terça-feira, 28 de novembro de 2023

Alcântara Machado (A Sociedade)

- Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon (buzina) fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

- O que você está fazendo aí no terraço, menina?

- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

- Ah, meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone do beiço para gritar:

– Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarinos maxixavam (dançando o maxixe) colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

- Não!

- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

- Meu pai quer fazer um negócio com o seu.

- Ah, sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

- Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

- Já sei, mulher, já sei.

Mas era coisa muito diversa.

O Cav. Uff.* Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.

- O doutor...

- Eu não sou doutor, Senhor Melli.

- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital, o senhor compreende é impossível...

- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

- Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.

- Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

- Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer coisa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

- Sei, sei... O seu filho?

- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta.

- Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

- E então? O que devo responder ao homem?

- Faça como entender, Bonifácio...

- Eu acho que devo aceitar.

- Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda e senhora têm a honra de participar a V. Ex.a e Ex.ma família o contrato de casamento de sua filha Teresa Rita com o Sr. Adriano Melli.
Rua da Liberdade, n.0 259-C.
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O Cav. Uff. Salvatore Melli e senhora têm a honra de participar a V. Ex.a e Ex.ma família o contrato de casamento de seu filho Adriano com a Senhorinha Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Barra Funda, n.0 427.

S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.
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* Cav. Uff.: abreviatura da expressão italiana Cavaliere Ufficiale, título honorífico, hierarquicamente inferior aos títulos de nobreza. Diversos italianos que enriqueceram no Brasil compraram, na Itália, títulos honoríficos (cavaliere, commendatore) ou nobiliárquicos (conde)

Fonte: Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda. Publicado em 1927. 
Disponível em Domínio Público

Estante de Livros (“Os trabalhadores do mar”, de Victor Hugo)

Para Victor Hugo, as três lutas do homem são definidas como suas necessidades básicas: a religião, a sociedade e a natureza. Destarte, o homem precisa ultrapassar os conceitos dos dogmas; lutar por leis justas e; sobreviver em natureza, tanto social quanto mundanal. O primeiro conceito é trazido pelos escritos do Corcunda em Notre Dame, o segundo conceito; elevado pelos Miseráveis, e o terceiro conceito, natural, descrito nos Trabalhadores do Mar. Todavia, o personagem principal da obra não poderia deixar de seguir os moldes de Victor Hugo ao alinhar seus percalços, tanto em sociedade, quanto quando luta por sobrevivência meio ao resoluto mar.

RESUMO

A história se passa na ilha de Guernesey, na costa norte da França, durante o século XIX. O solitário Gilliatt, órfão de mãe e cujo pai é desconhecido, mora numa casa tida pelos moradores locais como assombrada, próxima a uma encosta do mar, afastada do centro do vilarejo de Saint-Sampson. Exímio pescador e homem do mar, porém mal compreendido pela sociedade local, que é muito supersticiosa, vive para si e para seu amor platônico, a jovem e bela Déruchette, sobrinha do mais famoso e bem-sucedido homem da região, Mess Léthierry.

Mess Léthierry é dono da Durande, o primeiro barco a vapor da região que, justamente por possuir mais velocidade, realiza a viagem no Canal da Mancha mais rapidamente e consegue, portanto, manter um comércio mais próspero com a Inglaterra. Consequentemente, a atividade faz de Mess Léthierry o homem mais rico da ilha. Anos antes, havia confiado em seu sócio Rantaine, mas este o traíra e levara consigo a fortuna de ambos. Foi Durande, o barco que ele mesmo construiu, que lhe trouxe a glória. Por isso, tem pelo barco o mesmo amor que tem por sua sobrinha, a quem educa para ser uma esposa dedicada e muito doméstica. O velho homem sonha ter para capitão do barco um genro que seja apaixonado por Déruchette e tão bom homem do mar quanto ele, que possa amar Durande com a mesma intensidade. Enquanto isso não acontece, ele deixa Durande a cargo do capitão Clubin, tido como lobo do mar, ou seja, extremamente experiente e sem medo das águas repletas de rochedos da região.

Os destinos de Mess Léthierry, Déruchette e Gilliatt se cruzam quando o capitão Clubin leva a embarcação ao mar em dia de tempestade e entra num nevoeiro, chocando-se com os rochedos escarpados que coalham o mar em torno da ilha. O desesperado dono do barco acredita que Clubin morrera no mar e ouve dos marinheiros que a embarcação está parcialmente destruída, mas seu motor se encontra intacto, preso entre dois altos e afiados rochedos. Sem esperança, oferece a mão de sua sobrinha ao corajoso homem que salvar a Durande. Escutando sob a janela, Gilliatt, que ama secretamente Déruchette há anos, se oferece para empreender a viagem à embarcação. Durante semanas, ele enfrenta o sol inclemente, a sede, a fome, a febre, os tremores e o cansaço, e consegue construir uma espécie de estrutura elevadiça com a madeira do barco, com a qual consegue içar o motor e colocá-lo em sua chalupa.

