Herman de Castro Lima (Fortaleza, 1897 - Rio de janeiro, 1981) trabalhou como auxiliar da estrada de rodagem de Aracati a Morada Nova. De volta à capital do Estado, foi escriturário da Delegacia Fiscal, transferindo-se, em 1922, para repartição congênere em Salvador, Bahia, onde se diplomaria em Medicina. De 1933 a 37 foi auxiliar da Presidência da República, indo depois para a Delegacia do Tesouro em Londres. Autor de livro fundamental intitulado Variações sobre o conto (1952), publicou nesse gênero dois livros, Tigipió (1924) e A Mãe-da-Água (1928).
Depois de Gustavo Barroso, o nome mais importante da história curta cearense no início do século XX é o de Herman Lima, que se teria iniciado na elaboração desse tipo de prosa “por influência” da ficção do primeiro, na opinião de Sânzio de Azevedo, que o chama de “mestre incontestável, na teoria e na prática, autor que seria de contos e livros sobre a técnica do conto”. Noticia Sânzio que a partir da terceira edição (1932) o primeiro livro sofreu alterações: teve incluídos o inédito “O Arrieiro” e três peças do segundo livro (“Os Caboclos”, “As Mulheres” e “A Mãe-dágua”). Na mesma nota, no final do livro, Herman Lima esclarece que não pretende “reeditar esse último, por ser um livro sem homogeneidade, composto de contos e crônicas”. O contista publicou também o romance Garimpos e obras de pesquisa, Rui e a Caricatura e História da Caricatura no Brasil, tido como sua principal obra e com a qual se tornou o maior conhecedor do assunto no país. Tornou-se, ainda, um dos grandes teóricos da história curta e escreveu Variações Sobre o Conto, com que mereceu os melhores elogios.
No mesmo ano de sua publicação, Tigipió recebeu prêmio da Academia Brasileira de Letras, apesar de impresso na Bahia e às expensas do autor. Quase todos os críticos brasileiros de então teceram grandes loas a Tigipió. Humberto de Campos escreveu: “O Sr. Herman Lima não é, entretanto, apenas um admirável fixador das coisas do sertão de que é filho. As suas qualidades de marinhista são, igualmente, consideráveis”. Carlos Drummond de Andrade também se rendeu aos encantos dos livros de Herman: “Há em Tigipió, como em Garimpos, uma identificação com a terra, uma visão amorosa e fiel de paisagens e seres, um sentido dramático das situações que tornam admiráveis muitos de seus contos e cenas do romance”. A composição de Herman estudada por F. S. Nascimento intitula-se “O Arrieiro” e, curiosamente, teve como primeiro título “O Camarada”, traduzido para o francês como “Le Muletier”, em 1935. Na lição de Nascimento, “aliando o senso de observação ao jogo impressionista das cores tropicais, Herman Lima se firmaria como um extraordinário paisagista, retratando com absoluta fidelidade as praias e os sertões do Ceará.”
Sânzio ensina: “narrativas como ‘Tigipió’, ‘Alma Bárbara’, ‘Os Sertanejos’, ‘O Arrieiro’, ‘Ventura Alheia’ e outros garantem a Herman Lima lugar do maior destaque no panorama do conto cearense, ele que na verdade já figura no panorama do conto brasileiro”. Em “Relendo Herman Lima”, de Dez Ensaios, o citado estudioso assegura: “Alguns contos de Tigipió são páginas soberbas, dignas de qualquer antologia do gênero: seja no clima fantástico de ‘Sereias’, no anedótico de ‘As Guabirabas’, ou no trágico de ‘Alma Bárbara’; em todas as narrativas sentimos o pulso do verdadeiro ficcionista”.
Nas 14 narrativas de Tigipió o leitor encontra um narrador voltado para a geografia que vai do litoral ao sertão cearense. Os dramas se desenrolam quase sempre em lugares abertos, amplos, devastados por secas. Aqui e ali aparece uma sala, um quarto. No mais das vezes, o leitor se vê diante de imensos espaços rurais, estradas, caminhos e praias. Os personagens são sertanejos endurecidos pela vida áspera, mulheres lindas, sensuais, sedutoras, pescadores igualmente embrutecidos. Vivem intrigas violentas, envoltas em amores frustrados, mistérios, vinganças, loucuras, traições, que terminam em tragédias pessoais ou familiares.
