sábado, 20 de julho de 2024

Daniel Maurício (Poética) 71

 

Geraldo Pereira (Contrastes do Cotidiano)

Acomodado na sala de espera de um laboratório qualquer, esperando a vez, como tantos outros, nunca pensei testemunhar diálogos que me permitissem ensaiar reflexões quase sociológicas, a propósito do difícil exercício da vida, quando a idade vai marcando o tempo com a prata dos anos. 

A senhora, na casa dos oitenta, era cliente aprazada, imagino, fazendo-se acompanhar da filha e de mais um filho, além de uma neta muito jovem, ainda. Conversavam a respeito dos incômodos provocados por ela, pela mulher de idade avançada, de corpo vergando à força das décadas e de bengala à mão. Desfiavam um rosário de queixas, desde o sono precoce no cair da tarde à insônia das madrugadas, sem falar nas impossibilidades fisiológicas de retenção das excreções orgânicas. Falavam como se estivessem imunes à senectude.

A moça era a mais loquaz. Morava com a avó e por isso vinha presenciando cenas com as quais não concordava; não concordava em vê-la sedentária, na sala do apartamento, entregue à artrose, enquanto o avô, todos os dias, descia e fiava boa conversa com o porteiro do prédio. Que fosse, também, àquele passeio matinal, entre o andar de cima e o térreo e ouvisse do empregado as suas histórias, mazelas de uma outra vida. E não podia se conformar, também, com o cochilo vespertino, transformado em sono profundo até, com roncos e outros ruídos, à boquinha da noite. Por isso, às quatro já estava de pé, andando pra lá e pra cá, insone. É que ao despertar daqueles inícios oníricos na varanda de casa, não cuidava em sair correndo para a cama, como desejava a nunca cuidadosa neta, mas tomava banho e lanchava. Assim, perdia o sono e os sonhos!

A filha, mais cautelosa, pouco dizia, mesmo que não reagisse. O filho, entretanto, malhava a mãe com todas as culpas. Não se cuidava! Deveria tomar três remédios distintos para a hipertensão de que era portadora, mas esquecia. Tomava dois ou tomava um. Nada tomava, por vezes. Um absurdo, insistia! Pior quando a neta abriu a boca para falar da incontinência urinária da pobre mulher, a manchar o sofá da sala e a deixar um rastro, como se bicho fosse, antes de chegar ao banheiro. Tinha que sair atrás, com o pano de chão, a enxugar tudo e era preciso providenciar para se levar ao sol a peça em que costumava sentar-se, impregnada, como estava, pelo líquido das excreções humanas. Procedia assim porque queria, afirmava com todas as letras e com todas as sílabas, pois nada a impedia de se levantar antes das urgências orgânicas. Fosse mais cuidadosa, portanto!

A avó, que cumpriu, como se imagina, uma trajetória longa, palmilhada de sacrifícios e preenchida por doações que só as mães podem oferecer, nada respondia e nada comentava, ouvia tudo com uma fisionomia de profunda tristeza. Em que estaria pensando? Que reflexão fazia ali, naquele momento de tantas reclamações e de tantas queixas? Quase me aproximo e intercedo em favor da mulher idosa. Ou quase chego perto e verbalizo o futuro que está reservado à toda a gente, de uma forma ou de outra. Por que se ocupavam de comentários assim, tão vazios de conteúdo existencial? Que benefícios poderia ter, fiando conversa com o porteiro? O homem do prédio teria o que lhe acrescentar à vida vivida? E o sono? Não sabem que é da idade, mesmo, essa sonolência precoce e a insônia do despertar antecipado? E não conhecem a fragilidade dos esfíncteres humanos na velhice? 

Lembrei-me de uma outra cena que vi, há poucos dias, num hospital público do Recife, tão diferente daquela interlocução de ocasião. No leito da emergência uma senhora de cabelos brancos também, ao lado do marido, de idade próxima, como parecia, agradando-lhe os braços e confortando-lhe o espírito. Gente simples, penso eu, sem muito estudo e sem muita cultura, mas dotada de afetividade, de amor ao próximo, sobretudo assim, no sofrimento e na dor. Viveram juntos – Quem sabe? – anos a fio na contabilidade do tempo e talvez se despedissem, mas a palavra que os uniu e os afagos que os aproximaram confortavam a derradeira hora. Sei de quem adoeceu gravemente em noite alta e antes de ser levada à emergência virou-se para o marido e beijou-lhe a fronte. Foi o derradeiro ósculo! Despediu-se, afinal!

