sábado, 16 de dezembro de 2023

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) – 3 –


IMAGINAÇÃO

Partirei bem mais triste e tão sozinho,
deste mundo feliz que tanto amei,
ao lembrar da alegria do meu ninho,
nos instantes felizes que passei.

Peço a Deus que me mostre outro caminho,
sem fronteiras, por onde eu passarei,
de onde eu possa enxergar mais um pouquinho
deste mundo que um dia eu deixarei.

Não desejo partir. Pai, nem tão cedo,
mas eu sei que esta vida tem segredo
que jamais a ninguém vai revelar.

O que quero é esquecer meus pesadelos,
curtir muito esta paz dos meus cabelos
no meu simples, feliz e doce lar!
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NOITE ENLUARADA

Quando a lua clareia a noite escura,
rasga o manto das trevas seculares,
eu contemplo a mais linda criatura,
versejando, no topo dos altares.

Poetisa que inspira, com brandura,
nossos prantos, soluços e cantares...
Lua cheia, no céu, doce ternura,
que enfeitiça o poeta, encanta os mares.

Da varanda do quarto, abro a janela,
para vê-la, no céu, tão pura e bela,
desfilando sozinha na amplidão...

E eu, sozinho, em meu quarto, estendo os braços,
adormeço, matando os meus cansaços,
contemplando o luar na solidão!
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OBSTINAÇÃO

Quando eu vejo, no espelho, a crueldade
que uma réstia do tempo me causou,
eu percebo, de fato e na verdade,
que o meu tempo de infância já passou.

Até hoje eu carrego, com saudade,
tudo aquilo que o tempo me levou.
Dos feitiços banais da mocidade,
a lembrança foi tudo que restou.

E ao lembrar desta infância tão querida,
nunca esqueço do amor de minha vida,
descoberto na infância, certa vez.

E este amor que, na vida, foi meu sonho,
na velhice me torna mais risonho,
explodindo o meu lar com sensatez!
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SENTIMENTO

Quando o dia se apressa e vai embora,
num silêncio que fere e que angustia,
a tristeza me invade e me devora,
nos instantes de dor do fim do dia!

Como quem diz adeus e triste chora,
vai-se o sol, num delírio de agonia,
e a cortina da noite, Deus decora,
com luz tênue, de vã melancolia.

Já distante, nas trevas, muito além,
a tristeza me acena, como quem
se despede de alguém que já morreu.

Foi apenas a luz de um dia lindo,
que cansada, acenou quase dormindo,
e, nos braços da noite, adormeceu!
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 TEU RETRATO

Na moldura, contemplo o teu retrato,
que me deste sorrindo, um certo dia,
e por vê-lo, confesso e te relato,
que ainda vivo este sonho e fantasia.

Passa o tempo e não passa esta alegria
que conservo na mente e não maltrato,
porque sem conservá-la, a nostalgia,
transformava este sonho em sonho ingrato.

Vendo o teu rosto lindo e sedutor,
como eu lembro da força deste amor,
nestes seus lábios ternos, sensuais...

Ah! Que pena que o tempo nada sente,
e o que guardo comigo eternamente,
é uma foto, consolo dos meus ais!
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Fonte: Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo poeta.

Graciliano Ramos (A espingarda de Alexandre)

— Os senhores querem saber como se deu esse caso do veado, uma história que apontei outro dia? perguntou Alexandre às visitas, um domingo, no copiar. Ora muito bem. Olhem aquele monte ali na frente. É longe, não é?

— Muito longe, respondeu o cego preto Firmino.

— Como é que o senhor sabe, seu Firmino? grunhiu o narrador. O senhor não vê.

— Não sei não, seu Alexandre, voltou o negro. Eu disse que era longe porque o senhor é o dono da casa e deve saber. O senhor achou que era longe e eu concordei. Não está certo?

— Está, resmungou Alexandre. Mas eu quero a opinião dos outros. Que distância vai daqui àquele monte, seu Libório?

Seu Libório arriscou meia légua. Mestre Gaudêncio afastou o monte para duas léguas. E Das Dores afirmou que ele devia estar a umas cinquenta:

— É o que eu digo, meu padrinho. Cinquenta léguas, daí para cima.

Alexandre, moderadamente, repreendeu a afilhada:

— Isso não, Das Dores. Que desconchavo! Assim também é demais. Deixe esses despotismos, para os nossos amigos não fazerem mau juízo, não pensarem que eu ando com invenções. As minhas histórias são exatas.

— Tudo ali no duro, opinou seu Libório. Ponha meia légua.

— Eu propus duas, disse mestre Gaudêncio.

— E eu cinquenta, cochichou Das Dores. Mas parece que foi bobagem.