No entanto, a linguagem das narrativas é pomposa, recheada de vocábulos em desuso, mesmo na literatura escrita do século XX. Alguns não se encontram em dicionários: “Bandos de urubus, de vinte a trinta, frufrulejam (grifo nosso) as asas” (...). É até possível imaginar-se Herman Lima jovem diante dos livros de Coelho Neto, atento, maravilhado, a anotar esta e aquela frase: “O rancho negro desenvolveu-se em hemiciclo com os músicos ao centro zangarreando, as mulheres aos guinchos” (Coelho Neto, Rei Negro, p. 110, apud Novo Dicionário Aurélio). “E, aos primeiros compassos de um baião fogoso e estonteador zangarreado pelo vaqueiro” (...) (Herman Lima, “Sereias”). Entretanto, numa história em primeira pessoa, “Coração”, cujo narrador é um caboclo, João, a linguagem é naturalmente simples. O uso de vocábulos como “sufragante”, “maginando”, pass’os (pássaros) e relamp’os (relâmpagos) não tornam ininteligível a leitura.
Permeiam as narrações, quase sempre espichadas, longos períodos de descrições de ambientes e aspectos físicos de personagens. Assim, muitas vezes os personagens desaparecem para dar lugar ao ambiente, isto é, o leitor se vê diante de largos murais, pinturas do espaço onde vivem os personagens.
No conto “Tigipió”, o mais longo do livro, há referências a diversas cidades e localidades do Ceará, em tempo de seca, “uma só terra devastada e morta, savanas nuas, ermos escalvos”. Os personagens principais são o velho Cesário, sua filha Matilde e Heitor. Viviam os dois primeiros do “fabrico de chapéus de palha”, numa casinha de “tacaniça sem reboco”, no sertão, proximidades do Rio Jaguaribe. O cenário sertanejo reaparece em “Choça Vazia”, embora a narrativa se aproxime mais do gênero crônica: “À margem da estrada, entre a mata reinante, fica, num claro, vazia e silente, uma choça antiga.” Em “Ventura Alheia” vê-se um “tabuleiro ermo”, onde os personagens “viviam do cultivo das terras, lindas vazantes que se estendiam ao fundo das casas, à beira do riacho de Russas.” Um dos contos mais famosos de Herman Lima é “O Arrieiro”. O narrador, o engenheiro Norberto Sales, conta uma história vivida durante a seca de 1919, entre Aracati e Quixadá. Narra uma viagem do sertão a Fortaleza, assim como a volta. “Léguas e léguas sem fim,” (...) “o calor da fogueira universal esbraseando a paisagem de redor, o horizonte refervendo, e o céu e a terra, tudo envolto no mesmo turbilhão de labaredas invisíveis.” Como o título indica, em “Sertanejos” o drama se desenvolve também no sertão: a “várzea larga”, a “mata quieta”, estradas, veredas, cavalos, cangaceiros. No sertão de Quixeramobim vivia Juventina, de “Coração”. Que termina seus dias em Fortaleza, a mendigar. O início de “Os Caboclos” é uma descrição longa de um pedaço do sertão: várzeas imensas, cortadas de carnaubais. A última história do livro, “A Mãe-d’água”, quase tão longa quanto a primeira, encerra esse ciclo sertanejo. Hugo, o protagonista, viaja de Fortaleza para Aracati e, em seguida, para o sertão, nas proximidades de Limoeiro, para viver uma história de amor.
O espaço praiano e marinho do Ceará está presente nos demais contos de Tigipió. O primeiro deles é “Sereias”, como não poderia deixar de ser. O drama se inicia na praia de Meireles, em Fortaleza. O pescador Bento Caiçara vai ao mar, para pescar. Termina diante de sereias: “O pobre alçou-se em desvario, bracejou, ofegante, exausto, os membros chumbados, impotentes, os ouvidos zoando, ele todo numa luta surda e titânica, a reagir contra o assombro.” Em “Alma Bárbara” o drama se inicia num lugarejo praiano, próximo à cidade de Aracati, num “lagamar confronte”, e termina no mar. Em outra ação, no rio Salgado. Em “As Guabirabas” veem-se dunas, coqueirais, a praia e “ondas abrindo mansamente, em leque, esfroladas de espumas, morros alvíssimos, onde passavam pescadores, mais ao fim o farol” (...). Fortaleza reaparece em “As Mulheres”. O velho Rufino, lenhador e camaroeiro, vivia “à margem do rio Cocó”. Em “Gata Borralheira” a protagonista Genoveva vivia com uma tia viúva e suas duas filhas, sempre a correr a praia, “sozinha, à cata de mariscos”. Mais tarde, já mocinha, enamorou-se de um desconhecido, com quem se encontrava “sob as árvores”, “entre os cajueiros”. Mais adiante se dá o afogamento do namorado. A moça enlouquece: “Quando era noite de lua, a louquinha abalava para a praia, e ficava sobre um penedo rasteiro às vagas, atenta ao marulhar constante da onda.” E finalmente, ao “avistar” o iate branco do seu príncipe, nada em busca dele. “A onda erguia-a, repuxava-a, trepava-lhe pelos ombros.” No desfecho, a moça “ainda pôde jogar-lhe um beijo, antes de afundar.” Outra tragédia marinha se mostra em “Ressaca”. O velho pescador Manuel Lucas vivia, com a filha Rosa, “num casebre abandonado, além de Mucuripe, quase ao pé do farol.” Certo dia, ao voltar para casa, não encontra a moça. Desesperado, sai em busca da filha, pela praia. “Mas, de repente, um vagalhão estupendo, alto e negro como a muralha de um forte, ergueu-se-lhe em frente, a poucos passos.” E dá-se a tragédia.
Os personagens dos contos de Herman Lima são sertanejos embrutecidos pela seca e pela violência, pescadores afeitos à solidão do mar, às vezes aventureiros fora de seu habitat. As personagens são mulheres lindas, voltadas exclusivamente para o amor. O sertanejo Cesário, de “Tigipió”, se vinga da vida, ao provocar a própria morte, assim como a da filha e seu namorado Heitor. Matilde, a filha de Cesário, era “uma cabocla linda e viva, de tentadores encantos”. O desfecho de “Alma Bárbara” é outra tragédia. Pedro e o irmão da “mulatinha” que o primeiro tentara possuir num rio se matam, a golpes de faca. Ritinha, da mesma narrativa, “era mesmo um mimozinho deveras”. A outra, a mulatinha, apresentava um “corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato”. O engenheiro de “O Arrieiro” não é um sertanejo e vive momentos de angústia, ao se imaginar refém de perigoso assassino, Mariano, “feitor lombrosiano”. Viúvo, Rufino, de “As mulheres”, propõe casamento a Joana. Casados, conhece a mulher outro homem, João Vicente, o “paroara”. Inicia-se, então, a trama propriamente dita. Após uma briga, Vicente decide eliminar o rival e o mata. A mulher, no entanto, foge de casa só. Genoveva, de “Gata Borralheira”, ao se fazer púbere, é “trigueirinha e linda a valer”. Justino, de “Sertanejos”, é vingativo. Quando “rapazelho tímido”, a serviço do tio Zé Balaio, sofre deste duro castigo, ao “permitir” que uma égua se alarmasse “frente a um garrancho negro” e disso resultasse um rasgão num saco de farinha. Feito homem, se transforma em bandoleiro e ataca a tropa do tio. Juventina, de “Coração”, é pintada como a mais linda das mulheres: “Os olhos dela brilhavam, que nem duas estrelas Papaceia”. (...) “Os beiços eram duas fatias da fruta do mandacaru. E o colo – ah! Peitinho da minha paixão! – era empinado que nem peito de nambu, e macio como travesseiro de pêlo de croatá.”
O apreço pelos naturalistas se pode perceber numa referência a Aluísio Azevedo no conto “Tigipió”. Como eles, Herman Lima também cultua a descrição de traços fisionômicos, físicos e psicológicos dos personagens. Justino, de “Ventura Alheia”, “era um caboclo airoso e vivo, muito fornido de corpo, de cara bonita e franca, de uma alegria sem par.” Damião, “pequenino, raquítico, o tronco abaulado, os ombros para cima, só tinha em proporção a cabeça, uma cabeçorra horrível, de olhos esbugalhados, vítreos e mansos, como olhos de peixe ou de sapo.” A beleza física estaria relacionada à beleza espiritual, assim como a feiúra corporal à deformação do caráter, da personalidade. Mariano, de “O Arrieiro”, tem “cara fosca e modos torvos, olhos injetados, trunfa caída sobre a testa, a dentuça vasta à mostra no prognatismo feroz, o corpanzil ereto e longo, com a musculatura enxuta do mestiço do Norte” (...).