Além da luta que Gilliatt trava contra as intempéries, ele enfrenta um novo perigo mortal: um gigantesco polvo que o ataca de surpresa. Segue-se uma luta encarniçada de Gilliatt pela vida, e grande parte do mistério em torno de Clubin e do sócio desaparecido de Mess Léthierry são desvendados. De uma forma quase miraculosa, Gilliatt mata o polvo e consegue voltar à ilha. Sujo, descabelado, doente, magro, com a pele descascando, exausto, com fome, e com suas energias drenadas, consegue amarrar sua chalupa atrás da casa do tio de Déruchette. Quando Mess Léthierry descobre ali a alma de sua embarcação, - o que lhe salva a posição política e a fortuna - reconhece Gilliatt perante a sociedade local como seu salvador e concede a mão de Déruchette a ele.

Gilliatt descobre que Déruchette ama o jovem reverendo inglês Ebenezer Caudray, que havia chegado há poucos meses em Guernesey, e é correspondida. Sua decisão é heroica. Ele dá a ela o baú de enxoval que sua mãe lhe deixara como herança para dar à sua futura esposa, providencia com o pároco mais velho o casamento dos jovens apaixonados sem que Mess Léthierry o saiba e os vê partirem no navio Cashmere, já acomodado em uma pedra recortada numa encosta, cujo formato é de uma cadeira e onde a maré encobre quando o dia anoitece. Ali, sentado e sozinho, espera o mar chegar e cobri-lo, pois para ele, socialmente marginalizado e eternamente infeliz porque sua amada não o ama, o que resta é o mar, e a ele se entrega definitivamente.

Fontes: Página do Ricardo. Resumo escrito por Ricardo Moraes em 08 junho 2020.
Canal Ciências Criminais. Escrito por Iverson Kech Ferreira em 11 agosto 2022.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 22: O acidente

Enila estava desacordada. Escorria sangue da sua fronte, ferida por uma pedra pontiaguda. O pai, desesperado, a toma nos braços, com cuidado a acomoda no banco de traz do carro. 

- Rápido! Temos que chegar depressa ao hospital – disse o senhor Fiore.

- Tenha fé, patrão. Ligeiro chegamos à cidade – disse Arlindo, um tanto assustado, com as mãos trêmulas no volante. 

O pai havia apoiado a cabeça da filha em seu ombro e a abraçado forte. Sentiu seu coração pulsar lento. E baixinho começou a rogar a Deus a Providência Divina. 

Estava muito nervoso. E sua oração emitia palavras soltas: uma vibração desconexa. Mas estava frágil como nunca antes havia se sentido. Sentia-se num misto de realidade e pesadelo. 

Ao chegar no hospital de Caridade, Enila foi logo socorrida pela equipe do mesmo plantonista que havia socorrido dona Ana. 

Senhor Fiore e o capataz ficaram no corredor aguardando notícias. 

Pouco tempo depois foram avisados de que a moça, aparentemente, estava bem. E que o ferimento na cabeça tinha sido superficial, mas que para garantir que o seu estado era positivo, precisava permanecer em observação por pelo menos 24hs. 

Senhor Fiore, cumprimentou o médico, sorrindo aliviado. 

- Arlindo, vamos até a fazenda avisar Eliana do ocorrido. Ela deve estar preocupada com a nossa ausência.

Ao tomar contato com a notícia, a mãe de Enila exigiu ir até o hospital ficar junto da filha. 

- Calma, meu amor, o médico disse que aparentemente está tudo bem. Foi só um susto. 

- Aparentemente não significa certeza de nada. 

Vó Gorda, ao entrar na sala, sentiu o coração acelerar e os braços afrouxarem, derrubando a bandeja do café. 

- Meu Deus... Eu avisei tanto – disse ela.

- Vó, fica aqui fazendo suas preces. Nós vamos ao hospital e não sabemos se retornaremos hoje. Tudo vai depender de como estiver a minha filha. – disse a mãe. 

- Não fiquem em pânico. Está tudo bem. Arlindo, deixa o volante por minha conta. Fica aqui cuidando da casa. – disse o senhor Fiore. 

- Claro, patrão. Pode deixar tudo por minha conta. 

O casal saiu apressado. 

- Dona Vó Gorda, é verdade o que os peões contam sobre a senhora lá no bar do seu Feliciano? 

- O que eles andam dizendo, meu “fio” ? 

- Andam espalhando por aí, que a senhora tem o poder de aparecer e de desaparecer de certos lugares como se fosse um fantasma. E que já enfrentou um boitatá.