— Foi, gritou Alexandre. Vamos dividir isso. Juntamos tudo e depois repartimos. Cinquenta com dois são cinquenta e dois. Mais meio: cinquenta e dois e meio. Qual é a terça de cinquenta e dois e meio, Cesária?

— Isso é um número muito comprido, respondeu Cesária. Se eu tivesse aqui os meus caroços de mulungu, a resposta ia logo; mas assim de cabeça, que dificuldade! Negócio de conta é um desespero, Alexandre. Você conhece a adivinhação dos lenços? Não conhece. Pois eu digo. Uma rua tem cem casas, cada casa cem janelas, cada janela cem moças, cada moça cem vestidos, cada vestido cem bolsos, cada bolso tem cem lenços, cada lenço quatro pontas e cada ponta um vintém. Quanto é o dinheiro que há na rua? Hem? Nunca houve quem soubesse. Quebro a cabeça desde pequena e não sei. Faz vergonha a gente confessar que ignora um troço? Não tenho vergonha não, Alexandre. Esses lenços me têm estragado os miolos. Conta é um buraco. Vou acender o cachimbo lá dentro. E penso na sua pergunta, Alexandre, que não gosto de pensar misturada com outras pessoas. Já volto.

Cesária entrou, alguns minutos depois regressou cachimbando e falou:

— Alexandre, a terça de cinquenta e dois e meio é muita coisa, mais de quinze, mais de dezesseis. Talvez chegue a dezessete e ainda um pedacinho. Mas para que saber isso tão direito? Ninguém vai medir a terra. Bote dezessete léguas, Alexandre. Que acha?

— Acho que devem ser pouco mais ou menos dezessete léguas, concordou Alexandre. Ou antes: apurada a opinião de vocês todos, ficam dezessete léguas bem estiradas. Eu não dei opinião, aceito o que os outros disseram. É muita légua, não é? Pois, meus amigos, tenho uma lazarina que engole todas elas e não falha. Nunca houve outra igual.

Alexandre levantou-se, foi à sala e voltou com uma espingarda velha e enferrujada, a coronha meio comida pelo cupim, enrolada em arame:

— Olhem que beleza. Meu irmão tenente, em troca do couro da onça, ofereceu-me esta maravilha, quando entrou na polícia. Que presente! Qualquer dia hei de mostrar aos amigos quanto ele vale. Só vendo, seu Firmino. O senhor vai ver. Isto é: os outros vão ver e o senhor terá notícia. Já falei no porco bravo que partiu a cachorra pelo meio? E nas duas araras? Bem. O porco e a cachorra dão para uma noite e vêm depois, mas as duas araras podem vir logo, e os senhores ficarão de queixo caído. Um dia destes acordei ouvindo gritos. Cheguei aqui ao copiar e avistei duas araras, uma voando muito alto, outra mais baixo. Corri mais que depressa, fui buscar a espingarda e atirei nos bichos. Vinha amanhecendo, ainda havia um resto de escuridão, era difícil enxergar as coisas afastadas. Mas, como já sabem, este olho torto vê tudo. As araras morreram. A que voava mais baixo caiu ali no terreiro ao meio-dia; a outra chegou às seis horas da tarde e esbagaçou-se na queda. Eu não tinha intenção...

— Quer dizer que a espingarda junta o chumbo, não é, seu Alexandre? perguntou mestre Gaudêncio.

— Por que, seu Gaudêncio? Que lembrança foi essa?

— É que as araras estavam longe. Se o chumbo se espalhasse, não havia pontaria que servisse.

— Perfeitamente, seu Gaudêncio. O senhor entende. Faz gosto a gente conversar com uma pessoa de tino assim. A espingarda junta o chumbo. E não respeita distância. Só falei nas duas araras para mostrar aos amigos até onde vai um tiro dela. O que agora me ferve no pensamento é o caso do veado. Conhecem, não? Pois foi aquilo mesmo. O veado apareceu acolá, em cima do monte, espiou os quatro cantos, desconfiado, depois sossegou e pôs-se a comer. Percebi todos os movimentos dele. Um animal bonito e fornido. Peguei a espingarda, examinei a carga, limpei o cano por dentro com o saca-trapo e mudei a espoleta, já velha. Dormi algum tempo na pontaria, puxei o gatilho e — bum! — vi na fumaça o bicho dar um pulo, correr algumas braças e amunhecar. — “Aquele está esfolado e comido”, pensei. Saí de casa, andei muito, dezessete léguas, pela conta de Cesária, e achei o corpo já frio, com dois caroços de chumbo, um na cabeça, outro no pé direito

— Que está dizendo, seu Alexandre? exclamou o cego. O senhor garante que o veado tinha um caroço na cabeça, outro no pé?

