domingo, 24 de novembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) O Grupo Clã – Braga Montenegro

Na opinião de Sânzio, “o conto moderno só irá consolidar-se definitivamente em nossa terra com o chamado Grupo Clã, já na década de 40”.

O surgimento do Grupo Clã e sua revista (as Edições Clã se iniciam em 1943) traz a lume uma plêiade de novos contistas, entre eles Braga Montenegro, Moreira Campos, Fran Martins, Eduardo Campos, Artur Eduardo Benevides e outros. Em fevereiro de 1948, sob a direção de Fran Martins, saiu o número 1 da Revista Clã. Primeiramente patrocinada pelos próprios autores, passou a ser publicada pela Imprensa Universitária. Teve trinta números (do zero ao 29).

O termo Clã vem, a priori, de Clube de Literatura e Arte – Cla. Posteriormente, a agremiação passou a se chamar Clube de Literatura e Arte Moderna – com sigla Clam que passou a se grifar como Clã. Assim o grupo ficou conhecido até a sua extinção, no final da década de 80. “Procurando recuperar a funcionalidade da arte e empreendendo um constante esforço para sua reintegração com a vida, o Grupo Clã veio trazer a definitiva implantação do Modernismo no Ceará. A agremiação surgiu, portanto, quando já havia passado a fase primitiva do Modernismo e entravam os escritores em outra fase, chamada por alguns de construtivista. Despontava, portanto, a geração de 45, quando o Grupo Clã, já com alguns livros publicados, começou a projetar-se”, explica a professora Vera Moraes, autora do livro Clã: trajetórias do modernismo em revista.

Observa Sânzio de Azevedo em Literatura Cearense (p. 428): “A nosso ver, o Grupo vai adquirir maior coesão por volta de 1946. Além de nesse ano serem editados nada menos de quatro importantes livros de seus componentes (Noite Feliz, Fran Martins, Face Iluminada, Eduardo Campos, Roteiro  de Eça de Queirós, Stênio Lopes, Os Hóspedes, Aluízio Medeiros, Antônio Girão Barroso, Artur Eduardo Benevides e Otacílio Colares), ocorre o lançamento, em dezembro, do número zero da revista Clã, sob a direção de Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros e João Clímaco Bezerra.”

Poetas e romancistas desse período que também escreveram composições ficcionais curtas são Alba Valdez, Aluízio Medeiros, Angélica Coelho, Antônio Girão Barroso, Assis Memória, Cândida Galeno (Nenzinha Galeno), Carlos Cavalcante (Caio Cid), Carlyle Martins, Edigar de Alencar, Elizabeth Barbosa Monteiro, Florival Seraine, F. Magalhães Martins, Geraldina do Amaral, Hilda Gouveia de Oliveira, Jáder de Carvalho, Jandira Carvalho, João Clímaco Bezerra, João Jacques, João Otávio Lobo, José Maia, José Stênio Lopes, Lauro Ruiz de Andrade, Margarida Saboia de Carvalho, Martins d’Alvarez, Miguel Newton Arraes, Milton Dias, Mozart Firmeza, Nívea Leite, Nonato de Brito, Otília Franklin, Paulo Aragão, Raimundo Amora Maciel, Sinval Sá e Yaco Fernandes.

E ainda Antônio Marrocos de Araújo, Elcias Lopes, Hélder de Queirós Lima, Jairo Martins Bastos, Maria Luísa de Queirós, Mário Alcântara, Melo Lima, Miguel Newton de Alencar e Nieddy Frederick.

                De todos os nomes deste período, somente um pode ser chamado de contista por excelência ou por natureza – Moreira Campos. Outros foram mais poetas ou mais romancistas. E isto não é apenas uma opinião, é uma constatação. Vejam-se os estudos, as teses, as monografias, os ensaios de história da literatura, as enciclopédias – em todos eles, quando o assunto é conto, o primeiro nome cearense é o de Moreira Campos.

Braga Montenegro

Joaquim Braga Montenegro (Maranguape, 1907- Buenos Aires, Argentina, 1979), mais conhecido como “crítico de primeira plana, ensaísta agudo e sensível”, no dizer de Herman Lima, estreou com Uma Chama ao Vento (contos, 1946), reeditado em 1980 pelas Edições UFC, seguindo-se, em 1976, As Viagens e Outras Ficções, (novelas e contos), mais uma seleção dos Contos Derradeiros, até então inéditos em livro. Em Uma Antologia do Conto Cearense esteve presente com “Os Demônios”, editado pela primeira vez em 1959, na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras.