Fonte: Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Lampião de Gás)


Compositor: Zeca Bergami

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Da sua luzinha verde azulada
Que iluminava a minha janela
Do almofadinha lá na calçada
Palheta branca, calça apertada

Do bilboquê, do diabolô
Me dá foguinho, vai no vizinho
De pular corda, brincar de roda
De benjamim, jagunço e chiquinho

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Do bonde aberto, do carvoeiro
Do vossoureiro, com seu pregão
Da vovózinha, muito branquinha
Fazendo roscas, sequilhos e pão

Da garoinha fria, fininha
Escorregando pela vidraça
Do sabugueiro grande e cheiroso
Lá no quintal da rua da graça

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Minha São Paulo calma e serena
Que era pequena, mas grande demais
Agora cresceu, mas tudo morreu
Lampião de gás que saudade me traz
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * -

Nostalgia e Memórias em 'Lampião de Gás'
A música 'Lampião de Gás', é uma ode nostálgica à São Paulo de outrora, uma cidade que, embora tenha crescido e se modernizado, deixou para trás uma série de memórias e tradições que a cantora relembra com carinho. A repetição do refrão 'Lampião de gás, quanta saudade você me traz' reforça o sentimento de saudade e a importância das lembranças que o lampião de gás evoca.

A letra da música é rica em detalhes que pintam um quadro vívido da vida cotidiana em uma São Paulo mais simples e tranquila. Referências a brincadeiras infantis como bilboquê e diabolô, e a figuras típicas como o carvoeiro e o vossoureiro, trazem à tona uma época em que a vida era mais comunitária e menos apressada. A menção à 'vovózinha, muito branquinha, fazendo roscas, sequilhos e pão' adiciona um toque pessoal e familiar, evocando a sensação de aconchego e segurança do lar.

Além disso, a música também aborda a transformação da cidade, que 'cresceu, mas tudo morreu'. Esse verso final encapsula a dualidade do progresso: enquanto a modernização traz avanços, ela também pode apagar traços importantes da cultura e da memória coletiva. A 'São Paulo calma e serena' contrasta fortemente com a metrópole agitada de hoje, e o lampião de gás se torna um símbolo de um tempo perdido, mas não esquecido.

Fonte:

sexta-feira, 19 de julho de 2024

José Feldman (Versejando) 143

 

Contos e Lendas da Espanha (A moça dos três maridos)

Era uma vez um homem que tinha uma moça muito bonita,  mas de gênio forte. As pessoas comentavam que a menina sendo tão bela quanto temperamental, acabaria dando trabalho ao pai, quando crescesse. Mas ele não se preocupava com isso. Aceitava a personalidade da filha e amava-a de todo o coração.

Alguns anos depois, a menina se transformou numa belíssima jovem. O pai compreendeu que em  breve ela se casaria, pois não faltariam pretendentes.

Certo dia, três rapazes se apresentaram em sua casa, cada um mais gentil e bem-apessoado que o outro. Muito educadamente, pediram a mão da moça em casamento.

O pai, depois de conversar com os pretendentes, disse que os três lhe pareciam homens de caráter íntegro, capazes de fazer a moça feliz. Disse também que todos mereciam sua bênção e que seria uma honra ter um deles como genro.

— E quem será esse felizardo? — perguntaram os rapazes.

— Isso não sou eu quem vai decidir — o homem respondeu. — Meu genro será aquele que o coração de minha filha escolher.

Assim, o homem foi consultar a moça. Falou-lhe sobre as qualidades dos três pretendentes. E que todos lhe pareciam dignos de desposá-la.

A moça o ouviu com atenção. Por fim respondeu, muito tranquila, que gostaria de se casar com os três.

— Minha filha! — o bom homem se espantou. — Compreenda que isso é impossível. Nenhuma mulher pode ter mais que um marido.

— Pois eu escolho os três — ela respondeu sem se alterar.

— Sempre soube que você tinha um gênio forte. Sempre aceitei seu modo de ser. Mas para tudo há um limite. Agora pense bem, procure ter um mínimo de bom senso e não me dê mais dores de cabeça. Afinal, a qual dos pretendentes devo conceder sua mão?

— Aos três — a moça insistiu, com uma calma espantosa. — Preciso deles para viver.