— Que pergunta, seu Firmino! Pois se eu tirei o couro dele e mandei fazer aquele gibão que está ali dentro, pendurado no torno!

— Mas, seu Alexandre, insistiu o negro, o senhor não disse que a espingarda junta o chumbo? Se a espingarda junta o chumbo, como é que os dois caroços estavam tão separados? Creio que houve engano.

Alexandre baixou os olhos, tirou do aió um rolo de fumo e palha de milho, desembainhou a faca de ponta e fabricou lentamente um cigarro, procurando a resposta, que não veio.

— Seu Firmino, o senhor duvida da minha palavra?

— Deus me livre, seu Alexandre. Quem é que duvida? Estou só perguntando.

— E pergunta muito bem, gritou Cesária, salvando o marido. Seu Firmino gosta de explicações. Está certo, cada qual como Deus o fez. Quer saber por que o chumbo se espalhou? Não se espalhou não, seu Firmino: o veado estava coçando a orelha com o pé.

Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 24: Momentos de incertezas

Após ser socorrida e medicada, Enila permaneceu em observação e se manteve por muitas horas em sono profundo. 

No dia seguinte, logo nos primeiros raios do amanhecer, ela despertou. E sua mãe que havia passado a noite sentada ao lado de sua cama, sorriu aliviada.

- Filha, tudo bem?  Estás a sentir alguma dor? 

- O que aconteceu? 

- Aparentemente, caíste do cavalo.

- Ah, sim, lembrei. 

- Por sorte, sofreste ferimentos leves, mas poderia ter sido muito pior. 

- Me ajude a sentar. Estou com o corpo um pouco adormecido. 

- Claro, filha.

- Espera. Não consigo mexer as pernas.

- O que disse?

- Mãe, chame o médico. Não consigo mexer minhas pernas – pediu, assustada. 

A mãe saiu gritando pelos corredores – Socorro! Socorro! Socorro!

Ao examiná-la, realizaram alguns testes de sensibilidade. 

- Não sinto nada, doutor.

- Fica calma. Vamos fazer uns exames para ver o que está acontecendo. 

Dona Eliana juntava as mãos em prece pela filha, que pouco tempo depois recebeu o diagnóstico.

- Querida Enila, precisas ser forte. Vou dar o diagnóstico sem delongas: fraturaste a coluna. Estás paraplégica. 

- Não! – gritou a mãe. 

Enila desmaiou outra vez ao receber a notícia. 

Toda a família se compadeceu. Vó Gorda repetia: eu avisei. Mas não adianta, quando é pra acontecer...

Enquanto estava hospitalizada, Enila recusou receber a visita do noivo. Sentia que sua vida estava destruída. Recusou até mesmo a visita de Isadora, sua amiga de todos os momentos. Mergulhou em profunda tristeza e pediu a Deus que a levasse, pois seus sonhos estavam desfeitos.

Dias depois retornou para casa em uma cadeira de rodas. Foi recebida por todos em clima de festa. Inclusive pelo noivo, que a recebeu de braços abertos, flores e embrulhos de presentes.

Ela se sentia envergonhada. Jamais se imaginou numa situação parecida.

Seu pai e seu irmão Bruno, conteram as emoções 

- Eu vou cuidar de ti ,“fia”. Tu está viva. Isso é o que importa – disse Vó Gorda, mimosa, apertando – a num abraço fofo. 

- Quero pilotar essa cadeira. Logo poderei ficar mais em casa – disse o irmão.

Isadora, em silêncio, lhe deu um presente. Era um retrato das duas brincando no jardim quando crianças. 

- Meus amores, agradeço muito o carinho de todos, mas preciso ficar um pouco a sós com Júlio. 

Todos saíram da sala para que eles pudessem conversar à vontade. 

Júlio teve o impulso de beijá-la... Mas Enila o rejeitou.

- Por que está me evitando?

- Precisamos romper o nosso compromisso – disse ela revolvendo a aliança. 

- Não tens culpa sobre o que aconteceu. Jamais te abandonaria. Não sejas injusta.

- Não sejas tolo. Como poderei cuidar da nossa casinha e te dar filhos? Logo te cansarás de mim. 

- Podemos contratar empregadas para cuidar das tarefas domésticas, pagar bons médicos para tratar do teu restabelecimento. Quanto aos filhos, acho que nada nos impedirá. Não te deixarei. A não ser que... 

- A não ser que? 

- Que nesses dias de solidão no hospital, descobriste que não me amas o suficiente para passar o resto de teus dias comigo.

- Nada disso. Só estou tentando ser racional. 