Herman Lima não é apenas um dos melhores contistas cearenses do início do século XX. É também um dos mais autênticos narradores/descritores da paisagem e do homem cearenses.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Depois de Gustavo Barroso, o nome mais importante da história curta cearense no início do século XX é o de Herman Lima, que se teria iniciado na elaboração desse tipo de prosa “por influência” da ficção do primeiro, na opinião de Sânzio de Azevedo, que o chama de “mestre incontestável, na teoria e na prática, autor que seria de contos e livros sobre a técnica do conto”. Noticia Sânzio que a partir da terceira edição (1932) o primeiro livro sofreu alterações: teve incluídos o inédito “O Arrieiro” e três peças do segundo livro (“Os Caboclos”, “As Mulheres” e “A Mãe-dágua”). Na mesma nota, no final do livro, Herman Lima esclarece que não pretende “reeditar esse último, por ser um livro sem homogeneidade, composto de contos e crônicas”. O contista publicou também o romance Garimpos e obras de pesquisa, Rui e a Caricatura e História da Caricatura no Brasil, tido como sua principal obra e com a qual se tornou o maior conhecedor do assunto no país. Tornou-se, ainda, um dos grandes teóricos da história curta e escreveu Variações Sobre o Conto, com que mereceu os melhores elogios.
No mesmo ano de sua publicação, Tigipió recebeu prêmio da Academia Brasileira de Letras, apesar de impresso na Bahia e às expensas do autor. Quase todos os críticos brasileiros de então teceram grandes loas a Tigipió. Humberto de Campos escreveu: “O Sr. Herman Lima não é, entretanto, apenas um admirável fixador das coisas do sertão de que é filho. As suas qualidades de marinhista são, igualmente, consideráveis”. Carlos Drummond de Andrade também se rendeu aos encantos dos livros de Herman: “Há em Tigipió, como em Garimpos, uma identificação com a terra, uma visão amorosa e fiel de paisagens e seres, um sentido dramático das situações que tornam admiráveis muitos de seus contos e cenas do romance”. A composição de Herman estudada por F. S. Nascimento intitula-se “O Arrieiro” e, curiosamente, teve como primeiro título “O Camarada”, traduzido para o francês como “Le Muletier”, em 1935. Na lição de Nascimento, “aliando o senso de observação ao jogo impressionista das cores tropicais, Herman Lima se firmaria como um extraordinário paisagista, retratando com absoluta fidelidade as praias e os sertões do Ceará.”
Sânzio ensina: “narrativas como ‘Tigipió’, ‘Alma Bárbara’, ‘Os Sertanejos’, ‘O Arrieiro’, ‘Ventura Alheia’ e outros garantem a Herman Lima lugar do maior destaque no panorama do conto cearense, ele que na verdade já figura no panorama do conto brasileiro”. Em “Relendo Herman Lima”, de Dez Ensaios, o citado estudioso assegura: “Alguns contos de Tigipió são páginas soberbas, dignas de qualquer antologia do gênero: seja no clima fantástico de ‘Sereias’, no anedótico de ‘As Guabirabas’, ou no trágico de ‘Alma Bárbara’; em todas as narrativas sentimos o pulso do verdadeiro ficcionista”.
Nas 14 narrativas de Tigipió o leitor encontra um narrador voltado para a geografia que vai do litoral ao sertão cearense. Os dramas se desenrolam quase sempre em lugares abertos, amplos, devastados por secas. Aqui e ali aparece uma sala, um quarto. No mais das vezes, o leitor se vê diante de imensos espaços rurais, estradas, caminhos e praias. Os personagens são sertanejos endurecidos pela vida áspera, mulheres lindas, sensuais, sedutoras, pescadores igualmente embrutecidos. Vivem intrigas violentas, envoltas em amores frustrados, mistérios, vinganças, loucuras, traições, que terminam em tragédias pessoais ou familiares.
No entanto, a linguagem das narrativas é pomposa, recheada de vocábulos em desuso, mesmo na literatura escrita do século XX. Alguns não se encontram em dicionários: “Bandos de urubus, de vinte a trinta, frufrulejam (grifo nosso) as asas” (...). É até possível imaginar-se Herman Lima jovem diante dos livros de Coelho Neto, atento, maravilhado, a anotar esta e aquela frase: “O rancho negro desenvolveu-se em hemiciclo com os músicos ao centro zangarreando, as mulheres aos guinchos” (Coelho Neto, Rei Negro, p. 110, apud Novo Dicionário Aurélio). “E, aos primeiros compassos de um baião fogoso e estonteador zangarreado pelo vaqueiro” (...) (Herman Lima, “Sereias”). Entretanto, numa história em primeira pessoa, “Coração”, cujo narrador é um caboclo, João, a linguagem é naturalmente simples. O uso de vocábulos como “sufragante”, “maginando”, pass’os (pássaros) e relamp’os (relâmpagos) não tornam ininteligível a leitura.
Permeiam as narrações, quase sempre espichadas, longos períodos de descrições de ambientes e aspectos físicos de personagens. Assim, muitas vezes os personagens desaparecem para dar lugar ao ambiente, isto é, o leitor se vê diante de largos murais, pinturas do espaço onde vivem os personagens.
No conto “Tigipió”, o mais longo do livro, há referências a diversas cidades e localidades do Ceará, em tempo de seca, “uma só terra devastada e morta, savanas nuas, ermos escalvos”. Os personagens principais são o velho Cesário, sua filha Matilde e Heitor. Viviam os dois primeiros do “fabrico de chapéus de palha”, numa casinha de “tacaniça sem reboco”, no sertão, proximidades do Rio Jaguaribe. O cenário sertanejo reaparece em “Choça Vazia”, embora a narrativa se aproxime mais do gênero crônica: “À margem da estrada, entre a mata reinante, fica, num claro, vazia e silente, uma choça antiga.” Em “Ventura Alheia” vê-se um “tabuleiro ermo”, onde os personagens “viviam do cultivo das terras, lindas vazantes que se estendiam ao fundo das casas, à beira do riacho de Russas.” Um dos contos mais famosos de Herman Lima é “O Arrieiro”. O narrador, o engenheiro Norberto Sales, conta uma história vivida durante a seca de 1919, entre Aracati e Quixadá. Narra uma viagem do sertão a Fortaleza, assim como a volta. “Léguas e léguas sem fim,” (...) “o calor da fogueira universal esbraseando a paisagem de redor, o horizonte refervendo, e o céu e a terra, tudo envolto no mesmo turbilhão de labaredas invisíveis.” Como o título indica, em “Sertanejos” o drama se desenvolve também no sertão: a “várzea larga”, a “mata quieta”, estradas, veredas, cavalos, cangaceiros. No sertão de Quixeramobim vivia Juventina, de “Coração”. Que termina seus dias em Fortaleza, a mendigar. O início de “Os Caboclos” é uma descrição longa de um pedaço do sertão: várzeas imensas, cortadas de carnaubais. A última história do livro, “A Mãe-d’água”, quase tão longa quanto a primeira, encerra esse ciclo sertanejo. Hugo, o protagonista, viaja de Fortaleza para Aracati e, em seguida, para o sertão, nas proximidades de Limoeiro, para viver uma história de amor.
O espaço praiano e marinho do Ceará está presente nos demais contos de Tigipió. O primeiro deles é “Sereias”, como não poderia deixar de ser. O drama se inicia na praia de Meireles, em Fortaleza. O pescador Bento Caiçara vai ao mar, para pescar. Termina diante de sereias: “O pobre alçou-se em desvario, bracejou, ofegante, exausto, os membros chumbados, impotentes, os ouvidos zoando, ele todo numa luta surda e titânica, a reagir contra o assombro.” Em “Alma Bárbara” o drama se inicia num lugarejo praiano, próximo à cidade de Aracati, num “lagamar confronte”, e termina no mar. Em outra ação, no rio Salgado. Em “As Guabirabas” veem-se dunas, coqueirais, a praia e “ondas abrindo mansamente, em leque, esfroladas de espumas, morros alvíssimos, onde passavam pescadores, mais ao fim o farol” (...). Fortaleza reaparece em “As Mulheres”. O velho Rufino, lenhador e camaroeiro, vivia “à margem do rio Cocó”. Em “Gata Borralheira” a protagonista Genoveva vivia com uma tia viúva e suas duas filhas, sempre a correr a praia, “sozinha, à cata de mariscos”. Mais tarde, já mocinha, enamorou-se de um desconhecido, com quem se encontrava “sob as árvores”, “entre os cajueiros”. Mais adiante se dá o afogamento do namorado. A moça enlouquece: “Quando era noite de lua, a louquinha abalava para a praia, e ficava sobre um penedo rasteiro às vagas, atenta ao marulhar constante da onda.” E finalmente, ao “avistar” o iate branco do seu príncipe, nada em busca dele. “A onda erguia-a, repuxava-a, trepava-lhe pelos ombros.” No desfecho, a moça “ainda pôde jogar-lhe um beijo, antes de afundar.” Outra tragédia marinha se mostra em “Ressaca”. O velho pescador Manuel Lucas vivia, com a filha Rosa, “num casebre abandonado, além de Mucuripe, quase ao pé do farol.” Certo dia, ao voltar para casa, não encontra a moça. Desesperado, sai em busca da filha, pela praia. “Mas, de repente, um vagalhão estupendo, alto e negro como a muralha de um forte, ergueu-se-lhe em frente, a poucos passos.” E dá-se a tragédia.