— Você precisa é de uma boa dose de juízo, isto sim — o homem protestou, irritado.

Mas não houve maneira de fazer a moça mudar de ideia.

O pai meditou longamente sobre o problema que, de fato, era por demais complicado. Depois de muito pensar, encontrou uma solução; pediu aos três rapazes que saíssem pelo mundo em busca de uma raridade. Aquele que trouxesse o presente mais extraordinário, receberia a mão de sua filha.

Os três pretendentes partiram e combinaram de se reunir um ano depois, para que cada um mostrasse o seu presente. Porém, por mais que procurasse, nenhum deles encontrou algo que satisfizesse a exigência do pai da moça. Assim, depois de um ano, os três, com as mãos vazias, foram ao local onde haviam combinado o encontro.

O primeiro que chegou sentou-se para aguardar os outros dois. Enquanto esperava, um velhinho se aproximou e perguntou-lhe se não gostaria de comprar um pequeno espelho.

O rapaz examinou o espelho e respondeu que não via razão para comprá-lo.

O velhinho então explicou que, embora parecesse pequeno e comum, o espelho tinha um dom: quem nele se mirasse poderia ver qualquer pessoa que quisesse. Bastaria formular esse desejo, com todo o coração.

O rapaz resolveu fazer um teste. E ao constatar que o velhinho dizia a verdade, comprou o espelho sem discutir o preço.

O segundo pretendente, ao aproximar-se do local do encontro, foi abordado pelo mesmo velhinho, que lhe perguntou se não gostaria de comprar um pequeno frasco de bálsamo.

— Para que vou querer um bálsamo, meu velho, se percorri boa parte do mundo e não encontrei o que buscava?

O velhinho sorriu;

— Ah, mas este aqui tem o poder de ressuscitar os mortos.

Naquele momento, passavam por ali alguns homens, levando um amigo para ser enterrado. Sem pensar duas vezes, o rapaz pediu que abrissem o caixão e deixou cair algumas gotas do bálsamo na boca do defunto, que no mesmo instante se levantou, ergueu o caixão nos ombros e convidou a todos para almoçar em sua casa. Diante disso, o rapaz comprou o frasco sem regatear no preço.

Não muito longe dali, o terceiro pretendente caminhava à beira-mar, meditando, convencido de que os outros haviam encontrado algo raro e precioso, enquanto ele nada conseguira. 

De súbito avistou um grande barco que, vencendo o mar encapelado, atracou no porto. Dele desceram muitas pessoas, dentre elas um velhinho que se aproximou e perguntou-lhe se não gostaria de comprar aquele barco.

— E para que vou querer isso? — disse o rapaz. — Este barco está tão velho, que daqui a algum tempo só servirá para lenha.

— Você está enganado, meu rapaz — disse o velhinho.

— Este barco possui um dom inestimável: o de levar seu dono, e aqueles que o acompanham, a qualquer lugar do mundo, em muito pouco tempo. Se duvida, pergunte a esses passageiros que vieram comigo, pois há meia hora estávamos em Roma.

O rapaz conversou com os passageiros e concluiu que isso era verdade. Então, comprou o barco pelo preço que o velhinho propôs.

Por fim, os três pretendentes se reuniram no local do encontro, multo satisfeitos. O primeiro contou que havia comprado um espelho, no qual seu dono poderia ver quem desejasse. Para provar que falava a verdade, mirou-se no espelho enquanto pedia, de coração, para ver a moça por quem os três estavam apaixonados.

A imagem da moça, morta num caixão, surgiu no cristal do espelho, deixando os três sem fala por alguns instantes.

Por fim, o segundo pretendente quebrou o silêncio;

— Trago um bálsamo capaz de ressuscitar os mortos. 

Mas até chegarmos à casa de nossa querida, ela já terá sido enterrada.

— Acalmem-se — disse o terceiro pretendente. — A circunstância não é tão ruim quanto parece.

Diante do olhar de espanto dos outros dois, explicou:

— Por sorte, acabei de comprar um barco que em pouquíssimo tempo nos levará até nossa amada.

Os três correram para a embarcação e, de fato, em apenas alguns minutos chegaram ao porto do povoado. Então foram até a casa da moça, onde tudo já estava pronto para o enterro. O pai, desolado, relutava em dar a ordem final para a saída do cortejo rumo ao cemitério.

