terça-feira, 19 de novembro de 2013

Aíla Sampaio (A Leste da Morte, de Nilto Maciel: Veredas Diversas e Apurado Trabalho de Linguagem)

Quando se fala na ficção cearense contemporânea, o nome de Nilto Maciel desponta como um dos mais prodigiosos. Não à toa. Sua estreia, em 1974, com Itinerário (livro de contos) já marcou a chegada de um escritor maduro no cenário literário, cujas fronteiras alargaram-se com sua mudança para Brasília. Mesmo longe da terra natal, ele se manteve ligado às raízes, embora sua produção nada tenha de regionalista. Sua visão de mundo é sempre universal. Inquieto, ele exercitou outros gêneros, como o romance, a novela, a poesia e o ensaio, confirmando seu domínio das palavras. (...) Senhor das técnicas das narrativas curta ou longa, em todas as obras ele mostrou fôlego e talento, e afirmou-se como um dos mais produtivos ficcionistas brasileiros da nossa época.

(...) Às vezes leves, às vezes mais densas, suas histórias percorrem um universo temático bastante amplo. Seu processo criador, visivelmente consciente, foge do experimentalismo, mas não se enreda na tradição. As frases curtas e o discurso sutilmente fragmentado são visíveis em praticamente todos os contos, especialmente em “O livro infinito”, conto com vários blocos narrativos intercalados, nos quais um mesmo narrador, em discurso indireto, mostra o pensamento dos três personagens que formam o triângulo amoroso: dois escritores e uma moça apaixonada por livros. Eles vivem uma história sem fim, entre livros, visitas a livrarias e inúmeras indagações sobre os sentimentos e atitudes do outro.

Também a forma como tempo e espaço se delineiam em alguns enredos não é tradicional. Em “Trem fantasma”, por exemplo, os planos temporais e espaciais são bem escamoteados e o leitor que, no princípio, vê o maquinista tentando deter o trem, descobre o homem/menino só brincando... aparentemente tão simples, mas tão bem construído que o leitor se enreda na brincadeira. A confusão temporal e espacial também se dá em “Paisagem celeste”, cujo protagonista, um homem cansado da rotina adversa, foge para a serra e acorda em seu quarto. A realidade ficcional se funde à atmosfera onírica (pesada) que se revela no final.

O mundo alucinatório do homem contemporâneo se delineia em vários momentos. “A fila”, narrativa que ironiza o excesso de filas para todos os serviços procurados, traz à cena o atordoamento ante o tumulto que se forma quando para todos os lados que o personagem se volta encontra a impossibilidade de resolver o que pretende, inclusive de dialogar com as pessoas (que parecem estar concorrendo com ele). Em “Sombra não identificada”, o protagonista, perturbado com a avalanche de más notícias dadas pela TV, escuta o anúncio de sua própria morte. Já no enredo de “Restos de feijoada”, a morte do folião é a impossibilidade de aceitação dos limites: ele prefere morrer brincando na festa de carnaval a padecer doente entre os lençóis. A ironia está no vômito final: o expurgo do inaceitável é escatologicamente metaforizado na (indigesta) feijoada. E assim vão desfilando situações comuns, casos sobretudo urbanos (Fortaleza, Brasília, Palmas... o mundo) em que se sobressaem injustiça, pressa em arranjar culpados (“A Leste da morte”, “O último troiano”), malandragem (“O descanso do criador”, “Mundoca e Mundico”), crianças perdidas dentro de sua própria casa, sem a atenção dos pais (“O invisível Isaías”), loucura ("Aníbal e os livros”),  falta de memória do povo para reverenciar ‘heróis’ do passado (“Maneco, futebol e cerveja”), opressão (“Mancha na parede”), enfim, um universo de problemas banais transplantados do mundo real.

Há uma ironia velada na voz de cada narrador; em “Livre-Arbítrio”, ao associar-se a punição de um assassino aos ensinamentos bíblicos, são os preceitos religiosos o alvo de alfinetadas. A religião volta a ser ‘moral da história’ em “Caça e caçador”, na mesma perspectiva de questionamento quanto aos valores pregados. Em “Mancha na parede”, a decisão da reclusão no mosteiro simboliza opressão e sofrimento; em “Caim e Abel”, os pólos se invertem: o bom vira assassino e o mal transforma-se em vítima, como a representar a inversão de valores que hoje se presencia.

