quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Adolfo Caminha (Velho Testamento)

... Insensivelmente o charuto caiu-me dos dedos e eu fiquei na primitiva abstração, numa espécie de sonambulismo artificial e deleitoso, – pernas ao comprido, torso derreado na velha poltrona de couro-da-rússia, olhos além, no grande busto a crayon de Virgínia, trabalho de um desenhista francês.

            A noite estava úmida e sem luz, misteriosa como uma criação de Poe; o contrário da minha querida sala, do meu atelier de escritor, onde se podia gozar um ambiente morno, leve, outonal.

            O cérebro, num de seus dias de ócio brejeiro, recusava o trabalho sutil das idealizações artísticas, parado quase, no meio torpor de uma alma que se volve toda para o passado num dilúculo de nostalgias.

            O olhar, preso ao busto, via nele, esteticamente corporificadas, as minhas loucuras de outro tempo, loucuras inconscientes da mocidade, entusiasmos de rapazola que antes de tudo é homem e, depois de homem, artista.

            Virgínia... Era ela, sim, – o primeiro fruto proibido que meus olhos tocaram –; ela, a primeira mulher que eu amei como deve amar um coração de vinte anos – rindo e folgando; ela, magrinha, inteligente, delicada, de uma simpleza que ia até ao pudor ingênuo das raparigas do campo; a “francesinha”, como eu a chamava quando ainda nenhum fio branco dava sinal de velhice à minha cabeça de longos cabelos fulvos, secretamente adorada nos misteriosos boudoirs do grand monde.

            Fui-me, então, pelo passado numa romaria espiritual de velho peregrino do Amor, os olhos presos ao busto, a imaginação longe, bem longe daquela atmosfera de silêncio e repouso, trancada aos rumores do inverno, discretamente abafada em penumbra macia de estufa...

            Virgínia...

E sempre a mesma ideia, sempre a mesma obstinação, como se diante de mim houvesse uma esplêndida galeria de quadros originais, representando cada um episódios em que Ela e eu figurássemos numa deliciosa permuta de afetos.

            Um, sobretudo, um desses quadros imaginários, vagamente esboçados pela fantasia do espírito, dominava os outros, pondo sobre eles o luto de um crepe intangível...

            O desenhista pintara Virgínia moça, Virgínia bela, Virgínia em toda a sua perfeição de mulher modelo, – grandes olhos de hebreia, negros e luminosos, fulgurantes, numa irradiação perene de vida; boca pequena e sensual, calando revoltas de temperamento, instintos da natureza animal; face alongada...

            Mas, eu via-a como só a vira uma vez:

            Floriam rosas numa opulência triunfal de cores. Tínhamos vindo, eu e Ela, de um pic-nic na montanha, onde fôramos esquecer um pouco a monotonia da existência, por um soberbo outono, cheirando a resedás.

            Partíramos cedo, a cavalo, num trote suave, beirando a floresta escura e profunda, de um verde carregado que se alastrava indefinidamente.

            Ao vê-la nos seus trajes de amazona, rebenque e espora, ostentando o garbo marcial de uma inglesinha do Hyde-Park, o véu desprendendo-se em asas de borboleta ombro fora, lembrei-me da encantadora criação de Gautier na Mademoiselle de Maupin. E, com efeito, havia no porte esbelto, quase vaporoso, de Virgínia essa desenvoltura enérgica e viril da célebre duelista, essa arzinho petulante, um pouco artificial e muitíssimo graciosa que a fazia tão bela.

            Fomos...

            Que linda a manhã! Na mancha sombria do arvoredo abriam-se florações de um exotismo tropical. Para além a poeira branca da estrada quebrando-se em flexuosidades de serpente, e para trás as linhas indecisas do viveiro humano destoucando-se às primeiras nuanças da luz, como esses burgos risonhos que se erguem no meio da floresta americana.

            Ela, então, sempre alegre, numa garrulice infantil, disse-me cousas do passado, episódios da sua vida de menina quando a levavam ao campo; e ria sonoramente, achando muita graça no que ela própria ia narrando.

            Súbito pungia o animal, vibrava o rebenquezinho, e, passando adiante num galope, numa vertigem, dizia-me – adeus, como se voasse para um país longínquo.

            E eu, para que ela não me fugisse deveras, ia-lhe no encalço, rápido também, mordendo o lábio na ânsia de alcançar a minha Diana.

            Clareava. O bosque todo enchia-se de rumores, e, à proporção que nos aproximávamos, à proporção que a indiscreta luz do alvorecer tirava-nos da fusca penumbra matinal, espatulando as suas tintas vivas de ouro e azul por cima da floresta, mais aumentava o nosso bom humor.

            Chegamos, enfim, ao pitoresco recanto de paisagem que devíamos transformar em domicílio provisório.

            De um lado o aspecto igual do mar, o vasto oceano em repouso, numa grande estagnação luminosa, poeirado de ouro, e, em baixo, a planície, o formigueiro humano, a cidade e os longes da floresta...