- Amor, confesso que estou me sentindo um pouco ofendido com tuas atitudes. Parece estar pondo em dúvida meu caráter e meus sentimentos. Sei que estás nervosa com a nova condição. E relevarei tudo o que dissestes. Aliás, já esqueci.

Me dê tua mão, quero recolocar o anel. E não tire mais. Pessoal, voltem para a sala. Família tem que permanecer unida. 

No quarto, em frente ao seu altar de Orixás, Vó Gorda intercedia, pedindo pelo casal. 

- O amor há de vencer – disse ela com seu rosário na mão.
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continua…
Fonte: Texto enviado pela autora 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Mensagem na Garrafa – 55 –


Charles Chaplin
Londres/Inglaterra (1889 - 1977) Corsiersur-Vevey/Vaud/ Suiça

A VIDA ME ENSINOU

A vida me ensinou a dizer adeus às pessoas que amo, sem tirá-las do meu coração;

Sorrir às pessoas que não gostam de mim, para lhes mostrar que sou diferente do que elas pensam;

Fazer de conta que tudo está bem quando isso não é verdade, para que eu possa acreditar que tudo vai mudar;

Calar-me para ouvir; aprender com meus erros. Afinal eu posso ser sempre melhor.

A lutar contra as injustiças; sorrir quando o que mais desejo é gritar todas as minhas dores para o mundo.

A ser forte quando os que amo estão com problemas; ser carinhoso com todos que precisam do meu carinho; ouvir a todos que só precisam desabafar;

Amar os que me machucam ou querem fazer de mim depósito de suas frustrações e desafetos; perdoar incondicionalmente, pois já precisei desse perdão;

Amar incondicionalmente, pois também preciso desse amor; a alegrar quem precisa; a pedir perdão; a sonhar acordado; a acordar para a realidade (sempre que fosse necessário); a aproveitar cada instante de felicidade; a chorar de saudade sem vergonha de demonstrar;

Me ensinou a ter olhos para "ver e ouvir estrelas", embora nem sempre consiga entendê-las; a ver o encanto do pôr-do-sol;

A sentir a dor do adeus e do que se acaba, sempre lutando para preservar tudo o que é importante para a felicidade do meu ser; a abrir minhas janelas para o amor; a não temer o futuro;

Me ensinou a aproveitar o presente, como um presente que da vida recebi, e usá-lo como um diamante que eu mesma tenho que lapidar, lhe dando forma da maneira que eu escolher.

Gabriel García Márquez (A luz é como a água)


"(...) mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das
camas e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos
tinham-se perdido na escuridão."

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

— De acordo, — disse o pai — vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.

Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.

— Não! — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.

— Para começar, — disse a mãe — aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação,

— O barco está na garagem. — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.

— Parabéns. — disse o pai. — E agora?

— Agora, nada. - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.

— A luz é como a água. — respondi. — A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

— Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada. — disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.

— Não!- disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.

— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever, — disse ela — mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.

O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade. — disse.

— Deus te ouça! — respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.

Fonte: Gabriel Garcia Marquez. Doze contos peregrinos. Publicado originalmente em 1978.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXVI


NUDEZ DA PRAIA

MOTE:
À noite, pousando o olhar
no leito em que o mar desmaia,
vejo um raio de luar
cobrindo a nudez da praia.
Adilson S. Maia
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
À noite, pousando o olhar
nesse mar que eu amo tanto,
eu me ponho a imaginar
e escuto um doce acalanto!

Muito amor podemos ver,
no leito em que o mar desmaia,
e é difícil descrever
esse amor que o mar espraia!

A beleza está no ar
e, num prateado bonito,
vejo um raio de luar
chegando lá do infinito!

Esse luar que aparece
e que fica de atalaia,
carinhosamente desce,
cobrindo a nudez da praia.
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A PRAIA DORME AO LUAR

MOTE:
É noite… A praia vencida
pelas carícias do mar,
se entrega ao sono, envolvida
numa réstia de luar.
Elen Novaes Félix 
Barra do Piraí/RJ,  1946 - 2015, Niterói/RJ

GLOSA:
É noite... A praia vencida,
depois de ganhar mil beijos,
fica até, meio perdida,
em meio ao mar de desejos!

Fortemente acariciada
pelas caricias do mar,
sente-se, a praia, cansada,
cansada de tanto amar!

Pede, então, uma guarida.
Caindo em sono profundo,
se entrega ao sono, envolvida,
no maior sonho do mundo!

E se enrola, tão dengosa,
no sonho que está a sonhar,
que tem sua luz preciosa
numa réstia de luar.
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CASTELOS...

MOTE:
Castelos de areia erguidos
na praia do sentimento,
duram mais que os construídos
com tijolos e cimento!!!
Izo Goldman  
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:
Castelos de areia erguidos
com alicerces de amor,
jamais serão destruídos
pelas vazantes da dor!