- “Fio”, se tu quer mesmo saber, outra hora te conto sobre esses casos e outros. Agora não dá. Vou secar o café derramado. E depois pedir a Nanã Buruquê* que interceda pela menina Enila. 

- Quem é Nanã?

- Já deixei claro que não é hora de fazer perguntas – disse Vó Gorda, zangada. 

Arlindo, temeroso, se afastou rápido. 

“Eu que não fico sozinho com essa velha feiticeira. Vou avisar Isadora sobre o ocorrido com sua amiga.” Pensou. 

A família Machado estava reunida na sala tratando dos preparativos do casamento. O senhor Antônio, e Fábio, empolgados tentavam convencer Isadora de que a cerimônia deveria ser grandiosa, com muitos convidados... Chamar a atenção de toda a vizinhança. 

- Nada disso. Quero uma cerimônia discreta. O padre Orestes já se colocou à nossa disposição. É só uma questão de marcar o dia e a hora. 

- Fábio, tá vendo? A “muié” é mandona:  te prepara – disse o senhor Antônio.

“Velho caquético e nojento”. Pensou Amélia enquanto tirava o pó dos móveis.  

O noivo manifestou um sorriso sem graça e empinou o copo com um último gole de trago. 

- Calma, gente, precisamos pensar na lista de convidados, nos comes e bebes e, principalmente, no vestido da noiva – lembrou dona Ana, com seu ar sereno. 

- Uma semana é o tempo que precisamos para resolvermos tudo. – disse Isadora. 

- Está bem. Que seja uma cerimônia simples, só para a família e amigos íntimos, como tu queres, Isa  - concordou Fábio.

Dona Ana suspirou aliviada. E o senhor Antônio, cabisbaixo, exprimiu uns resmungos inaudíveis. Após alguns minutos de silêncio, Arlindo bateu à porta.

- Boa tarde, amigos. Achei por bem avisar que dona Enila foi hospitalizada depois de sofrer um acidente, mas não se preocupem, ao que parece não foi nada grave. 

- Que tipo de acidente? – perguntou Isadora.

- A menina saiu para cavalgar, mas não tem a prática. Encontramos ela caída na estrada, sem o paradeiro do cavalo: tudo indica que ela caiu enquanto cavalgava. 

- Preciso ver minha amiga. Alguém pode me levar ao hospital?

- Acho desnecessário, está em observação, e logo estará em casa – disse Arlindo. 

- Tens razão. Minha amiga não deve ter sofrido nada grave. Ela não merece.

- Entra, tome um café conosco – disse dona Ana. 

- Grato. Só vim dar a notícia. Até. 
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* Nanã Buruquê é um orixá da sabedoria e dos pântanos. Responsável pelos portais de entrada (reencarnação) e saída (desencarne). É descrita como sendo a Grande Mãe. Princípio de nossa ancestralidade.

Fonte: Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 39

 

Mensagem na Garrafa – 40 –


Catulo da Paixão Cearense
São Luís/MA,1863—1946, Rio de Janeiro/RJ

TU PASSASTE POR ESTE JARDIM

Tu passaste por este jardim!
Sinto aqui certo odor merencório
Desse branco e donoso jasmim
Num dilúvio de amoras pendeu
Os arcanjos choraram por mim
Sobre as folhas pendidas do galho
Que a luz de seus olhos brilhantes verteu.

Tu passaste, que de quando em quando
Vejo nas rosas no hastil lacrimado
Das corolas de todas as flores
As minhas angústias, abertas em flores
Neste ramo que ainda se agita
Uma roxa saudade palpita
E esse cravo, no ardor dos ciúmes
Derrama os perfumes num poema de amor.

De um suspiro deixaste o calor
Neste cálix de neve, estrelado
Neste branco e gentil monsenhor
Vê-se os íris de um beijo esmaltado
Tu deixaste num halo de dor
Nas violetas magoadas, sombrias
A tristeza das ave-marias
Que rezam teus lábios à luz do Senhor.

Vejo a imagem da minha ilusão
Nessa rosa prostrada no chão
Meus afetos descansas nos leitos
Deste lindo amores-perfeitos
Como chora o vernal jasmineiro
Que me lembra o candor de teu cheiro!
Este cravo sanguíneo é uma chaga
Que se alaga no rubor da cor.

As gentis magnólias em vão
Muito invejam teu rosto odoroso
Rosto que tem a conformação
De um suspiro adejando saudoso
E esses lírios têm a presunção
De imitar em seus níveos brancores
Esses dois ramalhetes de amores
Andores de flores num seio em botão.

Eduardo Martínez (Um dia de Machado de Assis)

Apaixonado que sou pela Literatura, de tempos em tempos arriscava umas histórias, sejam longas, sejam curtinhas. No entanto, apesar de já ter lançado três livros a partir de 2004, a minha vida de escritor estava fadada a ficar restrita a um grupo bem pequeno de leitores, a maior parte formada por amigos e conhecidos. Isso até que a minha mulher, a Dona Irene, criou o Blog do menino Dudu na noite do dia 23/12/2021. 

