta penha cavernosa
Mede sublime a amplidão.

E depois, assim como ela,
Das nuvens rompendo o véu,
Adeja sobre a procela,
Deixa a terra, e busca o céu:
Tal coa dextra sempre ousada
Cravando no seio a espada,
Partiste d'alma os grilhões;
E dentre os vaivéns da sorte
Voaste, calcando a morte,
Às etéreas regiões.

César vence, e ao Capitólio
Lá sobe triunfador;
Roma cai do altivo sólio,
Rojando aos pés dum senhor.
Catão, o livre, expirara...
No suspiro que exalara
A liberdade voou.
Começava o negro império
Que um Calígula, um Tibério,
Um Nero, monstro, gerou.

Ele, entanto, sepultado
Nas praias junto do mar,
Lá dormia descansado
Sob a lájea tumular.
Ali a queixosa vaga
Vinha, rolando na plaga,
Beijar do livre a mansão;
E inda falar com saudade,
Da pátria, da liberdade,
à estátua de Catão.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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