Os três rapazes se aproximaram do caixão. Aquele que tinha o bálsamo derramou algumas gotas na boca da morta. Assim que o bálsamo tocou-lhe os lábios, a moça se levantou, saudável e radiante,

Todos ficaram maravilhados com a atitude do jovem pretendente. Ainda naquele dia, o pai decidiu que era ele quem deveria se casar com sua filha. Mas os outros dois protestaram:

— Se não fosse por meu espelho, jamais saberíamos o que havia acontecido. E a esta hora minha amada já estaria a caminho do campo santo — disse um dos pretendentes.

Pois se não fosse meu barco, que nos transportou até aqui em poucos minutos, nem o espelho nem o bálsamo teriam podido trazer minha amada de volta — disse o outro.

Vocês têm razão — o pai da moça reconheceu. Muito confuso e desgostoso, pôs-se de novo a meditar sobre qual seria a melhor solução para aquele problema.

Tocando-lhe o ombro, a filha disse, com serena convicção:

– Agora o senhor entende, papai, porque eu precisava dos três para viver?

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 117

Viagens? Quem não viaja? Quem não gosta de estar nos caminhos? 

Viagens são fontes de conhecimentos, luzes que clareiam ideias, lampejos que põem a faiscar nossas curiosidades. 

Nas viagens descobrimos os brotinhos do vasculhar e desenvolvemos a florescência dos saberes. Tudo em volta incita diligências, e estas nos ajudam a buscar e a querer mais, sempre mais . 

Então a gente concorda com o romancista - viajeiro contumaz - quando dizia ser possuído pelo demônio das viagens. Viajar também é vilegiatura cultural, é abrir bem os olhos para o novo e o desconhecido. Até em Abrolhos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Quero que tudo vá pro inferno)


Compositor: Roberto Carlos/ Erasmo Carlos

De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar
Se você não vem e eu estou a lhe esperar
Só tenho você no meu pensamento
E a sua ausência é todo o meu tormento
Quero que você me aqueça nesse inverno
E que tudo mais vá pro inferno

De que vale a minha boa vida de playboy
Se entro no meu carro e a solidão me dói
Onde quer que eu ande tudo é tão triste
Não me interessa o que de mais existe
Quero que você me aqueça nesse inverno
E que tudo mais vá pro inferno

Não suporto mais você longe de mim
Quero até morrer do que viver assim
Só quero que você me aqueça nesse inverno
E que tudo mais vá pro inferno
E que tudo mais vá pro inferno

Não suporto mais você longe de mim
Quero até morrer do que viver assim
Só quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo mais vá pro inferno (6x)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Dor do Amor Não Correspondido em 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno'
A música 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno', interpretada pelo icônico Roberto Carlos, é um clássico da música brasileira que expressa a intensidade do amor não correspondido e a dor da solidão. Lançada em 1965, a canção se tornou um dos grandes sucessos do cantor, conhecido como o 'Rei' da música brasileira, e reflete o estilo romântico que marcou sua carreira. A letra fala de um sentimento profundo de falta e desejo, onde o eu lírico expressa sua angústia pela ausência da pessoa amada, a ponto de desejar que tudo mais desapareça ou 'vá pro inferno'.

A expressão 'vá pro inferno' é usada metaforicamente para representar a rejeição de tudo que não seja a presença da pessoa amada. O eu lírico descreve cenários que seriam agradáveis, como o 'céu azul' e o 'sol a brilhar', mas que perdem todo o seu valor diante da solidão. A música também aborda a ideia de que nem mesmo uma vida de luxos e prazeres, simbolizada pela 'boa vida de playboy', é capaz de preencher o vazio deixado pela ausência do ser amado. A solidão é tão dolorosa que o eu lírico menciona preferir a morte a viver sem a pessoa desejada.

A canção é um retrato da época em que foi lançada, onde as melodias românticas e as letras que falavam de amor e desilusão eram muito populares. Roberto Carlos, com sua voz marcante e interpretação emotiva, conseguiu transmitir a profundidade do sentimento de rejeição e a urgência do desejo de estar com a pessoa amada. 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno' é um hino à paixão avassaladora e ao mesmo tempo um desabafo sobre a dor que acompanha o amor quando este não é correspondido.

Tal como Orlando Silva, que foi o primeiro ídolo de massa criado pelo rádio no Brasil, Roberto Carlos seria o primeiro criado pela televisão. A canção que marca o início desse reinado é “Quero que Vá Tudo pro Inferno”.