A partir desse dia, comecei a escrever de maneira frenética e, para minha surpresa, já nos primeiros meses de 2022, eis que recebo uma mensagem da professora Denise, que é do Rio de Janeiro. Ela me disse que estava trabalhando alguns textos do meu blog em sala de aula. Que loucura!!! A Dona Irene precisou me beliscar um monte de vezes, até que fui convencido pelas inúmeras marcas doloridas nos meus braços de que aquilo não se tratava de um sonho. 

Não demorou muito, o professor Leandro, que dá aula em uma escola em Brasília, me mandou uma mensagem me perguntando se ele poderia utilizar os textos do Blog do menino Dudu em sala de aula. Quase caio da cadeira de novo! E, alguns meses após, eis que o Leandro me manda uma mensagem falando que os alunos estavam adorando as histórias do meu blog. E, ainda mais, queriam me conhecer pessoalmente. 

Depois de alguns contratempos, o Leandro e eu acertamos um dia para finalmente eu passar uma manhã inteira conversando com os seus alunos. Isso aconteceu no dia 09/11/2022. Confesso que a princípio fiquei intimidado, pois sou péssimo para falar em público. Todavia, de tão bem recebido que fui por aqueles jovens extremamente carinhosos e, muitos deles, com talentos incríveis, me senti como se já nos conhecêssemos há anos. Desde então, digo para todo mundo que já tive o meu dia de Machado de Assis.

Humberto de Campos (Convenientes do ciúme)

Com a sua perspicácia de mulher inteligentíssima e original, Ninon de Lenclos recomendava aos maridos que não se mostrassem ciumentos sem um motivo claro, seguro, evidente, para a manifestação de tal sentimento. 

"Não é com suspeitas - afirmava ela, - não é com suspeitas que se fortalece a fidelidade da mulher". E acrescentava, experiente: "Uma injúria tal, longe de a prender, enfraquece-a, familiarizando-a com sentimentos cuja só ideia devia parecer-lhe um crime. Acreditar na sua inconstância, faz com que ela se acostume a encará-la como possível, a aproximar-se mais dela. Isso só pode contribuir para que a mulher acredite ser a fidelidade um mérito, quando somente devia ser um dever."

Essas observações endereçadas a todos os maridos injustificadamente ciumentos, faziam parte, já, do meu cabedal de experiência, fornecida por um incidente que, há meses, profundamente me impressionou.

Senhora de uma formosura incomum, D. Colete abandonou o marido, arrastada pela violência do coração. Esse gesto, que poderia tê-la conduzido à miséria, à lama, à vergonha, levou-a, pelo contrário, ao esplendor e à felicidade. 

O jovem capitalista que a recebera nos braços na sua queda, era considerado, e merecidamente, o homem mais rico da capital. E era a fortuna e o coração desse homem generoso, nobre, cavalheiresco, que ela via a seus pés, derretidos numa chuva de ouro, como aquela com que Júpiter fecundou, na torre de Argos, a desditosa mãe de Perseu.

Robusto, moço e riquíssimo, o ilustre capitalista não tinha motivos para temer um competidor. O seu orgulho, a consciência da sua própria situação econômica, deviam conservá-lo muito alto, acima de quaisquer temores. O coração que lhe batia no peito era, porém, medroso, covarde, infantil, e foi dominado por essa fraqueza que ele chegou, uma vez, a confessar o seu susto, dizendo à mulher amada, com o rosto nas mãos:

- Tu não imaginas, Colete, o que tem sido a minha vida, depois que vivemos juntos. Eu tenho por ti uma paixão desesperada. A minha fortuna, a minha vida, o meu destino estão nas tuas mãos. Dou-te, como tens visto, o que desejas, e dar-te-ia mais, se me pedisses. A minha felicidade é, entretanto, perturbada por um temor permanente: temor de que me deixes, susto de que me abandones, receio de que te apaixones por outro, deixando a minha companhia!

A essas palavras, tão sinceras, arrancadas do coração, a rapariga franziu a testa modelar, coroada de cabelos dourados, como quem acaba de ouvir uma novidade surpreendente. Com os cotovelos de mármore fincados na mesa de jantar, e com o rostinho de boneca, muito claro e muito lindo, pousado nas mãos de seda a sua fisionomia denunciava uma grave preocupação. 

De repente, a testa se lhe vincou ainda mais, e uma pergunta aflorou, franca, ingênua, encantadora de naturalidade, na sua boquinha vermelha:

- Há, então, no Rio, outro homem mais rico do que tu?

E, intrigada, de si para si:

- “Quem será?”

