sábado, 2 de dezembro de 2023

Hans Christian Andersen (As flores da pequena Ida)

“Minhas pobres florzinhas estão todas mortas!” disse a pequena Ida. “Elas estavam tão lindas ontem à noite, e agora todas as folhas murcharam. Porque será que isto aconteceu?” perguntou ao colega de escola, que estava sentado com ela no sofá; e de quem ela gostava muito. Ele conhecia as histórias mais lindas, e gostava de recortar as figuras mais engraçadas — corações, com mulheres dançando dentro deles, flores, e enormes castelos onde as portas podiam ser abertas: ele era um aluno feliz. “Mas porque será que as flores estão tão murchas hoje?” ela perguntou novamente, mostrando-lhe um buquê inteiro, que estava todo murcho.

“Você sabe porque isso acontece com elas?” disse o estudante. “É que as flores foram a um baile ontem à noite, e é por isso que elas estão cansadas e pendendo a cabeça.”

“Mas as flores não sabem dançar!” exclamou a pequena Ida.

“Oh, sabem sim,” disse o estudante, “quando anoitece, e nós estamos dormindo, elas dão pulo de felicidade. Quase todas as noites elas vão ao baile.”

“E as crianças também podem ir a esse baile?”

“Sim,” disse o estudante, “as pequenas margaridas, e os lírios do vale.”

“Onde as flores mais lindas ficam dançando?” perguntou a pequena Ida.

“Ora, você não sai sempre dos portões da cidade, perto do grande castelo, onde o rei vem passar o verão, é aí que fica o lindo jardim, com todas as flores? Você já deve ter visto os cisnes, que nadam ao teu encontro quando você oferece a eles migalhas de pão? Há bailes muito importantes lá, pode acreditar em mim.”

“Ontem eu saí até jardim com minha mãe,” disse Ida; “mas todas as folhas haviam caído das árvores, e não havia nenhuma folha nos galhos. Onde estão elas? No verão havia tantas.”

“Elas estão lá dentro do castelo,” respondeu o estudante. “Você devia saber, que assim que o rei e toda a sua corte vão para a cidade, as flores vão correndo do jardim para o castelo, e elas ficam felizes. Você precisava ver isso. As duas rosas mais lindas ficavam sentadas no trono, e então, fazendo de conta que eram o rei e a rainha; todos os galos com cristas vermelhas são colocados um de cada lado, ficam de pé e fazem reverência; eles são os camareiros. E depois, todas as flores belas se aproximam, e começa o grande baile. As violetas azuis representam os pequenos cadetes navais: elas dançam com os jacintos e os açafrões, a quem chamam de jovens donzelas; as tulipas e os grandes lírios de tigre são senhoras dedicadas que ficam olhando se tudo está indo bem na dança, e que tudo ocorra como planejado.”

“Mas,” perguntou a pequena Ida, “ninguém faz nada às flores, por dançarem no castelo do rei?”

“Na verdade, ninguém sabe que isto acontece,” respondeu o estudante. “Algumas vezes, com certeza, o velho administrador do castelo vem algumas noites, para dar uma olhada. Ele costuma trazer um grande molho de chaves; mas assim que as flores ouvem o barulho das chaves, elas ficam bem quietinhas, se escondem atrás de longas cortinas, ficando somente com as cabeças de fora. Então, o velho administrador diz, "Estou sentindo o cheiro de flores aqui," mas ele não consegue vê-las.

“Que legal!” exclamou a pequena Ida, batendo palminhas. Mas será que eu consigo ver as flores?”

“Claro que sim,” disse o estudante; “lembre-se apenas de espiar pela janela, quando você for sair novamente; então, você as verá. Foi o que eu fiz hoje. E lá estava um longo lírio amarelo deitado no sofá se espreguiçando. Ele se imaginava um cavalheiro da corte.”

“Será que as flores do Jardim Botânico também podem sair para ir lá? Elas conseguem percorrer longas distâncias?”

“É claro que podem,” respondeu o estudante; “se quiserem, elas podem até voar. Você já viu as lindas borboletas, vermelhas, amarelas, e brancas? Elas se parecem muito com as flores; e é isso o que elas já foram. Elas voaram de seus caules para o céu lá no alto, batendo no ar com suas folhinhas, como se as folhinhas fossem pequenas asas, e assim voaram. E como elas se comportaram direitinho, elas tiveram permissão para voar durante o dia também, e não tinham que voltar para casa novamente para ficarem sentadinhas em seus caules; e assim finalmente as asas se tornaram asas de verdade. Foi isso que você viu.

No entanto, pode ser que as flores do Jardim Botânico jamais estiveram no castelo do rei, ou jamais ficaram sabendo dos alegres festejos que acontecem por lá a noite. Por isso vou lhe dizer uma coisa: o professor de botânica, que mora perto daqui, ficará muito surpreso. Você já viu ele, não viu? Quando você for ao jardim da casa dele, você deve dizer à uma das flores, que no castelo, todas as noites, há um grande baile. Então, esta flor irá contar para todas as outras, e todas elas irão voar: se o professor então, sair para o jardim, nenhuma flor estará ali, e ele nem conseguirá imaginar para onde elas foram.”

“Mas como uma flor pode contar para a outra? Pois, sabemos que as flores não podem falar.”

“Isso é verdade, elas não podem,” respondeu o estudante; “mas elas conseguem fazer sinais. Você já percebeu que quando o vento sopra levemente, as flores ficam balançando umas para as outras, e mexem suas folhas verdes? Elas entendem esses sinais tão bem como se estivessem conversando.”

“Será que o professor consegue entender esses sinais?” perguntou Ida.

“Sim, com certeza. Um dia de manhã ele veio até o jardim, e viu que havia ali um grande pé de urtiga, que estava fazendo sinais com suas folhas para um lindo cravo vermelho. Ele estava dizendo, "Você é tão linda, e eu te amo muito." Mas o professor não gostava muito dessas coisas, e ele bateu diretamente nas folhas da urtiga, porque as folhas são as mãos das plantas; e ele sentiu que foi picado, e desde então, nunca mais ousou tocar na folha de uma urtiga.”