Foi a partir de seu lançamento no programa “Jovem Guarda”, da TV Record, no final de 1965, seguido do disco homônimo, que Roberto Carlos se tornou o cantor-compositor pop de maior expressão na música brasileira, embora já frequentasse havia mais de três anos as paradas de sucesso. Aliás, o sucesso da canção e do programa foi tão forte que fez de Roberto, em pouquíssimo tempo, líder de audiência em televisão e campeão de vendagem de discos.

Naturalmente, para acontecer em plena década de 1960 um fenômeno desses teria que receber, como recebeu, o apoio maciço de uma poderosa agência de publicidade, no caso a Magaldi, Maia e Prosperi, que seguia padrões americanos. Mas, como o futuro mostraria Roberto Carlos — mesmo depois de deixar de ser novidade — manteria o prestígio, conquistando novos admiradores e conservando os antigos, o que é uma prova de talento e competência.

Poética e musicalmente pobre, alguns pontos abaixo do nível alcançado por canções posteriores (“De que vale o céu azul / e o sol sempre a brilhar / se você não vem / e eu estou a lhe esperar / (...) / quero que você / me aqueça neste inverno / e que tudo mais / vá pro inferno...”), “Quero que Vá Tudo pro Inferno” é emblemático do primeiro estágio das carreiras de Roberto e de seu parceiro Erasmo Carlos, quando os dois representavam os papéis de jovens e rebeldes roqueiros (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “19”

 

Lima Barreto (História de um soldado velho)

Soldado velho deu baixa do Serviço do Exército por não servir mais para o trabalho. O soldo que recebia em recompensa de muitos anos de serviço foi um cruzado. Ora, o que faz ele? Comprou um pato e saiu a revendê-lo. 

Chegando perto de uma casa, sai-lhe uma criada a comprar o pato. Ele disse que o custo era de dois cruzados; ela vai falar à patroa, que manda vir o pato e também mandou pagá-lo. 

O soldado, porém, não saiu mais do portão. Dentro de certo espaço de tempo chega um frade para jantar na casa e pergunta o que estava aí fazendo. O soldado velho que fisgou alguma coisa, disse que estava à “espera” do pagamento de um pato que tinha vendido naquela casa. 

O frade perguntou quanto era; ele disse o custo de dois cruzados. O religioso puxa do bolso da batina o dinheiro e paga. 

Dispõe-se depois a entrar na casa; o soldado acompanha, juntos entram. Chegando na sala o frade, que parecia muito íntimo da casa, puxou, e sentou-se numa cadeira; o militar também faz o mesmo. 

A dona da casa vendo o frade entrar acompanhado com aquele homem desconhecido ficou curiosa, sem saber o que devia fazer e sem coragem de perguntar ao frade que homem era aquele. O eclesiástico não lhe dizia nada e assim vão, até chegar a hora do jantar a que não faltaria o pato de cabidela.

O frade tinha lugar na mesa; o soldado velho também faz o mesmo. A dona da casa estava curiosa, mas aceitava a situação fazendo das tripas coração.

Já estava a terminar o jantar, quando bateram à porta. Era o dono da casa. 

Estava tudo perdido. O que faz a mulher: tranca o frade e o soldado em uma alcova. 

O marido não saiu mais e a mulher cada vez mais ficava amedrontada. 

Chega a noite. O frade não tinha dado até ali uma palavra; o soldado velho também; mas quando foi ali pelas dez horas da noite, o soldado velho, vendo que todos estavam já agasalhados, principiou uma conversação com o frade.

Pediu-lhe este que não falasse ali, mas o militar continuou a falar.

O frade gratificou-lhe com um conto de réis para que ele não mais falasse. 

Recebeu o dinheiro o soldado velho, mas logo de novo começou a dizer que no dia que comia pato não podia ficar calado. Deu-lhe o frade um outro conto de réis ficando sem mais um vintém. 

O soldado velho, pois, continuou a falar. O companheiro, para ver se ele se calava, deu-lhe da batina de sede.

O soldado velho teimava em continuar a dizer que no dia que comia pato não podia estar calado. O frade já lhe pedia pelo amor de Deus que não falasse mais, pois se tal o não fizesse, ficariam desgraçados. O dono da casa certamente acordaria e era capaz de matá-los.

O soldado velho não queria saber de nada, o seu desejo era só de falar. O frade vendo que não tinha mais o que dar despiu-se de toda roupa e entregou-a ao soldado velho para que ele não falasse mais. 