O discurso literário muitas vezes cede espaço ao relato jornalístico, imprimindo ao texto um estilo-reportagem, a exemplo de “Maneco, futebol e cerveja”: (morreu ontem Maneco, ou Manuel dos Santos Pereira. Há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna) e “Para que esses olhos arregalados?”, conto que intertextualiza, de passagem, o clássico Chapeuzinho Vermelho e tem um final inesperado, como, aliás, a maioria dos que compõem a coletânea.

Já “O perdão” e “Águas de Badu” investem nos diálogos com textos consagrados na literatura brasileira. O primeiro retoma “Os anões” do Moreira Campos, redimindo a pequena Lourdinha do trauma do assédio nojento dos assaltantes que invadem o armazém em que ela mora com seu parceiro. A influência de Campos é assumida neste enredo e se mostra no estilo hiper-realista de “Os urubus e Deus”, narrativa cruel, que lembra os relatos naturalistas do romance A fome, de Rodolfo Teófilo. É também moreiriano o início de “Águas de Badu” - “Moscas voejavam ao redor do cadáver” – recriação da história de “O burrinho pedrês”, de Guimarães Rosa. O narrador, um cronista grato pelas histórias sertanejas que Badu lhe passava, conta a saga do velho vaqueiro de Sagarana, após deixar Minas até chegar ao Ceará com as lembranças da travessia do rio, quando ele, bêbado, foi salvo pelo burrinho. Entre as reminiscências do passado mineiro de Badu e sua morte, dormindo em casa, dá-se o velório e, no final, vê-se o carinho do cachorro Chué que, na imaginação de um menino, lambe o cadáver, em despedida, metamorfoseado no burrinho herói do conto épico de Rosa.

Há a mão do ensaísta em “Lilith segundo Paspa Tordre” e “Para escrever A caminho do nada”. A literatura está toda no processo criador; Nilto cria, acho que até sem perceber, personagens que são leitores, escritores, amantes dos livros, da poesia, como a velha Bartira (“Hora de despertar”), paralítica que sobrevive, ouvindo poemas de Anacreonte, Bilac, Camões, Francisco Carvalho e Florbela Espanca. Morre sozinha quando as leituras param e seu filho, ainda na farra, esquece-a aos cuidados de um ‘gravador’.

O gênero Fantástico se configura em “O menino e o lobo”, “A música”, “Sombra não identificada” e “O sétimo aniversário de Branca de Neve”. Nos três primeiros, o fantástico parece naturalizado, sem a inserção do mal; no último, a atmosfera é mais pesada e o que poderia ser simplesmente uma história do Maravilhoso degenera-se na inexplicabilidade do evento final: a brincadeira do teatro vira ‘verdade’ e a bruxa se corporifica, arrancando medo de crianças e adultos, à meia-noite.

O Surrealismo se faz presente em “Os dez dias de Raimundo”, cujo personagem, um homem criado em laboratório, tem seu ciclo de vida iniciado e concluído em apenas dez dias; na mesma linha está “Palmas e tochas”, história em que o pianista é, estranhamente, aos olhos de um expectador, um Lobo. Nada de automatismo na linguagem, apenas os motivos das narrativas transpõem a lógica natural, sem, entretanto, encenarem mistérios inexplicáveis.

Assim, fundindo observação, memória e imaginação, vários enredos dão ao leitor a ilusão de verdade; em “Apontamentos para um ensaio” e “Meu filho Matias Beck”, especialmente, ouve-se a voz do autor nos relatos, e chega-se a crer que são reais. O equilíbrio está no talento de Nilto Maciel para amalgamar realidade e ficção. Munido de vasta bagagem de leituras e domínio das técnicas de construção do texto literário, ele percorre veredas diversas e, com seu apurado trabalho de linguagem, dá unidade ao que é diverso, puxa o leitor por caminhos inusitados e consegue, sem exauri-lo no longo percurso que se impõe da primeira à última página, prendê-lo espontaneamente ao universo de seres alucinados e fatigados de sua aventura existencial. Sem falseamento da realidade, mas sem exatamente copiá-la, ele fala, na maioria das vezes ironicamente, das feridas abertas de todos os seres extraviados que, de alguma forma, encontraram-se, encontram-se ou encontrar-se-ão a leste da morte.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br

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