“Isso foi engraçado,” exclamou a pequena Ida; e ria muito.

“Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança?” disse o chato do conselheiro secreto, que tinha vindo para fazer uma visita, e estava sentado no sofá. Ele não gostava do estudante, e resmungava sempre quando o via recortando as figuras cômicas e engraçadas — que algumas vezes era um homem pendurado numa forca e segurando um coração na mão, para mostrar que ele era um ladrão de corações; outras vezes uma velha bruxa voando numa vassoura, levando o marido no nariz. O conselheiro não conseguia aguentar isso, e então, ele disse, como fez agora, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!”

Mas, para a pequena Ida, o que o estudante havia falado sobre as flores parecia muito divertido; e ela ficou pensando muito sobre isso. As flores estavam com as cabeças penduradas, pois elas estavam cansadas, porque elas tinham dançado a noite toda; podiam até estarem doentes. Então, ela as levou até onde estavam todos os seus brinquedos, em cima de uma bonita mesinha, e a gaveta estava toda cheia de coisas lindas. Na cama das bonecas estava a sua boneca Sofia, dormindo; mas, a pequena Ida disse para ela:

“Agora você precisa acordar, Sofia, e tentar dormir na gaveta esta noite. As pobres florzinhas estão doentes, e elas precisam deitar em sua cama; talvez, então, elas fiquem boas novamente.”

E ela, imediatamente, tirou a boneca; mas a boneca parecia estar zangada, e não disse nem uma palavra; ela estava brava, porque não podia deitar na própria cama.

Então, Ida colocou as flores na cama da boneca, cobriu-as com o pequeno cobertor, e disse que elas podiam dormir descansadas para ficarem boas, depois ela iria preparar um pouco de chá, para que elas pudessem sarar, e poderem se levantar no dia seguinte. E ela puxou bem as cortinas em volta da caminha, para que o sol não incomodasse os olhinhos delas. E durante toda a noite ela não conseguia deixar de pensar no que o estudante havia lhe falado. E quando ela mesma estava indo dormir, fez questão de olhar por traz das cortinas penduradas nas janelas onde ficavam as lindas flores da sua mãe — alguns jacintos bem como algumas tulipas; então, ela sussurrou bem baixinho, “Eu sei que vocês vão ao baile hoje a noite!” Mas as flores faziam de conta que não haviam entendido nenhuma palavra, e não moviam sequer uma folha, ainda assim, a pequena Ida sabia que elas haviam entendido.

Quando ela foi para cama, ela ficou durante muito tempo pensando como seria lindo ver as flores felizes dançando no castelo do rei. “Gostaria de saber se as minhas florzinhas já estiveram lá?” E então, adormeceu. Durante a noite ela acordou: ela tinha sonhado com as flores, e com o estudante que o conselheiro havia repreendido. Estava muito tranquilo no quarto em que Ida dormia; a lamparina brilhava em cima da mesa, e a mãe e o pai dela também estavam dormindo.

“Preciso saber se as minhas flores estão ainda deitadas na cama da Sofia?” pensava consigo mesma. “Ah, como eu gostaria de saber!” Então, ela se levantou, e olhou pela porta que ficou entreaberta; e lá estavam as flores e todos os seus brinquedos. Ela ficou escutando, e então, lhe pareceu ter ouvido alguém tocando o piano no quarto ao lado, suave e divinamente, como ela nunca tinha ouvido antes.

“Agora, com certeza, todas as flores estarão dançando lá dentro!” pensou ela. “Oh, como eu gostaria de ver isso!” Mas ela não ousou sair do lugar, pois ela poderia incomodar o seu pai e a sua mãe.

“Ah, se as flores pudessem vir até aqui!” pensou ela. Mas elas não vinham, e a música continuava a tocar maravilhosamente; então, ela não aguentou mais, porque a música era linda demais; e saiu bem devagarzinho da cama, e tranquilamente caminhou até a porta, e deu uma olhada dentro do quarto. Oh, o que ela viu, era tudo tão esplêndido!

A lamparina não estava iluminando, mas tudo estava tão claro: a lua brilhava pela janela e refletia no meio do ambiente; parecia que era dia. Todos os jacintos e tulipas desfilavam em duas longas filas no chão; não havia nenhuma delas na janela. Todos os vasos de flores estavam vazios. No chão, todas as flores dançavam graciosamente umas ao redor das outras, criando uma corrente perfeita, e abraçavam-se umas às outras com as longas folhas verdes fazendo uma roda. Mas no piano tocava um grande lírio amarelo, que a pequena Ida certamente o tinha visto no verão passado, pois ela se lembrava do que o estudante havia lhe falado, “Como ela se parece com a Senhorita Lina.”

Então, todos riram dele; mas agora, para a pequena Ida, parecia mesmo, como se a longa flor amarela fosse, sem dúvida, a jovem dama; com os seus mesmos modos de tocar — algumas vezes inclinando sua longa face amarela para um lado, outras vezes para o outro lado, e balançando a cabeça no ritmo da encantadora música! Ninguém notou a pequena Ida. Então, ela viu um grande açafrão azul pular em cima da mesa, onde estavam os brinquedos, e ir até a cama das bonecas e puxar as cortinas de lado; ali estavam as flores doentes, mas elas se levantaram imediatamente, e balançavam-se umas para as outras, como a dizer que desejavam dançar também. O velho boneco limpador de chaminés, cujo lábio inferior se partira, ficou de pé e fazia reverência para as flores sorridentes: e elas não pareciam estar doentes agora; ela davam pulos no meio das outras, e estavam muito felizes.

Então, pareceu que alguma coisa caiu da mesa. Ida olhou nessa direção. Era a atrevida vara de bétula que havia pulado! Ela parecia acreditar que também fosse uma flor. De qualquer forma, tudo era muito lindo; um pequeno boneco de cera, com um chapéu tão grande na cabeça igual ao que o conselheiro usava, sentou em cima dela. A vara de bétula pulava entre as flores com suas três pernas, e ela batia o pé bem alto, porque estava dançando a mazurca; e as outras flores não conseguiam dançar essa música, porque elas eram leves demais, e não conseguiam bater o pé com força daquele jeito.

