sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 3


V

O COMBATE

Desabava a tempestade, que desde o transmontar do sol estava iminente sobre a costa.

Passaram algumas lufadas rijas e ardentes: eram as primeiras baforadas da procela. Pouco depois caiu a refega impetuosa e cavou o mar, levantando enormes vagalhões.

Aires até ali bordejava com os estais e a bujarrona, entre as Ilhas dos Papagaios e a do Breu, mascarando a balandra de modo a não ser vista da escuna, que passava ao largo com as gáveas nos rizes.

Ao cair da refega porém, mandou Aires soltar todo o pano; e meter a proa direita sobre o corsário.

- Cheguem à fala, rapazes, gritou o comandante.

Cercaram-no sem demora os marujos.

- Vamos sobre a escuna com a borrasca, desarvorados por ela, traquete roto e o mais pano a açoitar o mastro. Percebeis?.

- Se está claro como o sol!

- Olhai os arpéus, que não nos escape das garras o inimigo. Quanto às armas, aproveitai este aviso de um homem que ele só a dormir entendia mais do ofício, que todos os marítimos do mundo e bem acordados. Para a abordagem não há como a machadinha; apunhada por um homem destemido, não é arma, senão braço e mão de ferro, que decepa quanto se lhe opõe. Não se carece de mais; um cabide d'armas servirá para a defesa, mas para o ataque, não. 

Proferidas estas palavras, tomou Aires a machadinha que lhe fora buscar um grumete e passou-a na cinta sobre a ilharga.

- Alerta, rapazes; que estamos com eles.

Nesse momento, com efeito, a balandra acabando de dobrar a ponta da ilha estava no horizonte da escuna e podia ser avistada a cada instante. A advertência do comandante, os marujos dispersaram-se pelo navio, correndo uns às vergas, outros às enxárcias e escotas de mezena e traquete.

No portaló Aires comandava uma manobra, que os marinheiros de sobreaviso executavam ás avessas; de modo que em poucos momentos farrapos de vela estortegavam como serpentes em fúria, enroscando-se ao mastro; levantava-se de bordo medonha celeuma; e a balandra corria em árvore seca arrebatada pela tempestade.

Da escuna, que singrava airosamente, capeando à refega, viram os franceses de repente cair-lhes sobre como um turbilhão, o barco desarvorado, e orçaram para evitar o abalroamento. Mas de seu lado a balandra carregara, de modo que foi inevitável o choque.

Antes que os franceses se recobrassem do abalo produzido pelo embate, arremessavam-se no tombadilho da escuna doze demônios que abateram quanto se interpunha à sua passagem. Assim varreram o convés de proa a popa.

Só aí encontraram séria resistência. Um mancebo, que pelo trajo e aspecto nobre, inculcava ser o comandante da escuna, acabava de subir ao convés, e precipitava-se contra os assaltantes, seguido por alguns marinheiros que se haviam refugiado naquele ponto.

Mal avistou o reforço, Aires que debalde buscava com os olhos o comandante francês, pressentiu-o na figura do mancebo, e arrojou-se avante, abrindo caminho com a machadinha.

Foi terrível e encarniçada a luta. Eram para se medirem os dois adversários, na coragem como na destreza. Mas Aires tinha por si a embriaguez do triunfo que obra prodígios, enquanto o francês sentia apagar-se a estrela de sua ventura, e já não combatia senão pela honra e pela vingança.

Recuando ante os golpes da machadinha de Aires, que relampeava como uma chuva de raios, o comandante da escuna, acossado na borda, atirou-se da popa abaixo, mas ainda no ar o alcançara o golpe que lhe decepou o braço direito.

Um grito de desespero estrugiu pelos ares. Soltara-o aquela mulher que lá se arroja para a popa do navio, com os cabelos desgrenhados, e uma linda criança constrangida ao seio num ímpeto de aflição.

Aires recuou tocado de compaixão e respeito.

Ela, que chegara à borda do pavês de ré precisamente quando o mar rasgava os abismos para submergir O esposo, tomou um impulso para arrojar-se após. Mas o pranto da filha a retraiu desse primeiro assomo.

Voltou-se para o navio, e viu Aires a contemplá-la mudo e sombrio; estendeu para ele a criança, e depondo-lha nos braços, desapareceu, tragada pelas ondas.

Os destroços da tripulação da escuna aproveitavam-se da ocasião para atacar á traição Aires, que eles supunham desprecatado; porém o mancebo apesar de comovido, percebeu-lhes o intento, e cingindo a criança ao peito com o braço esquerdo, marchou contra os corsários, que buscavam nas vagas, como seu comandante, a última e falaz esperança de salvação.

VI

A ÓRFÃ

O dia seguinte, com a viração da manhã, entrava galhardamente a barra do Rio de Janeiro uma linda escuna, que rasava as ondas como uma gaivota.

Não fora sem razão que o armador francês ao lançar do estaleiro aquele casco bem talhado com o nome de Mouette, lhe pusera na popa a figura do alcíon dos mares, desfraldando as asas.