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Sílvio Romero (O Papagaio do Limo Verde)

(Folclore do Sergipe)
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Uma vez havia, num lugar retirado duma cidade, uma velha que tinha três filhas: uma de um só olho, outra de dois, e outra de três. Perto da casa da velha havia uma outra casa, onde morava uma moça muito bonita. Por esta moça enamorou-se o príncipe real do reino do Limo Verde, que a visitava todas as noites, e lhe estava dando muitas riquezas. 

A velha vizinha começou a desconfiar daquelas riquezas e, uma ou outra, ia à casa da moça para ver se pilhava alguma coisa, e nada. . .

Uma vez sua filha mais velha, que tinha três olhos, lhe disse: “Minha mãe, me deixe ir passar a noite na casa da vizinha que eu descubro o segredo.” 

A velha concordou, e a moça dos três olhos foi. Chegando lá disfarçou: “Ó vizinha, há muito tempo que não lhe vejo; vim hoje passar a noite com você.” 

— “Pois não, vizinha, a casa está às ordens!”, respondeu a bela namorada. 

Quando foi a hora de irem dormir, a dona da casa deu à sua companheira, em lugar de chá, uma dormideira. A moça dos três olhos ferrou no sono como uma pedra; roncou toda a noite e não viu nada.

O príncipe real do Limo Verde veio, como de costume, encantado num grande e lindo papagaio; foi chegando e batendo com as asas na janela do quarto; a namorada abriu-a, e ele foi dizendo: “Dai-me sangue, dai-me leite, ou dai-me água!”

A moça apresentou-lhe um banho numa grande bacia; o papagaio caiu dentro da água a se arrufar e bater com as asas; cada pingo d’água que lhe caía das penas era um diamante, e assim é que a moça ia ficando cada vez mais rica. O papagaio, no banho, desencantou-se num lindo príncipe, que passou a noite com a sua namorada. De madrugadinha tornou a virar em papagaio, bateu asas e foi-se embora. 

A mulher dos três olhos não viu nada; voltou para casa e disse à mãe que tudo eram boatos falsos, e que na casa da vizinha não havia novidade.

Daí a tempos a irmã de dois olhos se ofereceu para ir passar também uma noite na casa da vizinha; foi e chupou da dormideira, pegou no sono, e veio o papagaio, e ela nada viu. Voltou para casa sem descobrir o segredo. 

Passados alguns dias, a moça de um só olho se ofereceu à mãe, dizendo: “Agora, minha mãe, minhas irmãs já foram, e eu quero também ir descobrir o segredo.” 

As irmãs caçoaram muito dela: “Quando nós, que temos mais olhos do que tu, não vimos nada, quanto mais tu, que tens um só!. . . ” 

Enfim a velha consentiu, e a sua filha de um só olho foi. Chegando lá, fez muita festa à rica vizinha, e, quando foi a hora da ceia, fingiu que bebia a dormideira, e derramou-a no seio. Deitou-se e fingiu que estava dormindo.

Na alta noite chegou o grande e bonito papagaio, batendo com as asas na janela; a dona da casa abriu, e ele se desencantou num moço muito formoso, e, como das outras vezes, dentro da bacia do banho ficou muito ouro e muitos brilhantes que a namorada guardou. 

A sujeitinha de um olho só via tudo caladinha. No outro dia bem cedinho largou-se para casa e contou tudo à mãe. No dia seguinte a velha foi quem veio passar a noite na casa da moça. Quando entrou no quarto de dormir disfarçou e colocou umas navalhas bem afiadas na janela por onde tinha de entrar o papagaio. Ele, quando veio, se cortou todo nas navalhas e disse para a namorada: “Ah, Maria ingrata! Nunca mais me verás; só se mandares fazer uma roupa toda de bronze e andares até ela se acabar. . . ” Bateu asas, e voou. 

A moça, que não esperava por aquilo, ficou muito desgostosa, e logo compreendeu a razão das visitas daquela gente na sua casa. Mandou fazer uma roupa toda de bronze, e com chapéu, sapatos e bastão também de bronze, e largou-se pelo mundo a procurar o reino do Limo Verde. Depois de muito andar, sem ninguém lhe dar notícia, foi ter à casa do pai da Lua.

Lá chegando disse a que ia. O pai da Lua a recebeu muito bem, lhe disse que só sua filha lhe poderia dar notícia de tal terra, que ele não sabia; mas que ela, quando vinha para casa, era muito aborrecida e zangada com todos, que portanto a peregrina se escondesse bem escondida. Assim foi. 

Quando ela chegou, veio muito enjoada, dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” 

O pai a enganou, dizendo: “Não, minha filha, aqui não  veio ninguém, foi um frango que eu matei para nós cearmos.”

A Lua tomou banho e se desencantou numa princesa muito formosa e foi para a mesa cear. Aí o pai disse: “Minha filha, se aqui viesse uma peregrina indagar por uma terra, tu o que fazias?” 