O boneco de cera sobre a vara de bétula de repente ficou grande e longo, deu uma volta sobre as flores de papel, e disse, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!” ora, o boneco de cera era exatamente o conselheiro com o seu longo chapéu, e era mesmo amarelo e mal humorado como ele. Mas as flores de papel batiam-lhe nas pernas finas, obrigando-o a se encolher, e tornar-se novamente um pequenino boneco de cera. Isso era muito engraçado de ver; e a pequena Ida não conseguia parar de rir. A vara de bétula continuou dançando, e o conselheiro foi obrigado a dançar também; não importava se ele quisesse ficar grande e longo, ou permanecer o pequeno boneco de cera amarelo com o grande chapéu preto. Então, as outras flores decidiram ajudá-lo, principalmente aquelas que haviam se deitado na cama da boneca, e então, a vara de bétula parou de dançar. No mesmo instante, ouviu-se uma batida forte dentro da gaveta, onde Sofia, a boneca de Ida, estava com muitos outros brinquedos. O limpador de chaminés correu até a ponta da mesa, deitou de bruços, e começou a puxar a gaveta. Sofia então, se levantou, e olhava ao redor admirando tudo aquilo.

“Está havendo um baile aqui,” disse ela; “porque ninguém me avisou?”

“Você quer dançar comigo?” perguntou o limpador de chaminés.

“Até parece que você é o tipo ideal para dançar!” ela respondeu, e virou as costas para ele.

Então, ela sentou na gaveta, e achou que uma das flores viria convidá-la para dançar; mas nenhuma apareceu. Então, ela tossiu, “Hum! hum! hum!” mesmo assim ninguém veio. O limpador de chaminés dançou sozinho, e isso não era tão mau.

Como nenhuma das flores parecia notar Sofia, ela então, pulou da gaveta e foi direto para o chão, fazendo um grande barulho. As flores então, vieram todas correndo, e perguntaram se ela tinha se machucado; e foram todas muito educadas com ela, principalmente as flores que haviam se deitado em sua cama. Mas ela não havia se machucado; e todas as flores de Ida lhe agradeceram pela cama deliciosa, e foram muito gentis com ela, e a levaram até o meio do salão, onde a lua brilhava, e dançaram com ela; e todas as outras flores fizeram um círculo em torno dela. Ora, Sofia estava feliz, e disse que elas podiam ficar na sua cama; ela não se importava nem um pouquinho de dormir dentro da gaveta.

Mas as flores disseram, “Nós te agradecemos de todo o coração, mas nós não vivemos por muito tempo. Amanhã já estaremos totalmente mortas. Mas diga à pequena Ida para que ela nos enterre fora do jardim, onde fica o canário; então, nós despertaremos de novo no verão, e seremos muito mais lindas.”

“Não, vocês não podem morrer,” disse Sofia beijando as flores.

Nesse instante a porta se abriu, e um montão de flores maravilhosas entraram dançando. Ida não conseguia imaginar de onde elas tinham vindo; certamente todas elas eram flores que tinham vindo do castelo do rei. Na frente de todas vinham duas rosas gloriosas, usando coroas douradas na cabeça; eram o rei e a rainha. Depois vieram os mais lindos goivos e cravos; e eles faziam reverências em todas as direções. Todos estavam dançando. Grandes papoulas e peônias vinham soprando vagens de ervilha até ficarem com a cara vermelha. Os jacintos azuis e as pequeninas campânulas-brancas vibravam como vibram os sinos. A música era maravilhosa! Depois iam chegando muitas outras flores, e todas dançando juntas; as violetas azuis e as róseas primaveras, as margaridas e os lírios do vale. E todas as flores se beijavam. Era lindo de se ver!

Até que as flores desejaram boa noite umas para as outras; então, a pequena Ida, também foi para a cama, onde ela sonhou com tudo que tinha visto.

Quando ela acordou na manhã seguinte, ela correu rapidamente até a pequena mesa, para ver se as flores ainda estavam lá. Ela puxou de lado as cortinas da pequena caminha; e lá estavam todas elas, mas elas estavam muito murchas, mais do que no dia anterior. Sofia estava deitada na gaveta onde Ida a havia colocado; ela parecia dormir profundamente.

“Você se lembra do que você queria dizer para mim!” perguntou a pequena Ida.

Mas Sofia estava embevecida, e não disse uma única palavra.

“Você não foi boazinha!” disse Ida. “E no entanto todos dançaram com você.”

Então, ela pegou uma pequena caixa de papel, onde lindos pássaros estavam pintados, e a abriu, e colocou as flores mortas dentro dela.

“Este será o lindo ataúde de vocês,” disse ela, “e quando os meus primos da Noruega vierem me visitar de vez em quando, eles me ajudarão a sepultá-las fora do jardim, para que vocês floresçam novamente no verão, e se tornem mais lindas do que nunca.”

Os primos da Noruega eram garotos muito inteligentes. Seus nomes eram Jonas e Adolfo; o pai deles havia dado a eles dois novos arcos, e eles haviam trazido os arcos para mostrar para Ida. Ela contou para eles sobre as pobres florzinhas que haviam morrido, e então, eles tiveram permissão para sepultá-las. Os dois garotos iam na frente, com seus arcos nos ombros, e a pequena Ida ia logo atrás com as flores mortas dentro da linda caixa. Fora do jardim uma linda sepultura foi aberta. Ida primeiro beijou as flores, e depois as colocou na terra dentro da caixa, e Adolfo e Jonas lançaram seus arcos sobre a sepultura, porque eles não tinham armas nem canhões.

Fonte: Hans Christian Andersen. Contos de Andersen. Publicado em 8 de Maio de 1835. Disponível em Domínio Público. 

Nilto Maciel (Tony River)

Mocinho ainda, rósea tez de espinhos, frouxas calças e olhar enigmático, Antonio Siqueira partiu para a capital, não por querer ou tal fazer, porém pela simples necessidade do pai de pôr nos eixos as finanças arruinadas nos secos e molhados. Debalde o sonho, debalde o esforço. Não tanto por ser chegada a hora extrema do velho, dez anos depois, mas por aquilo que só os gênios tentam explicar semanalmente nos tablóides da oposição.