À popa, na driça da mezena, tremulavam as quinas portuguesas sobre a bandeira francesa arreada a meio e colhida como um troféu.

No seu posto de comando, Aires embora atento à manobra, não podia de todo arrancar-se aos pensamentos que de tropel lhe invadiam o espírito, e o disputavam com irresistível tirania.

Fizera o mancebo uma presa soberba. Além do carregamento de pau-brasil com que sempre contara, e de um excelente navio mui veleiro e de sólida construção, achara a bordo da escuna avultado cabedal em ouro, quinhão que ao capitão francês coubera na presa de um galeão espanhol procedente do México, e tomado em caminho por três corsários.

Achava-se pois Aires de Lucena outra vez rico, e porventura mais do que o fora; deduzida a parte de cada marujo e o preço da balandra, ainda lhe ficavam uns cinqüenta mil cruzados, com os quais podia continuar por muito tempo a existência dissipada que levara até então.

Com a riqueza, voltara-lhe o prazer de viver. Naquele momento respirava com delícia a frescura da manhã, e seu olhar afagava amorosamente a pequena cidade, derramada pelas encostas e faldas do Castelo.

Apenas fundeou a escuna, largou Aires de bordo, e ganhando a ribeira, dirigiu-se á casa de Duarte de Morais.

Encontrou-o a ele e a mulher à mesa do almoço; alguma tristeza que havia nessa refeição de família, a chegada de Aires a dissipou como por encanto. Era tal a efusão de seu nobre semblante, que do primeiro olhar derramou um doce contentamento nas duas almas desconsoladas.

- Boas-novas, Duarte!

- Não carecia que falásseis, Aires, pois já no-lo tinha dito vosso rosto prazenteiro. Não é, Úrsula?

- Pois não fora?... O Senhor Aires vem que é uma páscoa florida.

- E não lhe pareça, que foram páscoas para todos nós.

Referiu o mancebo em termos rápidos e sucintos o que havia feito nos dois últimos dias.

- Aqui está o preço da balandra e vosso quinhão da presa como dono, concluiu Aires deitando sobre a mesa duas bolsas cheias de ouro.

- Mas isto vos pertence, pois é o prêmio de vosso denodo. Eu nada arrisquei senão algumas tábuas velhas, que não valiam uma onça.

- Valiam mil, e a prova é que sem as tábuas velhas, continuaríeis a ser um pobretão, e eu teria a esta hora acabado com o meu fadário, pois já vos disse uma vez: a ampulheta de minha vida é uma bolsa; com a derradeira moeda cairá o último grão de areia.

- Porque vos habituastes à riqueza; mas a mim a pobreza, apesar de sua feia catadura, não me assusta.

- Assusta-me a mim, Duarte de Morais, que não sei que há de ser de nos quando se acabar o resto das economias! acudiu Úrsula.

- Bem vedes, amigo, que não deveis sujeitar a privações a companheira de vossa vida, por um escrúpulo que me ofende. Não quereis reconhecer que esta soma vos é devida, nem me concedeis o direito de obsequiar-vos com ela; pois sou eu quem vos quero dever.

- A mim, Aires?

- Faltou-me referir uma circunstância do combate. A mulher do corsário francês arrojou-se ao mar, após o marido, deixando-me nos braços sua filhinha de colo. Roubei a essa inocente criança pai e mãe; quero reparar a orfandade a que voluntariamente a condenei. Se eu não fosse o estragado e perdido que sou, lhe daria meu nome e a minha ternura!... Mas para um dia corar da vergonha de semelhante pai!... Não! Não pode ser!...

- Não exagereis vossos pecados, Aires; foram os ardores da juventude. Aposto eu que já vão arrefecendo, e quando essa criança tornar-se moça, também estareis de todo emendado! Não pensas como eu, Úrsula?

- Eu sei!... Na dúvida não me fiava, acudiu a linda carioca.

- O pai que eu destino a essa criança sois vós, Duarte de Morais, e vossa mulher lhe servirá de mãe. Ela deve ignorar sempre que teve outros, e que fui eu quem lhos roubei. Aceitem pois esta menina, e com ela a fortuna que lhe pertencia. Tereis ânimo de recusar-me este serviço, de que preciso para repouso de minha vida? 

- Disponde de nós, Aires, e desta casa.

A um apito de Aires; apareceu o velho Bruno, carregando nos braços como uma ama-seca, a filha do corsário. Era um lindo anjinho louro, de cabelos anelados como os velos do cordeiro, com os olhos azuis e tão grandes, que lhe enchiam o rosto mimoso.

- Oh! que serafim! exclamou Úrsula tomando a criança das mãos rudes e calosas do gajeiro, e cobrindo-a de carícias.

Nessa mesma noite o velho Bruno por ordem do capitão regalava a maruja na taberna do Simão Chanfana, ao Beco da Fidalga.

Aires ai apareceu um momento para trincar uma saúde com os rapazes.
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continua

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