— “Mandava entrar e tratava muito bem.” 

A moça apareceu e disse a sua história. A Lua lhe respondeu que andara muitas terras; mas que daquela nunca tinha ouvido nem falar; mas o Sol havia de saber. A moça se despediu, e, na saída, a Lua lhe deu de presente uma almofadinha de fazer rendas toda de ouro, com os bilros de ouro, alfinetes de ouro e etc., tudo de ouro. A moça seguiu. 

Depois de muito andar, e estando já com os vestidos de bronze quase acabados, chegou à casa da mãe do Sol. Entrou e disse ao que ia. A mãe do Sol a tratou muito bem; disse que não sabia onde era aquela terra; mas seu filho havia de saber, porque andava muito; o que tinha era que quando vinha para casa era muito zangado, queimando tudo, e que ela se escondesse bem.

Assim foi. Quando o Sol veio, foi aquele quenturão de acabar tudo, e dizendo: “Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!” 

A mãe o enganou dizendo que tinha sido uma galinha que tinha preparado para o jantar. O Sol tomou seu banho e se desencantou num belo príncipe. Na mesa a mãe lhe disse: “Meu filho, se aqui viesse uma peregrina, perguntando por uma terra, tu o que fazias?” 

— “Mandava entrar e tratava muito bem.” 

A moça apareceu e disse o que queria. O Sol lhe respondeu que nunca tinha ouvido falar em semelhante terra, que só o Vento Grande poderia saber dela, porque andava mais do que ele. 

A moça se despediu, e, na saída, o Sol lhe deu uma galinha de ouro, com uma ninhada de pintos todos de ouro, e vivos e andando. A moça seguiu viagem e foi ter, depois de muito trabalho, à casa do pai do Vento Grande. 

Lá chegando disse ao que ia, e o velho pai do Vento Grande respondeu que não sabia; mas que seu filho havia de saber, o que tinha era que, quando vinha, era como doido, botando tudo abaixo, e que a moça se amarrasse bem num esteio da casa. 

Assim ela fez. O Vento Grande quando veio chegando era aquele zoadão, que fazia medo, botando muros e telhados abaixo, e dizendo: “Aqui me fede a sangue real!” 

— “Não é nada, meu filho, foi um capão para nossa ceia.” 

Assim o velho foi enganando até que ele tomou o banho e se desencantou num moço muito belo. Na mesa o pai lhe disse: “Se aqui viesse uma peregrina, tu o que fazias ?” 

— “Mandava entrar e tratava bem.” 

A moça apareceu e disse o que queria. O Vento Grande respondeu: “Oxente! Ainda agora passei por lá; é perto. Monte-se amanhã na minha cacunda, e, onde avistar um pé de árvore muito grande e copudo na frente de um palácio muito rico, agarre-se nos galhos, deixe-me passar que é aí.” 

No dia seguinte, quando o Vento Grande partiu, a moça montou-lhe na cacunda e seguiram. Depois de muito voar por muitas terras e reinos, avistou o pé de árvore na frente dum grande palácio; o Vento logo de longe foi dizendo: “É ali; agarre-se nos galhos, senão eu a levo para o fim do mundo.” 

Assim a moça fez; agarrou-se num galho da árvore, e o Vento seguiu. Ela desceu e pôs-se em baixo da árvore, imaginando um meio de entrar no palácio para ver o príncipe, ou ter notícias dele. Daqui a pouco chegaram três rolinhas e se puseram a conversar nos galhos da árvore. Disse uma delas: “Manas, não sabem? O príncipe real do Limo Verde está muito mal; talvez não escape.” Disse outra: “E o que será bom para ele?” Respondeu a terceira: “Ali não há mais remédio; as feridas que ele recebeu na guerra são três e não saram; só se pegarem a nós três, nos tirarem os coraçõezinhos, torrarem e moerem, e deitarem o pó nas feridas.” 

A moça ouviu toda a conversa das rolas; armou um laço e pegou todas três; matou-as, tirou os corações, torrou-os e fez um pozinho e guardou. 

Lá no reino tinha-se espalhado a notícia de que o príncipe estava à morte de umas feridas recebidas numas guerras. Não achando um meio de entrar no palácio, a peregrina tirou para fora a almofada de ouro, e se pôs a fazer renda. Veio passando uma criada do palácio, viu e foi dizer à rainha, mãe do príncipe: “Não sabe, rainha, minha senhora, ali fora está uma peregrina com uma almofada de ouro, com birros de ouro, fazendo renda também de ouro, coisa mais linda que dar-se pode. Só vosmecê possuindo. . . ”

A rainha mandou a criada perguntar à peregrina quanto queria pela almofada. A moça respondeu: “Para ela não é nada; basta me deixar dormir uma noite no quarto do príncipe que está doente.” 