Quando feitos com ternura
na praia do sentimento,
trarão somente ventura
e jamais o sofrimento!

Com algas verdes, vestidos,
os castelos da emoção
duram mais que os construídos
sem alma e sem coração!

Nesses castelos da sorte,
vivamos nosso momento,
pois nenhum será mais forte
com tijolos e cimento!!!
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CAIS DA SOLIDÃO...

MOTE:
Esta saudade que aporta
no meu cais de solidão...
me lembra uma praia morta,
onde a lua brilha em vão...
Maria Lua
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:
Esta saudade que aporta
que chega, assim, devagar,
é malvada, nem se importa,
se com ela vou chorar!

Ela ancora todo o dia
no meu cais de solidão,
me faz triste, e angustia
meu sofrido coração!

Saudade, não reconforta,
pois sempre, em sua tristeza,
me lembra uma praia morta,
que perdeu toda a beleza!

Até o luar fica triste
quando se perde a ilusão...
Eu sinto que nada existe
onde a lua brilha em vão…
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PASSARELAS

MOTE:
As praias que são tão belas
quando o sol as incendeia,
transformam-se em passarelas
feitas de espuma e de areia!
Orlando Brito 
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

GLOSA:
As praias que são tão belas
enfeitam o nosso dia,
quais bonitas aquarelas
pintadas com maestria!

Estremecem de prazer
quando o sol as incendeia,
nós quase as podemos ver,
fazendo amor com a sereia!

Chega o verão! Todas elas
ganham mais beleza ainda,
transformam-se em passarelas
de uma festa que não finda!

Passarelas diferentes
na maré baixa, ou na cheia,
são coloridas e quentes,
feitas de espuma e de areia!

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Novembro de 2004.

Contos e Lendas do Mundo (México: A lenda do Charro Negro)

Nas vastas terras do México, onde a história e a mitologia se entrelaçam, surge a lenda do Charro Negro, uma figura enigmática que capturou a imaginação de gerações. Esta lenda, enraizada na tradição mexicana, tece uma narrativa cheia de mistério, romance e um toque sobrenatural que perdurou ao longo do tempo.

Origens da lenda

As raízes da lenda do Charro Negro se entrelaçam com as histórias dos charros. Charros são figuras emblemáticas da cultura mexicana ligadas aos cowboys e muitas vezes envoltas num ar de romantismo e aventura. Porém, O Charro Negro distingue-se pelo seu carácter sombrio e pela sua ligação com o sobrenatural.

A lenda do Charro Negro evoluiu a partir das ricas tradições orais do México, onde histórias de personagens misteriosos e encontros sobrenaturais foram transmitidas de geração em geração. A figura do charro, com raízes no folclore mexicano, serviu de tela para dar vida a esta narrativa única.

A lenda conta a história de um misterioso charro vestido de preto que vagueia pelas estradas solitárias à noite.. Muitas vezes descrito como atraente e charmoso, o Charro Negro busca companhia em corações solitários, principalmente em mulheres jovens e desprotegidas. O encontro deles pode levar a consequências inesperadas e às vezes trágicas.

Este aspecto a lenda brinca com o tema do romance sombrio e da atração fatal. As descrições do Charro Negro muitas vezes destacam o seu magnetismo, a sua presença cativante que atrai quem se aventura nas noites escuras. É nesses encontros que a trama toma um rumo sinistro.

O diferencial dessa lenda é o suposto pacto que o Charro Negro busca com quem cruza seu caminho. Se diz que oferece um acordo tentador, prometendo amor eterno e riquezas em troca da companhia da vítima. Porém, Este pacto carrega consigo um fardo sombrio e misterioso: a perda da própria alma.

Este elemento acrescenta profundidade à história e explora a relação entre o desejo humano e as consequências de ceder a tentações aparentemente irresistíveis. A dualidade entre o encanto do Charro Negro e o preço da sua empresa cria um conflito emocional que intensifica a narrativa e a torna inesquecível.

Variações regionais

A lenda do Charro Negro evoluiu ao longo do tempo, adotando variações regionais que acrescentam nuances únicas à história. Em algumas versões, o Charro Negro é retratado como uma alma em dor., buscando a redenção através do amor humano. Em outros, está diretamente ligado a o diabo, carregando consigo uma maldição irremediável.

Estas variações refletem a diversidade cultural do México e como as lendas podem se adaptar e transformar, mantendo a sua essência enquanto se misturam com influências locais e interpretações pessoais.

Lendas que desafiam o tempo

O que é fascinante na lenda do Charro Negro é a sua capacidade de transcender gerações e manter o seu apelo. Embora as representações e adaptações possam variar, a essência do encontro noturno com este misterioso charro persiste como uma história que passou de boca em boca, preservando o seu lugar na rica tradição oral mexicana.

O Charro Negro torna-se um símbolo intemporal, ligado a noites estreladas e estradas solitárias que evocam medo e admiração. Este personagem perdura enquanto a lenda se adapta às novas formas de contar histórias, desde conversas familiares até representações modernas na literatura e no cinema.

A lenda do Charro Negro influenciou não só a tradição oral, mas também diversas expressões culturais. Da música ao cinema, este personagem deixou sua marca na arte mexicana, tornando-se um ícone que inspira medo e fascínio.

Artistas e cineastas encontraram no Charro Negro uma fonte de inspiração, explorando sua história sob diversas perspectivas e dando-lhe nova vida no contexto contemporâneo. Este personagem transcendeu as páginas das lendas para se tornar um símbolo cultural que conecta o passado e o presente.

Um exemplo de como essa lenda transcendeu está em uma produção cinematográfica lançada em 2018, intitulada como a história é conhecida.: «A Lenda do Charro Negro». É um filme de animação mexicano produzido pela Ánima Estudios baseado na lenda deste sombrio solitário. Foi lançado em janeiro de 2018 no México e faz parte da série de filmes “A Lenda das Múmias de Guanajuato” produzida pela mesma empresa. O filme é voltado principalmente para o público infantil e faz parte da franquia que explora diversas lendas e tradições do México.

A lenda do Charro Negro: uma trama atemporal de sedução e mistério

A lenda do Charro Negro, com sua mistura única de romance e mistério sobrenatural, continua sendo uma joia no tesouro das histórias mexicanas. Através das noites escuras e das estradas solitárias, a figura do Charro Negro permanece como um lembrete da rica tradição cultural do México e de como as lendas podem resistir ao teste do tempo, mantendo a sua capacidade de cativar e surpreender aqueles que se aventuram a ouvi-las.

À medida que a lenda continua a evoluir e a adaptar-se, continua a lançar o seu feitiço sobre aqueles que procuram explorar as raízes místicas e as narrativas cativantes que definem a riqueza do folclore mexicano. El Charro Negro, com o seu manto de mistério e influência na cultura, continua a ser um testemunho da capacidade duradoura das lendas de capturar a imaginação e transcender as fronteiras temporais.

É por tudo que uma mistura perversa de sedução e mistério foi criptografada em A lenda do Charro Negro: mistérios inesquecíveis da cultura mexicana que transcendem o tempo e permanece no imaginário coletivo de seus seguidores.

Fonte:
texto de Naomi Fernandez. Disponível em https://www.postposmo.com/pt/a-lenda-do-charro-negro/. 19.11.2023.

O Nosso Português de cada dia (Você é macérrimo?)

Você conhece alguém que seja macérrimo? Certamente, sim. Calma, isso parece palavrão, mas é só o superlativo erudito de "magro". Se você já esqueceu, superlativo é uma das flexões de grau do adjetivo. Não se assuste com os nomes, aparentemente complicados. Adjetivo você lembra o que é. É palavra que modifica um substantivo, atribuindo-lhe qualidade, característica, estado etc.

Em "prefeito incompetente", "prefeito" é substantivo, e incompetente" é adjetivo. Pode-se querer realçar a qualidade que o adjetivo indica, e para isso existem alguns recursos. Um deles é lançar mão de um reforçador direto desse adjetivo. Pode-se dizer, por exemplo, "prefeito muito incompetente" ou "prefeito extremamente incompetente".

Outro recurso é usar um sufixo, elemento que se coloca no fim da palavra que se quer modificar. No caso do prefeito, pode-se dizer que ele é "incompetentíssimo". O sufixo "-íssimo" eleva o adjetivo ao grau superlativo. O superlativo de "incompetente" não causa surpresa, o que também ocorre com o de alto (altíssimo), rico (riquíssimo), inteligente (inteligentíssimo), fraco (fraquíssimo) e tantos outros.

O problema começa quando, na passagem para o superlativo, a raiz do adjetivo se altera e volta para a língua de origem – o latim, por exemplo. Surgem então as chamadas formas eruditas, que costumam surpreender muita gente. E o caso de "macérrimo", que nada mais e do que o superlativo de "magro".

Quem é muito magro é macérrimo. Duro é convencer alguém a usar isso na mesa do bar. O que as pessoas dizem mesmo é "magérrimo", que os dicionários ou não registram ou dão como mera forma popular. Vale lembrar que é mais do que legítima a forma "magríssimo", apoiada na raiz portuguesa da palavra.

Vamos ver outros superlativos eruditos: o de negro é nigérrimo; o de nobre é nobilíssimo; o de soberbo é superbíssimo; o de pobre é paupérrimo; o de cruel é crudelíssimo. Caetano Veloso compôs uma obra-prima chamada "O quereres" ("Onde queres revólver, sou coqueiro…"), Na letra, há uma passagem ("construir-nos dulcíssima prisão") em que Caetano faz uso do superlativo erudito de "doce" ("dulcíssimo"). Trata-se de uma canção popular, escrita, porém, em português mais do que culto, o que é bastante comum na obra de Caetano.

Na língua do dia-a-dia, recentemente surgiu um sufixo que também denota o superlativo. Trata-se do "-ésimo", que se ouve em palavras como "gostosésimo", "chiquésimo", "tranquilésimo”, etc. Seu uso é limitado à linguagem publicitária e a algumas situações com familiares ou amigos. Surgiu também, de início na linguagem da garotada e agora em várias faixas etárias, o superlativo feito com "mó"; "mó legal", "mó frio", "mó chato", "mó bom".

Voltando à flexão culta, uma surpresa. As gramáticas e os dicionários dizem que alguns adjetivos terminados em "io", como frio, sumário, sério, devem ter o "i" dobrado na passagem para o superlativo; friíssimo, sumariíssimo, seriíssimo. 

Acredite se quiser. Use se tiver coragem.

Fonte: Pasquale Cipro Neto. Inculta & Bela. SP: Publifolha, 1999.

Renato Benvindo Frata (As pedras do meu estilingue)

Drummond teve a sua no caminho, a lhe barrar os passos; Golias recebeu a de Davi no cocuruto e foi pro bebeléu; Fernando Pessoa ou o blogueiro ‘Nemo Nox’, (não se sabe a autoria), guardou-as para construir com elas um castelo; Michelângelo, Míron, Fídias, Policleto, Clímaco,  Praxíteles, Lisipo e outros, viveram as burilando para as belíssimas esculturas; os clássicos lapidários, ao longo do tempo, continuam a dar magnificência a dedos e colos femininos ao lapidá-las; os riachos fazem delas  gargantas de belas vozes a lhes tirar um marulhar contínuo, e, cada qual com cada qual de nós, teve, tem, terá bom ou mau uso das suas deixando-as rolar como seixos, nas ribanceiras da vida, ou impedindo-lhes ações mais graves e violentas. 

Pedras são tropeços, dirão uns, ou material de construção, dirão outros na heterogeneidade que faz a beleza da vida. Com elas se constroem castelos, estradas, pontes, joias, estátuas, e também muros – como o Das Lamentações! - em qualquer das acepções que lhes queiram dar. Bem assim, pedras são como a flecha atirada ou saídas da malha de um estilingue em relação às palavras ditas, ou mal ditas – que não poderão ser impedidas até atingirem o alvo, e às vezes fazem estragos, às vezes refrescam a alma, acalentam o espírito, alimentam a vida e põem sorriso em lábios circunspectos.

As pedras do meu estilingue eram fatais. Considerando o tempo – mais de 65 anos, o espaço rurícola, a cultura de massa e a realidade vivenciados, não me criam remorsos, mas um certo mal-estar perante o conceito de caça de hoje e havia uma razão: matávamos animais para o sacio (a mesma fome que hoje grassa a roer estômagos sem a alternativa que tínhamos), vez que o caçar era livre e incentivado diante de um plantel gracioso e multicolorido exposto nas matas, campos, cafezais e que serviam de refeição principal adicionada à indefectível polenta.

As pedras, no entanto, nunca perderão sua especificidade seja para o bem ou para o mal, assim como a fome, aliás que hoje – vejam a vergonha! - acomete milhões nesse rico país. O desleixo com carentes grita ensurdecedora nos becos, nas vielas, nas ruas, nos pontilhões, nos casebres e nas praças.

Equivalem à pedra de Drummond, a lhe barrar o caminho e que hoje conspurca a vontade, mata desejos, cria obstáculos e impede as conquistas que todos, indistintamente, têm o direito de almejar. 

Fonte: Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 15

 

Mensagem na Garrafa – 54 –


Artur da Távola 
(Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros)
Rio de Janeiro/RJ, 1936 – 2008

ONDE ESTÁ A DESPEDIDA?

Há despedidas para sempre e que não são patentes na hora do afastamento. Não se lhes percebe o estalo da separação, permanente ou temporária, que pode estar no instante de mau humor, na resposta infeliz, na alegria que não se repete ou na palavra que deixamos de dar e receber. Às vezes, está na palavra que dizemos.