Único varão de uma prole molenga e branca, apesar das barbas crescidas e da voz de locutor da mãe, Toninho se fez senhor herdeiro de uma bodega, que aos poucos transformou em bar. Frequentador de praias e boates, aprendeu noções elementares do viver moderno, em meio às jovens prostitutas da classe-média e aos pueris mocinhos de cabelos compridos e justas calças. Mudou de esquina e aproximou-se da orla marítima, onde pesadas máquinas enegreciam a areia. E, em mudando de esquina, fez do bar uma lanchonete-bar. Um mês depois, “Ocean Boîte”. Oceano que espumou em noite de frio e tenebrosa onda avassalou o red-dancing-saloon de Tony.

Que, em noite de fumaças e vapores, à sua bela amante prometeu fazer renascer das águas, não do mar, mas de um rio, por isso “River Boîte”, I am Tony, girl, sua casa de pastos bastos, gastos castos. Um rio de Palma, que, por certo, existiria ainda, e nele edificaria sua vitória sobre a moral dos ancestrais. Numa folha de papel de carteira de cigarro rabiscou o croquis de uma cidade-mito, tal qual imaginada na infância. Dentro, a arquitetura moderna de uma superboate. Ruas tantas, casas e igrejas, mesquitas, templos pagãos e lojas maçônicas, pois minha cidade é cosmopolita e dada à prática de quantas religiões, seitas e crenças imaginar possa você, minha pequena e doce Pepita.

Porém na geografia palmense rio não havia, nem nunca houve, e disto se espantou a Pepita de busto montanhoso, lábios floridos e olhos marinhos. De que valeram, no entanto, tais espantos pelo não-haver, se maior espanto foi o ver uma cidade mais de igrejas feita que de casebres habitada? E as mesquitas e não sei o quê, onde agora estão? E uma longa história de guerras santas, aprendidas em almanaques de laboratórios e sem “Você sabia que?”, disse da destruição vandálica e da reconstrução arqueológica da antiga cidade, hoje ordeira, modelar e turística.

De tanto inventar e sonhar, depois de tanto precisar, descobriu Tony, quase no longe do conglomerado de igrejas, já nas bordas da antiga floresta, uma igrejola feia, desbotada de cor e abandonada de crença. Embora solitário, escancarou-lhe as podres portas e espantou os morcegos e demônios que lá viviam em festival sem fim, desmatou-lhe os púlpitos, os altares e as colunas de mármore. Derrubou-lhe as torres tão fácies de ruir, a lembrar as ameaças infernais ouvidas em sermões hitlerianos há anos, muitos anos. E deu-lhe aspecto de casal abandonado e placa de posse e propriedade suas, senhor de latifúndios, prédios e indústrias.

Em nome da expansão urbana e do turismo, o secular alcaide autorizou o desmatamento da região, ligando-a à sede da comarca por uma via calçada e iluminada. Assim, a velha igreja foi, pouco a pouco, se fazendo casa de lazer ou prazer, de música e bebida, de danças e beijos. Nascia das ruínas a “River Boîte”, luzes vermelhas, cervejas geladas, músicas estridentes e danças modernas.

Na festa de inauguração ocorreu, porém, coisa esquisita, talvez o marco da brusca mudança por que passou Palma. Quatro casais de jovens chegaram, mãos dadas, a cantar e sorrir. Os filhos felizes do doutor, do juiz, do prefeito, do farmacêutico, do dono do clube e dos vendedores de arroz e feijão pros vendedores de arroz e feijão. Filhos queridos da raça nascida por entre as igrejas, famintos do novo, ansiosos de saber o prazer de beber whisky escocês ou cerveja gelada, de dançar ou pular rock na roça e falar o inglês dos galantes cowboys. Mas por nada disso saberem, sentaram e cantaram cantigas antigas, valsas medidas. E beberam e fumaram, e cantaram e sorriram. Logo porém a vitrola gritou uma música jamais ouvida em Palma. E ouviram e aprenderam a música difícil importada por Tony da grande cidade.

Tanto beberam cerveja gelada e gostosa, que as bexigas se encheram. Com tal desprazer, se olharam perplexos. Onde ir despejar?

Onde o banheiro? Onde o banheiro? Perguntavam-se para não desmanchar o prazer de ouvir a música estrangeira. Remexeram as cadeiras, as pernas tremeram, beberam e beberam, que dançar não podiam ou talvez não sabiam.

Lá pelas tantas, o mais jovem de todos afastou a cadeira e aos fundos do bar dirigiu-se. Duas portas, porém, estamparam-lhe nos olhos a dúvida: ladies, gentlemen. Será esta ou aquela a que devo empurrar? Assustou-se ao ouvir o próprio nome gritado por um seu companheiro.

Entrementes nas mesas as moças cochichavam, sorriam, cantavam e contavam histórias sem fim. Duas delas, porém, deixaram as outras e os outros e saíram, mãos dadas, em busca do bidê confidente. E ao verem os dois bigodinhos abraçados ante a porta do quartinho das ladies, entraram depressa no logo contíguo.

Nessa noite de festa, os jovens farristas de tudo falaram: de boys e de girls, cervejas e whiskys, rock’n roll. Vocês já sabiam que ladies e gentlemen? que nossa cidade é muito avançada, a capital do sertão? Pois aqui tem boate, cerveja, roque, meu bem, graças ao nosso bom Tony River.

Abraçados, felizes, os aprendizes de pândego divisaram no lusco-fusco uma figura de negro que se aproximava, a sorrir e beijar a doce Pepita. E ouviram cânticos, sermões e sinos. Pasmados, se ajoelharam aos pés do fantasma, beijaram-lhe as botas e choraram e caíram aos pés de Antonio Siqueira, que, aos pulos, subiu as escadas de madeira, de volta às antigas torres da velha igreja.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “07”

 

Mensagem na Garrafa – 44 –


Paulo Coelho
Rio de Janeiro/RJ

TEMPO CERTO

De uma coisa podemos ter certeza:
de nada adianta querer apressar as coisas;
tudo vem ao seu tempo,
dentro do prazo que lhe foi previsto.
Mas a natureza humana não é 
muito paciente.
Temos pressa em tudo e aí acontecem
os atropelos do destino,
aquela situação que você mesmo provoca,
por pura ansiedade de não
aguardar o tempo certo. 
Mas alguém poderia dizer:
Qual é esse tempo certo?