A criada foi dar a resposta; mas a rainha ficou muito insultada e não quis. Mas a criada lhe disse: “O que tem, rainha minha senhora? O príncipe meu senhor está tão mal que nem conhece mais ninguém; que mal faz que aquela tola durma lá no quarto no chão?” 

A rainha concordou; foi a almofada de ouro para palácio, e a peregrina dormiu no quarto do doente. Logo nesta primeira noite ela lavou bem as feridas que o príncipe tinha no peito, e botou nelas o pó dos corações das rolinhas; mas o príncipe ainda não deu por de si, e não a conheceu. 

No dia seguinte a moça foi outra vez para debaixo da árvore, e puxou para fora a galinha de ouro com os pintinhos, que se puseram a andar. A criada veio passando e viu.

Correu logo para palácio e disse: “Ó rainha minha senhora, a peregrina está com uma galinha de ouro com uma ninhada de pintos, tudo vivinho e andando. . . Que coisa bonita! Só rainha, minha senhora, possuindo. . . ” 

A rainha mandou propor negócio. A moça disse que não era nada; bastava deixar ela dormir mais duas noites no quarto do príncipe. A rainha não queria; mas a criada arranjou tudo e a moça foi dormir no quarto do príncipe, e deu a galinha e os pintos de ouro. 

Na segunda noite que ela dormiu em palácio, a moça continuou o tratamento, e aí o príncipe foi melhorando e já a ia conhecendo. Na terceira noite acabou o curativo e o príncipe ficou bom. Depois que ficou de todo com saúde, saiu do quarto e apresentou à rainha e ao rei a peregrina como sua noiva, e assim se desmanchou o casamento que já lhe tinham arranjado com uma princesa vizinha. 

Houve muita festa na cidade e no palácio. . . E eu (isto diz por sua conta o narrador popular) trouxe de lá uma panelinha de doce para lhe dar (referindo-se à pessoa a quem contou a história), mas a lama era tanta que ali na ladeira dos Quiabos escorreguei e caí e lá foi-se o doce.

Entrou por uma porta,
Saiu por um pé de pato;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte quatro.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

Aparecido Raimundo de Souza (Completamente desproporcionados)

ESTOU TENDO um caso com a Arno. Arno não é uma moça qualquer. É diferente. Linda, bonita, magrinha como gosto, esperta, elétrica, despachada... quando está ligada no que precisa ser feito, parece chegar aos píncaros dos 220 volts. Não estou falando de uma dondoca metida à besta. Faço referência à Arno, a Enceradeira de mamãe. Ela não sabe ainda da minha paixão avassaladora. Coisa antiga, desde o abençoado dia em que papai a trouxe aqui para morar embaixo do mesmo teto. Tudo começou numa tarde de sábado, quando Ambrosina, a nossa empregada, depois de escravizar a pobrezinha, fazendo com que trabalhasse duro, lustrando os assoalhos da sala e dos três quartos, lhe deu uma folguinha arrastando a infeliz para o banheiro de serviço colado à cozinha. Achei que chegara a hora de atacar. Não perdi tempo. Parti para o abraço: 

— Nossa, “migo”. Estou exausta! – balbuciou a prestimosa assim que me viu se encostando à sua beira.

— Dá pra perceber... - respondi sem pensar em coisa melhor a ser dita. 

— Ambrosina quer me ver morta e enterrada. Olhe para meu estado. Estou me sentindo um bagaço.

Procurei ser franco o melhor que pude: 

— Sinto pena de você.

Arno me cravou uns olhos compridos expressando profunda infelicidade: 

— Você?

— Sim! Não posso?

Arno armou alguma coisa para dizer. No último instante resolveu engolir o que pretendia me jogar em meio ao rosto. Talvez achasse que me deixaria nervoso ou mais abestalhado do que aparentava. Ponderou e mediu as palavras antes de voltar ao diálogo:

— Pode, claro que pode. Mas vocês, humanos, não têm sentimentos em relação a nós.  Somos máquinas, não comemos, não bebemos...

Fez uma pausa breve e concluiu, a tez agora tomada por um pranto silencioso:

— As nossas patroas fazem a gente de escravos. Trabalhamos pior que burros de carga.  No final das contas... Meu Deus do céu.

— Ei, não fale assim! Sei que dá um duro danado. Não é de hoje estou de olho comprido em você.

— De olho comprido? Como assim?

— Estou de butuca... quero dizer, meio que “vidrado”, ora bolas.

— Desenhe...

— Não saberia desenhar...

— Pois então fale.

— É que eu... deixa pra lá.

— Fale.  Seja o que for, vá em frente.

— Arno, me apaixonei por você.

A enceradeira de mamãe, ou melhor, a Arno caiu numa estrondosa gargalhada. Quando se cansou, voltou a me fitar, desdenhosa:

— Quer dizer que temos aqui um gurizinho apaixonado?