            – Belo assunto para um poema! Gracejou Virgínia.

            – ... que eu talvez ainda faça, completei rindo.

            E, depois de um longo quarto de hora de êxtase, fomos a percorrer a natureza.

            – Sabes o que me parece isso? perguntei.

            – Isto é quê?

            – Este pedaço de floresta abrindo para o mar e nós dois quebrando a monotonia do verde? Faz-me lembrar a primeira página do Velho Testamento...

            Então Virgínia, com um sorriso de encantadora malícia, criticou a civilização, as exigências da moda, o viver contemporâneo, o luxo, o belo artificial; e, atirando para longe aquele arzinho de educanda, que lhe ia primorosamente, concluiu:

            – Pois olhe, meu amigo, eu vim à floresta recordar a Bíblia, mas a Bíblia dos hebreus, o grande poema da Criação... Isto aqui é deserto como o Paraíso. – Dispensa folhas de vinha...

            Não percebi logo. Iria ela tentar alguma loucura?

            Perto de nós, à sombra de uma árvore gigante, o cristal de um veio d’água ia despejar em cascata na frescura de um reservatório.

            Vejo-a como naquela manhã, vejo-a desabotoar o casaco, despir-se toda, e, formosa baigneuse, correr para o tanque. – Oh! exclamei numa surpresa de artista, cravando os olhos na pequenina estátua de Virgínia, que outra cousa não era aquele corpo ideal, quase transparente de mulher nova.

            Já agora o esplendor da luz coroava esta cena bíblica em que mais uma vez o homem e a mulher pecavam no seio da natureza, reproduzindo o eterno idílio de seus pais...

            Não era mais bela a amante do primeiro homem que esse tipo miniatural de judia do século dezenove cantando o ditirambo do amor livre em plena luz, num recanto de floresta.

            Virgínia emergiu cansada e trêmula, um quer que era de doentia morbidez na face e no olhar.

            – É extraordinário, disse ela, sinto um vulcão dentro de mim!

            Delicadamente ofereci-lhe cognac: – uma bebida inocente, um magnífico preservativo...

            Reconheci que não era aquele o seu estado normal e logo, cheio de temores, ocultando a minha inquietação, afetando a maior naturalidade, consolando-a, acordando-lhe o interesse pelos efeitos maravilhosos do sol que explodia num vasto incêndio, propus voltarmos.

            Ela não fez objeção: concordou friamente.

            E voltamos abandonando o pequeno farnel   que leváramos: a galinhola tostada, os sanduíches de presunto, os rabanetes... e o delicioso Reno cor de cidra...

            Tudo ficou marcando a nossa loucura incompleta ali no misterioso adito, sobre a relva umbrosa, onde também ficara o nosso bom humor expansivo, a alegria dos nossos corações.

            – Não estou boa, repetia Virgínia com um ar triste que me preocupava. Melhor fora não termos vindo...

            Mal podia se equilibrar e um suor copioso inundava-lhe a face.

            Evidentemente sofria.

            Longe ainda de qualquer auxílio, procurei entreter-lhe o espírito, guiando-a para as belezas da Arte moderna. – Oh, a Arte, ela não imaginava o que era a Arte! – E entrei a falar dos meus artistas prediletos, narrando episódios de sua vida íntima, caracterizando-os em síntese, nunca perdendo o tom familiar das nossas conversas.

            Ela também gostava da Arte, lia muito, admirava os grandes artistas como Flaubert, como Zola, mas preferia Gautier, “o incomparável Gautier, o mestre dos mestres!”.

            Eram breves as nossas pausas; ela, porém, repetia de vez em quando “que não estava boa, que sentia febre”...

            – Nervoso... Qual doente! Olha, já leste o último livro dos Goncourt?...

            E assim chegamos. Tomei-a nos braços; Virgínia caiu numa longa prostração.

            Na verdade a pobre criatura ardia numa febre intensa e não tardou que essa febre aumentasse com uma violência de explosão, irrompendo logo num delírio agitado e convulso. Em menos de uma hora perdera as tintas vivas do rosto num desmaio brusco.

            Houve um momento em que julguei enlouquecer. Virgínia ergueu-se no leito ajoelhando-se, a pedir socorro; que estava morrendo, que não a deixassem morrer tão criança, na flor dos seus vinte anos, brutalmente, sem ter gozado...

            E era uma pena, uma tortura, vê-la em ânsias, reagindo contra a soberania da morte, abrindo os braços: – que não queria morrer! que não queria morrer! – um brilho estranho nos olhos, fria, gelada...

................................................................................................................

            Sei de mim que beijava-a, enlaçando-a, prendendo-a nos braços como se alguém m’a quisesse roubar...

            Justamente nesse ponto doloroso acordei. O busto de Virgínia sorria defronte de mim, talvez de meus cabelos brancos, talvez de uma lágrima triste que descia lenta no meu rosto...

(Adolfo Caminha, Rio-Revista nº 2, março de 1895)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://www.iped.com.br

Nenhum comentário: