domingo, 24 de novembro de 2013

Nilto Maciel (O Livro Infinito)

MENSAGEM

            Como costumava fazer durante as manhãs de sábado, Antônio Sollos, em pé, folheava livros desde cedo, numa livraria. Nada de praias, bares, visitas a parentes. Buscava novidades e antiguidades. O novo contista, o romancista esquecido, o escritor de sua predileção. Agarrou com unhas e dentes um volume de contos de Kafka. Queria conhecer “Durante a Construção da Grande Muralha da China”. Cheirou o livro, como se fosse um charuto, admirou a capa e se pôs a ler um trecho: “O imperador – assim consta – enviou-te, a ti, a ti que estás só, tu, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a ti o imperador enviou do leito de morte uma mensagem.” Desde a chegada, não via freguês. Apenas vendedores. Alguma novidade? Muitas, muitas, Seu Sollos. Ouviu vozes de quem entrava na loja. Voltou ao livro: “Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto”. As vozes e o arrastar de pés calçados o fizeram levantar a vista. Não conseguiu distinguir de quem eram. Vozes de mulher e homem. Um casal, certamente. Gostou da voz dela. Até lhe lembrava uma voz doce de uns tempos passados. O som dos passos se aproximaram dele. Sondou os arredores. O casal só podia estar do outro lado da estante. Ergueu-se nas pontas dos pés. Viu uma testa robusta, corada, de homem, e uns fios de cabelos quase louros, lindos. Abaixou-se e, pela brecha da prateleira, viu uns lábios rubros que parecia sorrirem para ele. Descontrolado, largou o livro e se pôs a caminhar lentamente pelo estreito corredor. Ao fim dele, virou para a esquerda e parou. A dois ou três metros, avistou o homem de lado, mãos erguidas na direção da prateleira. Só podia ser o marido de Ana. A mulher ao lado dele seria, então, Ana. Não queria revê-la. E se voltou, para atravessar a sala pelo corredor perpendicular àquele em que o casal se achava. Saiu apressado, disposto a fugir. No entanto, antes de alcançar a porta, se viu frente a frente com Ana. Quis sorrir, olhou para os lados, cumprimentou-a com duas palavras, contemplou os olhos dela e saiu da loja.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem : Londres/1940 = http://menosumnaestante.com

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