— Me leve a sério. Por favor!

— Espera que eu acredite?

— Pergunte ao seu Rossi, o Escovão...

— O que o senhor Rossi, meu amigo Escovão tem a ver com isto?

— Ele sabe de tudo.

— Tudo?

— Me abri com ele. Para quem mais?

— E por que ele?

— Porque é um senhorzinho em idade bem avançada. Sabe melhor que ninguém destas coisas.

— OK. Vamos supor que eu acredite.

— Deveria. Falo a verdade. 

— O que foi que disse exatamente a ele?

— Que me fascinei por você. 

— E ele?

— Achou normal, na minha idade. A certa altura me confidenciou que em anos passados, quando ainda moço, caiu de quatro por uma branquela linda e simpática que atendia pelo nome de Frigidaire. Era uma Geladeira.

— E ele ficou com ela?

— Não.

— Por...?

— Frigidaire se desvairou por um sujeitinho esquisito. Um tal de Britânia. Segundo ele, um Liquidificador metido a besta. Final das contas, a criatura sumiu do pedaço e ninguém mais soube dar noticias de seu paradeiro.

— E você acha normal um ser humano se alucinar por um eletrodoméstico? 

— Sim. Acho. Afinal de contas, cá entre nós, você é um pedaço de caminho desconhecido que todo homem em estado de insanidade gostaria de percorrer. Uma princesa bonita, séria, honesta, recatada, tem um porte majestoso, dá conta do recado sem reclamar... e sua tomada quando ligada no interruptor...

— Que mais?

— Quando não está trabalhando fica quietinha no seu canto. Não se mistura. É atenciosa, simples, e me parece...

— Continue...

—  Me parece ter um agastamento muito grande no peito. Uma coisa que machuca você e lhe deixa, às vezes, para baixo.

— Quanto a isto é verdade. Acertou na mosca.

— Então. Deixa eu me aproximar de você. Prometo que não irei decepcionar o seu coraçãozinho. 

Arno se extravasou num sorriso debilitado:

— Todos dizem a mesma coisa.

— Todos? Agora sou eu quem pede. Desenhe.

— Faz anos me apaixonei por um Limpador de Vidros. Estávamos indo de vento em popa.

— E certo dia ele não correspondeu?

— Não, meu lindo. O infeliz se embasbacou por uma Tábua de passar roupas. Belo dia foi limpar as janelas do quarto dela, meio que afoito, se descuidou... acabou despencando do oitavo andar e babau. Desde então, me tranquei dentro de mim mesma.

— Se abra para mim... todinha... 

— Promete me amar de verdade?

— Com todas as forças de meu ser.

A coisa criou raízes. Ambrosina me flagrou por diversas vezes fazendo estripulias com a Arno em meu quarto. Contou para meus pais. Num primeiro momento, meus velhos não levaram fé. Concluíram que a empregada tinha alguma birra comigo, pelo fato de estar lhe dando umas “cantadas” às escondidas. Um belo dia, papai chegou mais cedo do trabalho e me surpreendeu tomando banho agarradinho com a Arno. Uma semana depois foi a vez de mamãe me pilhar de calças curtas.  Ainda assim, as nossas cenas românticas duraram uns seis meses. Por derradeiro, a coisa degringolou. Os autores dos meus dias, chegaram à conclusão que eu havia perdido o juízo. De fato, enlouqueci. Acabei internado como maluco numa espécie de “hospital-sanatório-psiquiátrico” para doentes mentais. Seis anos se passaram, desde que me jogaram aqui. O pai e a mãe que se danem. Careço urgentemente ver, não só isto, reatar os carinhos e afagos com a minha doce Arno. Ou pirarei o cabeção.             

Fonte> Texto enviado pelo autor 

domingo, 19 de novembro de 2023

Trova ao Vento – 005

 

Mensagem na Garrafa – 39 –


Ady Xavier de Moraes
Rio Verde/PR

MULHER

És bela, não porque se fez bela,
mas porque tens no íntimo
o brilho de uma estrela
que durante o dia se esconde
e, durante a noite, no infinito,
mostra tua face que resplandece.

És linda, não porque se fez linda,
mas porque a natureza preparou
para nascer e brilhar.
Tu não precisas de arranjos,
porque uma flor já nasce
com toda a beleza, tenra
e perfumada.

És perfeita, não porque te fez perfeita,
mas porque a vida deu-te de tudo.
A simplicidade de um anjo.
A inocência de uma criança.
O carisma de uma rainha
quando sorri…
sorri com os olhos,
com os lábios, com o coração.

Mostras com muita esperança,
a vontade de vencer na vida
e não sabe da virtude que tens,
por isso, és linda, és bela,
como a flor do meu jardim.