Bom, basta observar os sinais.
Quando alguma coisa está para acontecer
ou chegar até sua vida,
pequenas manifestações do cotidiano
enviarão sinais indicando o caminho certo.
Pode ser a palavra de um amigo,
um texto lido, uma observação qualquer.
Mas, com certeza, o sincronismo se encarregará
de colocar você no lugar certo,
na hora certa, no momento certo,
diante da situação ou da pessoa certa.

Basta você acreditar que nada
acontece por acaso. Talvez seja por
isso que você esteja
agora lendo estas linhas.
Tente observar melhor o que está a sua volta.
Com certeza alguns desses sinais
já estão por perto e você nem os notou ainda.
Lembre-se, que o universo sempre
conspira a seu favor quando você 
possui um objetivo claro e uma disponibilidade 
de crescimento.

Coelho Neto (O Vaqueiro Firmo)

Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.

Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça. O que ele sabia de histórias, e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam ou arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos. E não só história dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a iara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do Sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência. Algumas eram inventadas por ele, diziam; outras o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.

Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe daria tanta idade. O diabo era o reumatismo que não lhe deixava as pernas. No seu tempo ninguém levava o melhor ao Firmo do Curral Novo. Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso cavalo, o laço em volta da cinta, a aguilhada firme sobre a coxa coberta de couro cru, perdiam-se de amor por ele.

Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.

Velho, embora, "ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito", como ele próprio dizia sorrindo som os seus dentes limados, agudos como pontas de flechas. Apesar de alquebrado e enfermo andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.

Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e de longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola a tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?! As tabaroas (mulheres acanhadas do interior) morenas sorriam com os olhos fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o cantador as fosse pisando no sapateado. Por isso Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais de uma vez, o descante acabou varrido à faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado – nunca fugiu de arrelia fosse com um, fosse com dez ou mais.

Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado, pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:

– Isso, ahn! Isso, foi o diabo!

Firmo "vivia encostado no tempo de dantes", a saudade era o seu conforto. "Hoje em dia que é que a gente vê? Má língua e moleza só", dizia e citava os valentes de antanho e mostrava as velhas gabando-lhes a beleza que a idade fanara:

"Serapião, homem que nem o diabo!... Ana Rosa, essa curumba (moça de baixa condição social)... foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela. Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente. Eu também pisei duro, ora!"

Firmo vivia das recordações. Passava os dias caminhando de um para outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.

À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: "Estava vivendo..." dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho. Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro. Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.

De repente aparecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava... uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres: um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo, às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que apartava os dois à ponta de vara. E a marcha aproximava-se morosa.

Firmo ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para outro, aspirando sôfrego. De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, bradando:

– Eh! eh! eh cou! ruma! ruma! Eh! lou...

E ficava longo tempo excitado, a olhar. Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto que as raparigas, que andavam na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho. Mas ninguém o acomodava antes de ser laçado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado, Firmo suspirava baixinho:

– Ah! Nossa Senhora! Meu tempo!

Foi pelo Natal que o vi pela última vez. Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sitio. Nas casas dos escravos, as velhas, à noite, ensaiavam as crianças. Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.

Firmo estava doente, mal podia mover-se: passava os dias na rede. Subi a vê-lo, uma noite, justamente na véspera do grande dia. Encontrei-o deitado, fumando, os olhos semicerrados.

– Eh! Vaqueiro velho... Então que é isso?!

– Estou derrubado, patrãozinho.

– Mas que diabo tem você?

– Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.

– Ora qual...

– Eu é que sei como me sinto, patrãozinho. Se até o pito me faz nojo...

– Pois eu preparei uma surpresa que te vai fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude. Quem está aí fora? Adivinha...

– Ah! patrãozinho, alguma alma boa. Quem há de ser?!

– Raimundinho.

O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:

– E onde está esse negro que não entra?

– Boa noite à gente da casa! – disse da porta o cafuzo.

– Entra, negro!

O cafuzo, um codoense (natural de Codó/MA) de fama, atravessou o limiar da porta:

– Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?!

– Sim porque eu não vi quando ela entrou... quando não! Então, negro, que é que vamos fazendo?...

– Vim fazer a minha festa. Dizem que vão queimar fogaréus no Curral Novo.

– Como vai Noca?

– Boa.

– E Ana? Está na cidade, mais o pai?

– Hen, hen. – afirmou o cafuzo.

– Negro, você não vai daqui hoje. Ah! Patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo. Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca...

– Está encordoada?

– Ó danado! Onde você viu viola de homem sem corda? E afinada. Ajunta.

O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pelas cordas.

– Passa pra luz, cafuzo.

– Lá vou.

Sentou-se no centro da sala, cruzou as pernas e, tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja.

– Anda com Deus.

– Lá vai; pigarreou e desferiu:

No coração de quem ama
Nasce uma flor que envenena"

– Eh! - gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:

"Morena, essa flor que mata
Chama-se paixão, morena."

– Pega, negro, não deixa o verso no chão!

De fora, contínuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.

Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede com esforço, arrastando a voz fraca:

– Canta, canta mais, cafuzo... Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga. Canta.

Era tarde quando desci o outeiro. Raimundinho lá ficou cantando.

No dia seguinte, à hora em que saía o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viajeiro:

– Raimundinho, como vai ele?...

De longe apontou a palhoça:

– Sim.

O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes:

– Às quatro da manhã... Atirei um verso e disse, para bulir com ele: Pega, velho! Não respondeu. Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem para deixar um verso no chão... Fui ver, coitado!... Estava morto. E deu esporas para que eu não lhe visse as lágrimas.

