Filho desnaturado – disseram vizinhos de Bartira.
Num domingo de muita luz, Oliveiros beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora o espectro do sono flutuará na penumbra da sala.” Pareceu-lhe ouvir o chamado da doente e voltou. Os olhos dela o fitaram como se o fitassem há tempos, desde o princípio de tudo. “A qualquer hora seremos amputados pelo alfanje do vento.” Ele a beijou de novo e arrastou para mais próximo dela a mesinha com as fitas e o gravador. Quando quisesse ouvir outra fita, bastaria esticar o braço. E garantiu voltar logo.
Presa à cama e à cadeira de rodas, Bartira quase não falava mais e pouco enxergava. Urgia arranjarem acompanhante, enfermeira ou dedicada moça. Anunciaram nos jornais. Apareceram meninotas espantadas. Mocinhas loquazes. Senhoras de fala grossa. Porém, Bartira só se impressionou com uma e em razão de seu nome – Oriana. “Não precisa dormir aqui.”
Oliveiros passava o dia fora de casa, vendendo armas e munições numa loja. E aos domingos substituía Oriana nos cuidados a sua mãe.
Bartira sonhou desde menina uma vida de palcos, plateias e famas. Quis ser dançarina, mas seu pai cortou-lhe os passos pela raiz. Quis ser cantora, porém seu pai apertou-lhe a garganta com promessas de morte. Quis ser atriz e seu pai a chamou de meretriz. Quis ser, então, poetisa bem taciturna, olhos fundos, mãos trêmulas, envolta na névoa dos versos. Noturna, quase invisível. E pôs-se a compor elegias, enquanto lia poetas. O tempo, no entanto, se encarregou de amarelar seus versos. E uma súbita paixão os queimou. O vento levou-lhe as cinzas. O pai feriu-lhe as faces, chamou-a de perdida. Fosse criar o fruto amargo de seu pecado às custas da caridade pública. Entanto, Bartira não caiu, antes subiu aos palcos. Representou heroínas de todos os matizes. Viajou muito, conheceu heróis e vilões, enquanto via crescer o pequeno Oliveiros.
No meio do caminho, porém, aconteceu a catástrofe. Um acidente paralisou-lhe parte do corpo. E Bartira voltou aos versos. “Meu filho, leia para mim um pouco de Florbela.” O rapazinho lia sem jeito, como se lesse prospectos. “Leia aquele poema que começa assim: ‘Sou um ser, o outro é a metade que não sei de onde veio’. Oliveiros não sabia onde encontrar o poema. Dissesse o título do poema ou do livro. Ela se punha a pensar. Finalmente lembrava um nome: “Francisco Carvalho. Sim, tenho certeza, é dele.” O rapaz ainda não se satisfazia. Como encontrar um poema no meio de tantos livros? Se ao menos o poeta tivesse um só livro. E ainda nem havia falado de si mesmo, o cotidiano, o trabalho, as armas e munições. “Mãe, vendi uma pistola a um padre.” Ela se lembrava de armas e barões assinalados, de memórias gloriosas. “Estou cansado.” E iam dormir.
Aos poucos, mãe e filho foram aprendendo a conviver com a paralisia e a leitura. Ele não precisava catar poemas nos livros. Lesse tudo. E Oliveiros leu Anacreonte, Bilac, Camões. Foi lendo todos os livros da biblioteca de casa. Quando Bartira dormia, ele fechava o livro e ia também deitar-se.
Chegada a vez de Zorrilla, sentia-se Oliveiros cansadíssimo. E, no entanto, sua mãe queria ouvir tudo de novo. Para fazer a seleção do melhor. Assim, quando quisesse ouvi-los outra vez, saberia onde localizá-los. “Por que não tivemos antes essa ideia?”
Outra ideia encantadora chamava-se Oriana. Limpava a casa, preparava as refeições, cuidava de Bartira e lia versos em voz alta: “há muito te procuro na ladeira das tardes em declínio.”
Hemorragia no céu, melancolia nos olhos. “Já vou, Bartira.” E Oriana punha uma fita no gravador. “O vento que veio dentro da mansarda era um azul como os devaneios da tarde.”
A ideia de gravar poemas em fitas caiu do céu. A voz de Oriana era macia; a de Oliveiros, serena. Um pouco de cada poeta.
Então o rapaz sentiu-se mais livre para voar nos ventos de sua juventude. E num domingo de muita luz beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora crepitará a chama da presença.”
Demorou-se Oliveiros nos braços da noite. A madrugada o beijou mil vezes, e o afagou e o deslumbrou.
De manhã Oriana encontrou rija a patroa. Chamou vizinhos, gritou, desesperou-se. Onde andava o filho, aquele ingrato? Talvez um crime tivesse acontecido. Solicitaram a polícia. Acionaram o gravador. “A qualquer hora seremos impelidos para o terrível despertar”.
Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Num domingo de muita luz, Oliveiros beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora o espectro do sono flutuará na penumbra da sala.” Pareceu-lhe ouvir o chamado da doente e voltou. Os olhos dela o fitaram como se o fitassem há tempos, desde o princípio de tudo. “A qualquer hora seremos amputados pelo alfanje do vento.” Ele a beijou de novo e arrastou para mais próximo dela a mesinha com as fitas e o gravador. Quando quisesse ouvir outra fita, bastaria esticar o braço. E garantiu voltar logo.
Presa à cama e à cadeira de rodas, Bartira quase não falava mais e pouco enxergava. Urgia arranjarem acompanhante, enfermeira ou dedicada moça. Anunciaram nos jornais. Apareceram meninotas espantadas. Mocinhas loquazes. Senhoras de fala grossa. Porém, Bartira só se impressionou com uma e em razão de seu nome – Oriana. “Não precisa dormir aqui.”
Oliveiros passava o dia fora de casa, vendendo armas e munições numa loja. E aos domingos substituía Oriana nos cuidados a sua mãe.
Bartira sonhou desde menina uma vida de palcos, plateias e famas. Quis ser dançarina, mas seu pai cortou-lhe os passos pela raiz. Quis ser cantora, porém seu pai apertou-lhe a garganta com promessas de morte. Quis ser atriz e seu pai a chamou de meretriz. Quis ser, então, poetisa bem taciturna, olhos fundos, mãos trêmulas, envolta na névoa dos versos. Noturna, quase invisível. E pôs-se a compor elegias, enquanto lia poetas. O tempo, no entanto, se encarregou de amarelar seus versos. E uma súbita paixão os queimou. O vento levou-lhe as cinzas. O pai feriu-lhe as faces, chamou-a de perdida. Fosse criar o fruto amargo de seu pecado às custas da caridade pública. Entanto, Bartira não caiu, antes subiu aos palcos. Representou heroínas de todos os matizes. Viajou muito, conheceu heróis e vilões, enquanto via crescer o pequeno Oliveiros.
No meio do caminho, porém, aconteceu a catástrofe. Um acidente paralisou-lhe parte do corpo. E Bartira voltou aos versos. “Meu filho, leia para mim um pouco de Florbela.” O rapazinho lia sem jeito, como se lesse prospectos. “Leia aquele poema que começa assim: ‘Sou um ser, o outro é a metade que não sei de onde veio’. Oliveiros não sabia onde encontrar o poema. Dissesse o título do poema ou do livro. Ela se punha a pensar. Finalmente lembrava um nome: “Francisco Carvalho. Sim, tenho certeza, é dele.” O rapaz ainda não se satisfazia. Como encontrar um poema no meio de tantos livros? Se ao menos o poeta tivesse um só livro. E ainda nem havia falado de si mesmo, o cotidiano, o trabalho, as armas e munições. “Mãe, vendi uma pistola a um padre.” Ela se lembrava de armas e barões assinalados, de memórias gloriosas. “Estou cansado.” E iam dormir.
Aos poucos, mãe e filho foram aprendendo a conviver com a paralisia e a leitura. Ele não precisava catar poemas nos livros. Lesse tudo. E Oliveiros leu Anacreonte, Bilac, Camões. Foi lendo todos os livros da biblioteca de casa. Quando Bartira dormia, ele fechava o livro e ia também deitar-se.
Chegada a vez de Zorrilla, sentia-se Oliveiros cansadíssimo. E, no entanto, sua mãe queria ouvir tudo de novo. Para fazer a seleção do melhor. Assim, quando quisesse ouvi-los outra vez, saberia onde localizá-los. “Por que não tivemos antes essa ideia?”
Outra ideia encantadora chamava-se Oriana. Limpava a casa, preparava as refeições, cuidava de Bartira e lia versos em voz alta: “há muito te procuro na ladeira das tardes em declínio.”
Hemorragia no céu, melancolia nos olhos. “Já vou, Bartira.” E Oriana punha uma fita no gravador. “O vento que veio dentro da mansarda era um azul como os devaneios da tarde.”
A ideia de gravar poemas em fitas caiu do céu. A voz de Oriana era macia; a de Oliveiros, serena. Um pouco de cada poeta.
Então o rapaz sentiu-se mais livre para voar nos ventos de sua juventude. E num domingo de muita luz beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora crepitará a chama da presença.”
Demorou-se Oliveiros nos braços da noite. A madrugada o beijou mil vezes, e o afagou e o deslumbrou.
De manhã Oriana encontrou rija a patroa. Chamou vizinhos, gritou, desesperou-se. Onde andava o filho, aquele ingrato? Talvez um crime tivesse acontecido. Solicitaram a polícia. Acionaram o gravador. “A qualquer hora seremos impelidos para o terrível despertar”.
Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
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