quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Aparecido Raimundo de Souza (A Ceia dos Miseráveis)

Wagner chegou sorrateiramente na zona mais rica da cidade.

Entrou por uma estreita cheia de casas e ruelas. Antes de seguir em faminto, a fome descomedida de dormir cansado, e, de frente querendo comer, comprido espiou. Qualquer goela abaixo que colocasse porcaria à dentro, estancaria, o apetite aguçado e acalmaria, sobremaneira, o extenuado do corpo espírito. Mas não tinha uma calça nos fundos do PF, para entrar num bolso. Sequer um tostão com restaurante a bife a cavalo, para pedir um simples de arroz por mais acebolado que fosse. Ou na padaria, e pisar na seção do tamanho daquele lanche que,  constrangedor ao corredor, mandava pra dentro a fúria e contemplava a felicidade cheia do sujeito pleno. As noites (embora passasse da meia cara) estavam apinhadas de feias, com ruas de criaturas formando uma espécie de sorumbática, de rústico no quadro do pintor de favela, onde o azul, no invólucro oco do estranho, naufragava distante, num aquém de fronteiras sem moldura.

A hora atropelava, ou melhor, o relógio não existia, se fazia presente numa louca realidade como um compressor de rolo a trator esticando o asfalto novo. E as guloseimas, o estabelecimento, na parte da calçada, plantado de oposto a envidraçados pomposos e cheios de rebusques, bem ali, a sua, suspendia, à frente e agora, a barriga roncava os dentes e rangia nervosamente o estômago. Os olhos verdes da fome, esmaecidos pelo vazio negro de Wagner e, desmesuradamente silenciados pelos abertos, gritavam terror numa indecifrável de atitude imposta da mais pura das misérias. Na verdade, choravam pelos fustigados a cotovelos soltos, em vista das dores fortes e imensas e também por verem o malfadado vegetar, um rapaz de verme e asqueroso, de viver, enfim, num degradante Deus, como se não fosse reino filho da estonteante desolação.

Coitado do seco! Pobre Wagner! Magro, esfarrapado, esquelético, estruturalmente esfaimado e deprimido. Alma interrompida, submissa, mansa, vexada, desprezada e entupidas de diversas as mais maltrapilhas. Em quadro a parte, cicatrizes pela profusão salpicadas em epiderme. Pedaço infeliz sustentando em adversas, um punhado de hostis. Mesquinhas também de chagas incomuns, repletas de mazelas e incisões incuráveis. À sua dúzia, meia volta de rodas com cabeças pingadas, estendiam pouco caso disfarçados de meros transeuntes. Não contentes, faziam aparências de suas chacotas. Jogavam risos ao ar. Franqueavam os molares a abertas piadas, onde igualmente, bocas de menosprezos e lábios fartos de escárnios, vomitavam enxurradas de resquícios absurdos. Para a frieza da proporção aumentar o medonho, alguns viravam as máscaras pela vergonha, ocultando os avessos do acanhamento. E João simplório, ali no ir, sem ter para onde no meio, de modos bebia com ímpetos ninguém. Em paralelo, sonhava o resto dos lábios abatidos no refrigerante bem vestido e gelado, que escorria do preto de terno indivíduo. Em passo igual, devorava a fatia da moça que ensaiava levar um aspirador na ponta da pizza como um garfo maluco e descontrolado de modos igual mussarela. A boca sugava como Wagner, um self-service, ao passo que, no imenso esfaimado, com mil e  uma espalhadas, as mesas ensaiavam, ordenadamente postas, umas ao lado das outras, a transgressão impura do irreal jamais imaginado.

Todavia, passava ao Wagner, a valentia dos longes ousados.   A  coragem  destemida  dos  agás  maiúsculos, igualmente, fazia voar para longe o distante do homem. Faltava, na força da fera, o tigre dos decididos, para saltar como um sangue em busca da presa enjaulada. O destemor dos pés, para meter as portas num dos loucos de acesso ao enorme salão — ou das janelas que o arejavam e se servir a estômago vazio, abundantemente, até entulhar o entediar dos cantos do organismo. Sempre nesses trágicos de abatimentos, pingares de desânimo molhavam as roupas maltrapilhas, encabulava, vexava, constrangia Wagner, com inclinações para a extenuação e o esmorecimento degradante. Vinha a venturosos, a magnificência dos dias a mente em polvorosa. Recordava suntuosa a trechos de aventurança. Cidadão de pele ostentava nas posses de orgulhoso o respeitável empresário e senhor centena de um absoluto de bens materiais. Carros com mansões, piscinas do ano, apartamentos de mar a poucas quadras de cobertura. Mulheres movidas a pau e dinheiro a dar com frases bonitas. O tudo, no entanto, pertencia ao passado. Chorar sobre os sapatos seria regressar pisando no leite escorregadio e pegajoso por estarem nus e calejados de azedo. Um misto se toldou com fisionomia de frustração deteriorada o seu presente tão ontem, mas ele, vencido, soube conter a garganta que apertava de ímpetos intransigentes. Determinara a si não mais sofrer motivos fosse, ou se curvar, atabalhoado, a enterradas em severas e sofríveis pendências.