Subi ao outeiro. Pobre Firmo! Lá estava no fundo da rede, cercado de gente. Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos. E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que veem a morte passar, à noite, com a foice de rastro, através das campinas! Bem que choraram nessa noite os bois: de certo viram a morte entrar na cabana de Firmo.

Fonte: Coelho Neto. Sertão. Publicado em 1926.

Silmar Böhrer (Poemas Avulsos)


CONFÚCIO E EU

Tenho cometido alguns sonetos
até mesmo gostosinhos,
creio que Confúcio nos analectos
rivaliza com meus versinhos.

São versos despretensiosos
escritos bem à revelia,
alguns deles, saborosos,
com gostinho de ambrosia.

Se a carpintaria é pobre
com versos de paus-quebrados,
a intenção é a de um nobre

Destes tantos que se assanham
nos momentos inspirados
em que as musas acompanham.
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ESQUECIDOS?!

Aqueles versos perdidos
entre os meus alfarrábios
podem não ser versos sábios
nem são versos esquecidos.

Na gestação deles tantos
sempre há os demorados,
pensamentos depravados,
rimas más, sem encantos.

Para a catarse sem pressa
ficam um tempo guardadinhos
no (quase) baú, lá à beça . . .

Pois versos são como as gentes,
purificam bem devagarinho
remindo maus antecedentes.
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O ÁS DO SONETO
(Ao Dr. Miguel Russowski, amigo)

Criatura sempre envolvente
nas planuras deste mundão,
desde cedo um competente,
fez-se hábil cirurgião.

Sendo um vivente facetado,
poliedro multilavra,
agita este mundo agitado,
também é operário da palavra.

Dos seus versos não vou falar,
pois doçuras eu não espalho,
verdadeiramente prometo,

Apenas algo eu quero evocar,
que se existe o ás do baralho,
ele é o nosso ás do soneto.
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OH! MAGIA

Ninguém a desafinar,
a orquestra cedo cantando,
corruíras, tico-ticos, sabiá,
joão-de-barro, bem-te-vi vibrando.

Uma sabatina em festa
então cá(qui) amanheceu,
os passarinhos na sua gesta
dão ao mundo o que Deus lhes deu.

Eis-me loguinho a perguntar
nesta insólita romaria
em que vamos nós a navegar,

Que outra mágica magia
haverá que se possa igualar
aos passarinhos em sinfonia.
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RIMAS

Ando à procura de rimas
para algum soneto bissexto,
arrisco praticar incesto
usando íntimas enzimas.

O mais pobrete vassalo
dos vassalos do verso,
vasculho rimas no universo
pra enfeitar algum regalo.

Mesmo com a inspiração escassa
eu sigo fazendo devassa
em busca de alguma rima,

Prescruto fontes a esmo,
versos dentro de mim mesmo
pra erigir uma obra-prima.
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TRANSCENDÊNCIAS

 Ora (rireis), ouvir asneira,
o poeta Bilac não cantaria,
se as estrelas ele ouvia,
a verdade é verdadeira.

Tenho ouvido as estrelas
nestas minhas romarias,
o Cruzeiro, as Três-marias,
preciso ouvi-las e vê-las.

Num mundo de turbulências
busco mesmo transcendências
para uma vida de bonança,

Em momentos aflitivos
as estrelas são lenitivos
e bálsamos de esperança.
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Fonte: Recanto das Letras do poeta.
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=43868&categoria=Z

Newton Sampaio (Delírio do Zé Carijó)

— Deixe de maldade, rapaz! Pra que judiar do animal? Não sabe que isso machuca as pernas do bicho?

Geraldo, repreendido pelo pai, desistiu da proeza que queria praticar — amarrar uma lata de querosene na cauda do cavalo, que era tão manso, para depois gozar a barulheira, quando a corrida desabalada a fizesse sacolejar doidamente.

Desistiu dessa proeza, mas enfiou-se pelo fundo do quintal, à cata de novos motivos de travessura.

Zé Carijó abanou a cabeça.

— Não tem mais jeito, mesmo.

E, empunhando a foice, continuou a fazer ponta em um pedaço de peroba que serviria para ultimar a cerquinha do paiol de milho.

— Precisa ser posto em colégio de padre ou em quartel de polícia. Cruz-credo! Não há quem possa com as suas ruindades...

De dentro de casa, veio uma voz de mulher:

— Nhô Zé! Posso pôr a janta?

— Pode, Rosália. Já ‘tou com a barriga nas costas.

Largou a ferramenta. Foi até o poço tirar água para lavar as mãos. Espiou o céu.

— Quá! Nem sombra de chuva! Nem parece janeiro...

O jantarzinho foi servido no prato de folha.

— Cadê Geraldo? Vá ver se ele tá aí por perto, Rosália. 

O menino chegou com um sorriso velado, cínico, nos lábios.

— Coma depressa e vá à casa do compadre Lucas levar um recado.

Quando o garoto, já nutrido, saiu com destino ao velho Lucas, Zé Carijó puxou uma cadeira até a porta do terreiro. Chamou Ritinha, que andava pelos quatro anos.

— Filha, venha cá sentar no colo do pai.

Fora o último presente de Rita, pois, quando a criança nascera, a mulher partira desta vida para melhor.

Zé Carijó lembrava-se bem. Tinha sido difícil consolar-se com a perda de sua companheira fiel de doze anos. Enfim... Como assim rezava a vontade de Deus... Achava Ritinha (ele somente) infinitamente parecida com a mãe.

Até o mesmo nome lhe botara. E a fizera criar com carinhos requintados. Era o seu “ai Jesus”, como dizia perdidamente o Geraldo — na petulância de seus quinze anos —, que não podia compreender nem justificava a adoração do velho pela caçulinha. Até a “sinhá” Rosália — a irmã mais nova da Rita, e que passara a morar ali desde o nascimento da criança — de vez em quando gracejava com o exagero daquele amor paternal.

— Livra, nhô Zé! ‘Té parece princesa...

Zé Carijó, com a filhinha no colo, relembrava o seu jeito de vida. Não fossem a saudade da companheira e as peraltices do Geraldo (matutava), e o mundo não lhe seria mau.