Nem sempre as pessoas se separam: esgarçam-se às vezes. Viver esgarça. Despedir-se é sutil, nem sempre aparece. Seres em mutação, vivemos a mudar, sem saber. Na mudança, transforma-se em recordação o que antes era união e vontade, amizade ou convivência. De tudo se faz retrato, álbum, caderno, poema, carta, saudade ou memória. A despedida não é por querer: acontece a despeito. Um simples "até já" pode conter inimagináveis nuncas. Ou sempres. Nada é mais triste que uma fotografia alegre. Quantas despedidas podem estalar dali em diante? Nada pode vir a ser mais enganoso que um simples até logo.

Maravilhosa e cruel a vida! Tudo pode acontecer. As ligações, salvo poucas, fazem-se precárias e falíveis. Nosso destino é preso a acontecimentos não controláveis. Os impulsos, cansaços e as discordâncias são imprevisíveis. E geram despedidas antes inesperáveis. Ninguém sabe de quem se afastará. Nem quais as amizades e amores de toda a vida, nada obstante existam. Raros captam a dor que estala em cada hipótese de despedida. Separar-se contém sempre a hipótese da despedida. Por isso uma dor sempre se infiltra em cada afastamento. Algo se assusta, escondido, em tudo o que se separa. Ainda que para ir ali pertinho e logo voltar.

As grandes despedidas dão-se - contudo - sem que o percebamos. As que sabemos e sofremos não são despedidas completas, pois a saudade e a memória hão de trazer de volta o sentimento genuíno que agora causa dor. As grandes despedidas infiltram-se no cotidiano e nos atos corriqueiros de cada dia, sem serem percebidas. Muitos anos depois, vamos verificar que, disfarçadas em dia-a-dia, ali estavam e estalavam saudades antecipadas, vários nuncas dos quais jamais suspeitamos. Nunca se sabe onde está uma despedida. A não ser muito depois.
(texto enviado pelo autor)

Silmar Bohrer (Croniquinha) 99

A criatividade do ser humano sempre tem novidades. Recentemente apareceu o  Seguro de Morte, quando então o falecido  não se incomoda com nada dos trâmites  da sua passagem. Nem os familiares. Alguém vivo comunica a seguradora, que é responsável pelas exéquias. São momentos difíceis para os que ficam. Soluços, choros, dores. 

Nenhum contratempo ao finado, nenhum incômodo. O local da despedida está definido, haverá café e chá, ou água. Alguém para contar histórias e estórias. E as risadas em meio ao silêncio dos que respeitam o morto. No sul também tem chimarrão e uma cachacinha nas noites mais frias de velório, enquanto o ido, ou o que se foi, segue em paz. 

Para sempre. 
Fonte: Texto enviado pelo autor 

Irmãos Grimm (As moedas que caíram do céu)


Era uma vez uma garotinha cujos pai e mãe já haviam morrido, e ela era tão pobrezinha que nem sequer tinha um lugar para ficar, ou uma cama para dormir, enfim ela não tinha nada além das roupas que usava e de um pedaço de pão em suas mãos que alguma alma caridosa lhe havia dado. 

No entanto, ela era boa e piedosa. E assim vivia ela abandonada pelo mundo.

Um dia ela estava caminhando pela estrada afora, e confiava no bom Deus. Então, um homem pobre a encontrou, e disse, "Ah, será que você não tem alguma coisa para eu comer, estou com tanta fome!

Ela pegou o seu pedaço de pão inteiro, e disse, "Que Deus lhe abençoe e que isto lhe ajude!" e continuou andando. 

Mais adiante, ela encontrou uma criança, que chorava e disse, "Tenho muito frio na cabeça, me dê alguma coisa para protegê-la.

Então, ela tirou a sua touca e deu para a criança. 

Quando ela tinha andado um pouquinho mais, ela encontrou uma outra criança que não tinha blusa e estava congelada de frio.

Então, ela tirou a blusa e a colocou na criança; mas, pouco depois alguém lhe pediu um agasalho, e ela deu tudo o que ela tinha. 

Finalmente, ela chegou a uma floresta e já estava ficando escuro, e lá vinha uma outra criança, e lhe perguntou se ela tinha uma camisa, e a boa garotinha pensou consigo mesma, "Está tarde da noite e ninguém está me olhando, então, eu poderia dar a blusa que estou usando." e ela tirou a blusa, e deu para a criança. 

E assim ela ficou, com o corpo todo desprotegido, quando de repente estrelas começaram a cair do céu, e elas eram nada mais do que muitas moedas de ouro, e embora ela tivesse dado a única blusa que usava, ela poderia agora comprar uma nova feita com o tecido mais fino. Então, ela foi juntando todo o dinheiro que caía, e viveu rica todos os dias de sua vida.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.