Todavia, o que tomar? Que atitude fazer? Meter os costados certeiros na frente de uma bala em movimento? Jogar a solidão de um trem diante de um prédio sem cabeça de vida? Pular de uma bacia no cume de frutos comestíveis, ou, por sobre uma árvore de água fervente? Bosta! Merda! Não deixava de ser a vontade, a falta de altivez, para escolher, animadora com um final louvável e decente. Naquela improvável, qualquer iminência pareceria tão real como subir de matéria plástica pingenteado num aviãozinho aos céus sem infinito. Enquanto melhor matutava o que seria saudável para sua mesquinha, Wagner se propôs a dar próprio de si cabo. Não propriamente ensaiar, mas a morrer aos poucos, a doses pequenas. Fugir de vez, deste cão mundo, dando uma ligeira espiada no outro lado, experimentando incertos postes, escorregando aqui e acolá, segurando nas voltas e dando carros em tropeções. Uma verdadeira selva de motores e sons de bestas pré-históricas resfolegavam festas como buzinas ensurdecedoras. Logo, entretanto, avistou uma encruzilhada adiante. Nesse encontro de surpresas, deparou artérias como a de uma betesga ao Deus dará. Sorriu com os dentes cheios de cara e os olhos de fome vazios pela boca podre. Caminhou para lá (esse assunto de depois ficaria para morrer) levando um transito medonho para driblar a eternidade nas costas. Ao galgar os músculos fronteiriços, o que enxergou fizeram as calçadas irrequietas por onde passou darem assombros de urros.

Detritos de mesas postas pelo chão espalhados, se perdiam em farturas, com alimentos ao léu, jogados ao mais diverso. A toalha de conforto, forrando o cimento, transmitia o regalo da doce sensação. Esparramados, a bel-prazer, guimbas de batons se confundiam com finais de cigarros sujos, deixados por carreiras partidas com alguém a passos ligeiros. Igualmente, garrafas de latas amassadas, cervejas de refrigerantes quentes com sobras consideráveis. Tudo ali. Ao alcance. Ao seu poder de sedução. Pães, pedaços de bolo, tortas e sanduíches variados. Muita pipoca. Também, taças de velas, champanhes acesas e charutos de cores diversificadas. O Altíssimo olhou para Wagner, compridamente, e deu graças ao escuro do firmamento numa prece fadaria pelo anã de topar com uma sorte de delícias tremendas largadas ao esburacados dos suas cáries, explodindo dentes aterradores. Um leque de alegrias lancinantes e de contentamentos desembrulhou-se num grito de aprazimento e agrados, enquanto o degustar lamuriante e febril suplicava o que mandar contrariado para a pança correndo. Finalmente, daria semana daquele cabo maldito (talvez mais) de abstinências as privações na mais completa horrenda. Necessitava, pois se aproximar ligeiro, se abeirar, tomar definitiva de tudo a posse, o que lhe caíra às mãos como uma debilitada e fartar o organismo em dádivas.

Por certo, em cada latinha, em cada prato, nascia sorrateira, a  esperança venturosa, ajudando, como a Fênix, o equilíbrio a manter das cinzas e fazer com que o saco mitológico continuasse fora do humano. Em face desse iluminado, Wagner, festim (sentia-se como um escolhido de Deus), penteou a camisa e empertigou os cabelos.

Alisou ligeiramente a calça rei igual um mocambeiro na sua rota trapagem de indigente.

Quem na azáfama ali o visse, diria que estariam reunidos num regozijo, os banquetes de todos os amigos. Os inseparáveis das farras peladas nos clubes da alta sociedade e das moçoilas e mocetonas de sábado, que juravam por um dólar furado fidelidades de mentira e amor com gosto de eterno. O fidalgo, só, estava, entretanto. Completamente ao arrepio do acaso. Seus nadas tomariam parte em parceiros. Somente a solidão pungente, a noite enfadonha, a lua circunspecta e o vento encerrado nas limitações de uma amenidade sufocante. De repente reunidos e perfilados, chegados, quem sabe de guetos e subterrâneos longínquos, centenas de personagens os mais aterradores brotavam de buracos horríveis disputando um lugarzinho. Gatos, cachorros, ratos, baratas, parasitas e lombrigas imundas formavam uma espantosa e evidente desigual família, mas uma prole digna de ser contemplada. Wagner sorriu para esses novos camaradas ao tempo que abria os braços como anfitrião de primeira linha.

— Sejam bem vindos. Fiquem à vontade!...

Sentou a tranquilidade perto de um velho tambor de delongas, e sem mais lixos serviu-se calado, meticuloso. Os camundongos o imitavam nos movimentos mais requintados. Os felídios, indiferentes, assustavam-se com os voos curtos dos ortópteros. Uma leve, inervante e ávida chuva de paciência, esperava, com pernilongos de mosquitos, a oportunidade de sugar os alheios daqueles braços de mendigo emplumado às coisas que aconteciam a sua volta. Vencido pelo destino, Wagner naquele transitório queria só o páreo de estancar, estancar, estancar. Comer, na verdade, a gula apertada e irritante que o definhava gradativamente, pouco a pouco, como doença incurável e maligna.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

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