Francisco Carvalho estuda a obra de Braga em “A Inquieta Modernidade de Braga Montenegro”, incluído na 2a. edição de Uma Chama ao Vento e em Exercícios de Literatura. E elucida: “um dos aspectos a destacar em Braga Montenegro é o permanente sentido de universalidade que caracteriza os seus trabalhos de ficção. Universalidade nascida da convicção de que o homem é tudo o que importa. Não o têm seduzido, por isso mesmo, os regionalismos tipificadores, com o seu conhecido cortejo de deformações. Muito embora as raízes espirituais do ficcionista mergulhem fundo nas fontes da literatura europeia, importa assinalar que isso em nada lhe compromete a originalidade, nem lhe desfigura as matrizes do impulso criador. Não menos digna de nota é a verticalidade com que o ficcionista engendra situações no contexto das suas narrativas e com que tece a teia do acaso em que se envolvem os seus personagens. Em nenhuma das novelas e contos do presente volume a atmosfera ficcional vem a ser comprometida pelo simples devaneio formal ou pelo discurso literário inconsequente”. Ao se referir às histórias curtas, o crítico vê nelas “peças de extraordinária expressividade e de considerável beleza literária. A austera poesia dessas páginas como que nos fere a sensibilidade com a sua pungência avassaladora. ‘Os Demônios’, ‘O Hóspede’, ‘O Potrinho Pampa’, ‘Agonia’ e ‘Ansiedade’ são, inquestionavelmente, documentos que se impõem pela autenticidade e grande beleza literária com que foram realizados”. Destaca também “O Tesouro”.

Os dramas em Braga Montenegro são dos mais variados matizes, sempre relacionados aos “conflitos da alma humana”, como afirma Francisco Carvalho, em “A Inquieta Modernidade de Braga Montenegro”, apresentação da 2a edição de Uma Chama ao Vento. No conto “Uma chama ao vento” se distingue com clareza um conflito amoroso. Tudo gira em torno de três personagens: o narrador, Gertrudes e Maria Luísa. O protagonista ama a prima Gertrudes, desde quando esta tinha apenas treze anos. No entanto, casa-se com Maria Luíza, de quem se separa mais tarde. E este é o núcleo básico do conto. Em “A mulher de Putifar” também se pode ver a psicologia do amor no desenrolar da trama.

Em “O vento, o desejo e o rio”, classificado como novela, reaparece o drama amoroso, embora apenas na cabeça do protagonista, o imediato do navio onde o conflito se desenrola. Na verdade a trama não se realiza em relação aos demais personagens. Pode-se dizer até que o embate amoroso é secundário. O episódio central seria a tempestade: o vento e o rio do título. A narrativa é dividida em diversas ações e todas elas compostas de narrações e falas. Na primeira se veem a cabina do comandante, a proa, o convés, os balaústres da amurada, a casa de leme, etc. No primeiro bloco (“passados momentos”) o comandante aparece à frente da ação, como se fosse o protagonista. Segue-se breve descrição da paisagem amazônica e logo se narram ações dos seres do rio, da natureza e dos homens: “uma piraíba saltou”, “o sol coloria de rubro”, “se abria em leque”, “sacudindo as canaranas”, “reboando nas ravinas”, “inundando as praias”. Sucedem-se diversas pequenas ações com algumas falas e diálogos. Surge a personagem que irá impressionar o protagonista, madame Muñoz. O início da tempestade se dá na segunda metade da narrativa. As falas demonstram nervosismo dos personagens mais para o final da história, quando a ventania “desatava-se aos borbotões”, (…) “uma vaga imensa assomou pela proa” (…), “o navio embicou” (…), “sacudindo todo”. E a novela chega ao final sem desfecho.

O ponto de vista de primeira pessoa, sempre protagonista, nos contos de Braga Montenegro, está presente em “Uma chama ao vento”. O narrador não se nomeia e ao longo na narração ora faz evocações, ora se volta para o presente. Nas evocações se serve de verbos como “evoco”, “recordo”, “rememoro”, “lembro-me”. Esse passado é o do cabriolé, do engenho de açúcar, dos bondes, dos cafés da Praça do Ferreira, da coluna da hora.

As falas em Braga Montenegro já não trazem os tradicionais: “disse”, “perguntou”, “respondeu”, embora ainda apresente travessões. Em algumas falas há explicações, em continuação à narração: “respondeu com voz trêmula”, “E num esforço, corando da minha fraqueza, acrescentei:”, como se pode ver em “Uma chama ao vento”.

Em “A mulher de Putifar” o ponto de vista é onisciente. O narrador é também onipresente. Os diálogos são curtos, seguidos de narrações mais longas. As falas são literárias, distantes da linguagem oral: “– Advirto-o, não obstante, de que o momento não está para filosofia.” Segundo Francisco Carvalho, “algumas vezes, a estruturação dos diálogos” assume “configurações despropositadamente eruditas”. No entanto, isto releva “um autor extremamente preocupado em preservar a autenticidade e a autonomia psicológica de seus personagens.”

Em “Agonia”, também na terceira pessoa, Braga se vale exclusivamente da narração, com uma ou outra descrição. Cartas dos personagens aparecem em algumas histórias. A narração de um delírio do personagem, no final, é primorosa. Um homem solitário e seu desespero – eis a trama. O desfecho é trágico. Em “Do limiar às fronteiras”, como no primeiro conto, o narrador é o protagonista. Isaías narra pensando, rememorando. Espécie de confissão: “hoje estou só e doente” (…), “não tenho ainda quarenta anos e estou velho”).