Com a fuga do sol, o céu ficou todo cheinho de estrelas. E o caboclo, até muito tarde, deixou-se ficar ali, na porta da casinhola, pensando na sua Rita, que devia estar bem pra lá das estrelas, e afagando a menina do seu coração, a Ritinha, que ressonava, alheia à saudade do pai, alheia aos astros longínquos, piscantes, aos urutaus que enchiam a noite de assombrações — alheia à vida. 

Entrava mês, saía mês, e a existência do sertanejo arrasta-se no ritmo de sempre. Há certas pessoas que vivem assim: sem grandes dissabores nem gozos notáveis — o pêndulo da sensibilidade oscilando isocronicamente, suavemente de um lado a outro, na amplitude acanhada de seu movimento, sem jamais se desequilibrar no paradoxismo dos extremos.

Geraldo completara os dezenove anos. E Ritinha andava beirando já a casa dos oito. Foi por esse tempo que a pacatez do Zé Carijó começou a descambar francamente. O rapagote, cujos instintos perversos dia a dia se acentuavam, burlava a vigilância do pai. E, certa vez, sumiu do lugar, depois de praticar um roubo vultuoso contra o próprio padrinho, o velho Lucas.

Para Zé Carijó, o choque foi inimaginável. Seu nome, sempre tão honrado, manchado agora por esse malfeito do filho! 

Por muitos dias ficou abobado, indiferente, com a cara cheia de sulcos, e com uma vergonha tremenda pondo-lhe tremores na alma. Não quis mais aparecer a ninguém. Sentia-se sem o direito de olhar os outros homens. E, um belo dia, arrumou os tarecos, vendeu a moradia, pagou as poucas dívidas, e zarpou para longe, sem dizer a ninguém o destino que tomava.

A Ritinha — coitada! — chorou, chorou como nunca. Tinha amor pela casinhola onde nascera. 

Zé Carijó — mais a filha e a cunhada — tocou-se pros lados de São Jerônimo, lá no fundo sertão paranaense. E começou nova vida. Criando porcos. Plantando milho. Vendendo os presentes que a terra lhe dava.

Ninguém o conhecia ali. Achou até de bom aviso trocar de nome, embora como um eco, soubesse da regeneração do Geraldo. E, para todos os efeitos, passou a atender por “Zé de Minas”. 

Ritinha ia crescendo. Franzina sempre, tomava, no entanto, um arzinho simpático. E para Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — que, apesar de não ser muito velho, andava já com a cabeça branqueando cada vez mais — para o Zé Carijó ela era o supremo consolo, na maturidade amarga de sua vida. Fazia-lhe por isso os melhores carinhos, aguardando uma possibilidade para levá-la p’ra perto da cidade.

Um dia, começou a chegar àquelas bandas o eco das façanhas de um tal João dos Corações. Assim o alcunhara o povaréu transido, porque — era voz corrente — quando o bandoleiro assaltava inopinadamente uma vivenda qualquer, depois de levar a efeito uma razia impiedosa, matava uma das moças, se as houvesse, deixando-a de peito aberto, à mostra. Um tipo mórbido, não havia dúvida.

Vencê-lo, e a seu bando, a raquítica polícia do interior não podia. E o já famoso João dos Corações continuava a assustar o bom povo do sertão, pilhando as fazendas desprotegidas e, quando possível, obedecendo ao imperativo de seu sadismo criminoso.

Quando uns vizinhos contaram ao Zé das Minas a história do bandido, ele não demonstrou susto.

— Que adianta esse João dos Corações vir a este rancho? Eu sou um coitado, sem haveres quase...

Numa noite, em que fazia um luar muito bonito, Zé das Minas se viu coagido em ir a um guardamento na casa de um conhecido que morava a menos de meio quilômetro.

Lá se foi, recomendando expressamente a Ritinha e a Rosália que não abrissem a porta a ninguém.

— Não tenham medo. Fico lá só meia hora, pra cumprir a obrigação. Logo ‘tou de volta.

Já de regresso, quando Zé das Minas deixava a casa do amigo enlutado, um grupo de cavaleiros passava pela frente de sua casa.

— Chefe! Luz! (E apontando o ranchinho). Deve ter coisa...

Desceram silenciosamente alguns homens. Examinaram as armas. Tudo no pontinho de bala, se fosse preciso. Forçaram rápida e violentamente a porta. O vento entrou pela casa, brusco, apagando a chama da lamparina.

As duas mulheres nem tiveram forças pra gritar, de tanto susto. Imobilizaram-se, no escuro tenebroso, pois, até lá fora, uma nuvem cúmplice tinha estorvado a luz da lua. Uma logo rolou pelo chão, ensanguentada. A outra, incólume, mas exânime, caiu no fundo da cozinha.

A pilhagem quase não trouxe lucro aos assaltantes. Ainda assim, uma ou outra coisa, apanhada na obscuridade, tinha bastante serventia. Quando os primeiros bandidos se dispunham a vir para o terreiro ensombrado, um deles procurou o corpo da moçoila. Rasgou-lhe, com suma perícia, o lado esquerdo do peito. Arrastou-a depois para fora, no mesmo instante em que o Zé das Minas, de volta, atravessava a porteirinha próxima.

Sentindo a aproximação de alguém, o bandoleiro largou a vítima. Mas, ao virar-se, a lua, desvencilhando-se da nuvem importuna, iluminou-lhe em cheio a feição sinistra.

E o Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — teve tempo de reconhecer o fugitivo.

— Geraldo!...

Subiu uma onda incrível... Era piedade. E também ódio.

— Corre danado! Monta! Vai-te, bandido!

E a garganta apertou.

Zé Carijó estacou. Compreendeu tudo, num segundo. E sentiu na cabeça uma tonteira invencível. Reclamou energia extrema para das alguns passos. Chegou-se perto do corpo abandonado no terreiro. E viu o peito da sua Ritinha todo golpeado, exibindo um pedaço de coração, que parecia querer pulsar, ainda, o ritmo instintivo da vida.