Os personagens dos contos de Herman Lima são sertanejos embrutecidos pela seca e pela violência, pescadores afeitos à solidão do mar, às vezes aventureiros fora de seu habitat. As personagens são mulheres lindas, voltadas exclusivamente para o amor. O sertanejo Cesário, de “Tigipió”, se vinga da vida, ao provocar a própria morte, assim como a da filha e seu namorado Heitor. Matilde, a filha de Cesário, era “uma cabocla linda e viva, de tentadores encantos”. O desfecho de “Alma Bárbara” é outra tragédia. Pedro e o irmão da “mulatinha” que o primeiro tentara possuir num rio se matam, a golpes de faca. Ritinha, da mesma narrativa, “era mesmo um mimozinho deveras”. A outra, a mulatinha, apresentava um “corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato”. O engenheiro de “O Arrieiro” não é um sertanejo e vive momentos de angústia, ao se imaginar refém de perigoso assassino, Mariano, “feitor lombrosiano”. Viúvo, Rufino, de “As mulheres”, propõe casamento a Joana. Casados, conhece a mulher outro homem, João Vicente, o “paroara”. Inicia-se, então, a trama propriamente dita. Após uma briga, Vicente decide eliminar o rival e o mata. A mulher, no entanto, foge de casa só. Genoveva, de “Gata Borralheira”, ao se fazer púbere, é “trigueirinha e linda a valer”. Justino, de “Sertanejos”, é vingativo. Quando “rapazelho tímido”, a serviço do tio Zé Balaio, sofre deste duro castigo, ao “permitir” que uma égua se alarmasse “frente a um garrancho negro” e disso resultasse um rasgão num saco de farinha. Feito homem, se transforma em bandoleiro e ataca a tropa do tio. Juventina, de “Coração”, é pintada como a mais linda das mulheres: “Os olhos dela brilhavam, que nem duas estrelas Papaceia”. (...) “Os beiços eram duas fatias da fruta do mandacaru. E o colo – ah! Peitinho da minha paixão! – era empinado que nem peito de nambu, e macio como travesseiro de pêlo de croatá.”
O apreço pelos naturalistas se pode perceber numa referência a Aluísio Azevedo no conto “Tigipió”. Como eles, Herman Lima também cultua a descrição de traços fisionômicos, físicos e psicológicos dos personagens. Justino, de “Ventura Alheia”, “era um caboclo airoso e vivo, muito fornido de corpo, de cara bonita e franca, de uma alegria sem par.” Damião, “pequenino, raquítico, o tronco abaulado, os ombros para cima, só tinha em proporção a cabeça, uma cabeçorra horrível, de olhos esbugalhados, vítreos e mansos, como olhos de peixe ou de sapo.” A beleza física estaria relacionada à beleza espiritual, assim como a feiúra corporal à deformação do caráter, da personalidade. Mariano, de “O Arrieiro”, tem “cara fosca e modos torvos, olhos injetados, trunfa caída sobre a testa, a dentuça vasta à mostra no prognatismo feroz, o corpanzil ereto e longo, com a musculatura enxuta do mestiço do Norte” (...).
Herman Lima não é apenas um dos melhores contistas cearenses do início do século XX. É também um dos mais autênticos narradores/descritores da paisagem e do homem cearenses.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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