O uso do flashback, muitas vezes em monólogo interior, é frequente em Braga, como em “Do limiar às fronteiras” e “O carneirinho de feltro”. A trama da primeira se desenvolve no sertão, numa fazenda, embora nada de sertanejo (linguagem, descrição de ambiente) seja visível. O narrador Isaías ora se volta para o presente, ora para o passado. Para este muito mais. São poucos os momentos em que o narrador se refere ao presente: “estendido na rede armada, no alpendre da fazenda, lanço o olhar pelo pátio” (…), “no oitão, o curral derrama-se pela encosta” (…). O narrador constantemente volta ao passado e só no final regressa ao presente, para o arremate: “vou-me deixando ficar por aqui mesmo”.

As narrativas de Braga Montenegro se localizam ora em Fortaleza, ora no sertão, ora na Amazônia (“O vento, o desejo e o rio”). As cinco novelas de As Viagens apresentam situações relativas àquela região. No primeiro conto a capital do Ceará do início do século XX é o palco maior do embate: “na Praça do Ferreira, um ou outro grupo palestravam nos cafés e, nos bancos dos passeios, boêmios cochilavam. Cotejei o meu relógio com a coluna da hora.” É o tempo dos bondes: “os últimos bondes passavam vazios e apressados”.

As ações dramáticas nas narrativas de Braga se imbricam, embora separadas às vezes por dias. Em “Um conto por cem mil réis” o embate se desenrola em três dias. As ações são narradas com lentidão. Alberto Seixas lia um romance, sentado ao pé da janela: “Há pouco e pouco ia-se tornando escuro”. O narrador amplia o foco de visão: “parou um ônibus na esquina”. Narra o movimento de pessoas na rua, volta-se para a casa onde o conflito se desenrola: no jardim, Venância, a empregada, aguava as roseiras. Mais adiante um diálogo. Motivo: sumiço de cem mil réis. Só então aparece o personagem principal, o menino Paulino. A última ação do sábado é o jantar. Outro bloco de ações se dá no domingo, com mais narrações e diálogos. O drama central toma corpo: Rosinha, a dona da casa, chama Venância para um interrogatório.  No último bloco, na segunda-feira, com o aprisionamento da empregada, o conflito chega ao final, com a confissão do furto praticado pelo garoto.

As histórias de Braga são longas, se comparadas às de outros contistas modernos. Uma de suas características é a ação narrada em seus mínimos detalhes e o diálogo entre uma narração e outra. No mais das vezes seus contos se aproximam da novela. A mais longa narrativa do livro, com 28 páginas, é “O carneirinho de feltro”. Dividido em quatro partes, se inclui no rol das histórias voltadas para os dramas familiares ou domésticos. São apenas três personagens: Manuel, Júlia e o filho pequeno. Como nas demais narrativas, às narrações seguem-se diálogos e às vezes monólogos ou solilóquios. Fortaleza, mais uma vez é o palco maior do conflito, ao tempo do bonde. O narrador se queixa: “cidade tão pequena”. Diferentemente dos outros contos, em “O carneirinho de feltro” há o final feliz, a reconciliação do casal.

Descrições também se veem com frequência na obra de Braga, como quando Manuel se posta diante do casarão do padrinho rico: “duas amplas varandas com soleiras e boiais de mármore; as platibandas altíssimas, encimadas por uma ordem de balaústres vulgares, sob a cornija moldada em alvenaria”. A descrição faz com que o leitor perceba muito mais a angústia do personagem, tão pobre, tão frágil diante de tanta riqueza.

“Suspeita” é um dos menores contos do livro: João Vieira e a esposa moribunda no primeiro ato. No segundo ato, o velório e o enterro. O terceiro ato se dá sete dias depois. No quarto ato o protagonista, só no quarto, se deixa conduzir por solilóquios. No quinto ato, o personagem, agitado, “abalroou com um sujeito de óculos”. Sucede-se diálogo de insultos. O protagonista volta para o quarto, vasculha as gavetas e encontra um diário escrito por sua mulher. Trechos são transcritos na narrativa. O desfecho é enigmático: João Vieira rasga e queima as folhas do diário. E se retira para a rua. Teria a mulher se relacionado com outro homem? É a “suspeita” do título.

Pelas epígrafes dos contos e novelas, quase todas no original, extraídas de Goethe, James Joyce, Stendhal, Aldous Huxley, Dante, Pirandello, Machado de Assis, livros bíblicos, se pode avaliar o conhecimento literário de Braga Montenegro, que exerceu com mestria a análise crítica de escritores importantes, em obras como Correio Retardado. Essa bagagem terá propiciado a ele a elaboração de narrativas com a preocupação do novo, do essencial, do mais importante no conto e na novela.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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