Fez intenção de se baixar e levantar nos braços a filhinha de sua alma. Mas não o conseguiu. Sumiram-lhe as forças. O caboclo arregalou os olhos. Esfregou as pálpebras. Mas tudo começou a embaralhar. Pareceu-lhe que, do peito da moça, saía uma coisa pequenina, pequenina, que pouco a pouco aumentava para formar um coração bem da altura da sua Ritinha.

A perobeira, que havia ali perto, se pôs a mudar também de jeito.

O vasto matagal distante saiu do lugar e veio diminuindo, até desaparecer ali a dois passos. A luz, que estava muito clara, arreganhou-se toda em grandes curvas cordiformes, e, despencando do céu, vinha chegando, devagar, pra perto do caboclo.

Zé Carijó, com fisionomia agônica, no supremo esforço de sua vitalidade, traçou no ar, com o dedo longo, o contorno exato de um enorme coração. E caiu de borco, ali mesmo, rente ao corpo inanimado da filha.
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Publicado originalmente no Correio dos Ferroviários. Curitiba, maio de 1934.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

Aparecido Raimundo de Souza (O menino e os encantos do primeiro amor)

ANTES DE CRUZAR as portas da matriz da igreja, findada a missa dominical, o garoto chegou para a menina, com um bilhetinho dobrado na mão esquerda e uma rosa vermelha escondida na outra que trazia cruzada atrás das costas. De perto, ela era, sem dúvida alguma, bem mais bonita e divinal, que vista às escondidas, de longe, com a ajuda do binóculo do pai. Rostinho de cinderela, pose de princesa, sem falar na maneira como se vestia: tão elegante e esbelta, como uma rainha dos contos infantis.

— Oi!

— Oi!

Na voz embargada, podia ser notada uma emoção indescritível. Havia um encantamento colossal e assombroso. Do sorriso emanava uma pureza bucólica que dava a impressão de se abrir em um leque de sonhos dourados e quimerados em direção a uma vida próspera e harmoniosa.

— Mandaram eu entregar estas coisas a você.

Trêmulo e indeciso, praticamente o guri jogou o bilhete que escrevera e mais vacilante ainda, atirou a rosa aos pés da criatura.  Ela sorriu com um ligeiro toque de elegância, ao tempo em que as suas maçãs faciais ruborizavam. No instante em que a preciosa esticou as mãos para receber os objetos, ele sentiu uma vontade imensa de agarrá-la num abraço inesperado e beijá-la longamente, calmamente. Seria, para ele, depois, um desejo absconso que guardaria no seu desejo eterno como um revérbero imorredouro. Todavia, um medo infantil, um tormento mesclado por mil fantasmas, não lhe deixou levar adiante o gesto pretendido. A jovenzinha, em voz maviosa, indagou “quem fora que mandara fazer aquela entrega,” mas o espavorido travesso andava longe. Corria, às carreiras, desembestadamente, feito um doidinho pelo meio dos carros estacionados, até o instante em que sumiu na esquina próxima. Temia levar um fora, um não, um chega pra lá, e, assim, ver as suas alucinações rolarem por água abaixo. 

A menina, em casa, vinte minutos depois, se acomodou na rede estendida na varanda que se fazia adornada por um jardim imenso. A residência onde morava, frenteava (do outro lado da calçada), com um parquinho. Todas as manhãs e finais de tarde, crianças das mais variadas faixas de idade vinham gastar o tempo brincando com a vida aos regozijos dos balanços e gangorras, enquanto as mães e as babás tricoteavam em seus celulares. De repente ela olhou para um ponto fixo equidistante, como se temesse a presença de alguém a observando. Na verdade, poderia ser (e, de fato, não outro), senão o tal menino que lhe fizera o lisonjeiro galanteio. Possivelmente o engraçadinho sapeca a estaria reverenciando. Se abriu inteira, numa fervura inquietante. Jurou, atrelada às suas emoções que não descansaria enquanto não descobrisse quem se atrevia a mandar recadinhos de amor a uma charmosa que mal saíra dos desabroches das fraldas. Sua mãe, por experiência própria, há muito sabia deste amor oculto. Nada dizia, só observava. E se enamorava dos seus tempos de juventude.

Entretanto, uma coisa se fazia incógnita. Ela desconhecia, ou pelo menos fingia ignorar que a sua encantadora mocinha, apesar da pouca idade, alimentava no peito um sentimento muito vivo e latejante que fazia um outro ser, possivelmente não muito distanciado dali, disparar e voar longe quando via a sua filhota por perto. A se ver, de fato, sozinha depois de se certificar que a mãe e o pai não a flagrariam, a donzela abriu cuidadosamente o bilhetinho mal escrito numa metade de folha de caderno: 

“Você é o vento que mexe nas folhas e balança as cortinas de seu quarto. Este sopro é o meu desespero batendo descompassado, querendo pular tresloucado de dentro do meu ser só para ficar escondido, quietinho, bem fundo, dentro da quentura que brota das entranhas de seu corpo. Saiba que te gosto muito. Assinado: seu admirador secreto.”

Logo abaixo, um coração desenhado e, ao lado, uma observação sublinhada com lápis de cor:

“A rosa que você está segurando agora é o símbolo do nosso futuro amor. Você será minha. Até lá, sinta o perfume dela e se embriague com o cheiro da paixão inimitável que sinto por você.” 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 1 -

Trova e imagem: Facebook do trovador
Imagem de Fundo: arte por JFeldman


Mensagem na Garrafa – 43 -


Gabriela Pais
Almada/Portugal

DEVANEIO

Quem não sonha ser princesa,
montar em branco alazão
encontrar grande paixão.
Sobre a luz da natureza
a quimera fica presa,
a cabeça em devaneio,
sonha de coração cheio.

Quem viaja com o vento
quem não vive de lembranças
e queremos ser crianças,
entressonho de espavento,
aspiração de momento,
percorrer montes e vales,
por amor sarar os males.

Cada sonho uma mensagem,
o encontro duma aventura
em mar crispo e com bravura,
a mente segue viagem
por vezes ganha vantagem,
fica liberado o amor
devaneio sai vencedor.

Fértil imaginação
fugir da realidade
almejar felicidade,
firmar realização
de melhor mundo, ilusão.
Será princípio de loucura
sonhar o que se procura?…