Já sendo meia-noite na cadeia o sentinela solta o brado de alerta, o soldado velho ouviu e produziu um outro formidável brado. 

O frade, com medo, meteu as mãos na porta e saiu nu. 

Soldado velho que ainda não estava vestido com batina acompanhou o frade que pulou uma janela. 

O dono da casa pula atrás do frade e dá-lhe um tiro. 

O soldado velho pula atrás do dono da casa e o prende. 

O homem que era um homem de grande reputação não quis sujeitar-se à prisão, mas o soldado velho não queria saber de nada. Estava preso e bem preso, pois ele era o mandante e tinha que cumprir o serviço, tanto mais que o dono da casa tinha dado um tiro num homem. Não podia de maneira alguma soltá-lo. 

O dono da casa, vendo a resolução do soldado velho, e que tinha de ir mesmo à presença das autoridades, ele que era muito conhecido e respeitado por todos, propôs ao militar, se ele o soltasse, dar-lhe doze contos de réis. 

Soldado velho aceitou, mas com as condições do dono da casa mandar a sua mulher contar e trazer ali, onde estavam. 

O homem chamou a mulher e mandou que contasse doze contos de réis com toda pressa e trouxesse. 

Assim foi feito. Soldado velho, que só vencia um cruzado por mês, saiu da aventura com catorze contos e quatro cruzados e a batina do frade e todos os paramentos do frade.

Quem pagou o pato?

Fonte: Lima Barreto. Marginália.  Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Gago apaixonado)


Compositor: Noel Rosa

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Tem tem pe-pena deste mo-moribundo
Que que já virou va-va-va-va-ga-gabundo
Só só só só por ter so-so-sofri-frido
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu tens um co-coração fi-fi-fingido

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Teu teu co-coração me entregaste
De-de-pois-pois de mim tu to-toma-maste
Tu-tua falsi-si-sidade é pro-profunda
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu vais fi-fi-ficar corcunda!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

O Amor e a Dor de um Gago Apaixonado
A música 'Gago Apaixonado' de Noel Rosa é uma obra que mistura humor e melancolia para retratar a dor de um homem apaixonado. A letra é marcada pela gagueira do protagonista, que é uma metáfora para sua insegurança e nervosismo diante do amor não correspondido. A repetição das sílabas não só imita a fala de um gago, mas também enfatiza a intensidade de seus sentimentos e a dificuldade em expressá-los.

Noel Rosa, um dos maiores compositores da música popular brasileira, é conhecido por suas letras inteligentes e bem-humoradas, que frequentemente abordam temas do cotidiano com uma pitada de ironia. Em 'Gago Apaixonado', ele utiliza a figura do gago para criar uma personagem cômica, mas ao mesmo tempo trágica, que sofre com a crueldade da saudade e a falsidade do amor. A gagueira do protagonista é um símbolo de sua vulnerabilidade e do impacto emocional que a rejeição amorosa tem sobre ele.

A música também explora a dualidade entre o amor e a dor. O protagonista se sente destruído pela mulher que ama, que o fez sofrer e o transformou em um 'moribundo' e 'vagabundo'. A letra sugere que o amor não correspondido pode levar a um estado de desespero e perda de dignidade. A repetição da palavra 'tu' no final de cada estrofe reforça a acusação e a amargura do protagonista em relação à mulher que o enganou. Noel Rosa, com sua habilidade lírica, consegue transformar uma situação dolorosa em uma canção que é ao mesmo tempo tocante e divertida.

Lançada originalmente no teatro de revista na peça Café com Música onde se destacava a famosa cantora Araci Cortes, composição essa que se tornaria peça obrigatória nas apresentações de Noel Rosa; nesta composição Noel demonstra todo seu fino humor, sua imensa verve satírica e sua facilidade em retratar as características peculiares dos tipos humanos da sociedade brasileira dos anos 30, especificamente do Rio de Janeiro, capital da República do Brasil.

Noel inclusive gravou sua composição Gago apaixonado e costumava dizer em tom de deboche que o que mais gostava nesta música era o fato de "esta meus vizinhos não conseguem cantar" (Dárcio Fragoso).

Fontes:

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Renato Benvindo Frata (Natureza)

Autoritário e orgulhoso, o Sol não tinha amigos nem se importava em querê-los e, naquele dia, se aliou em parceria com o prepotente Vento. Reuniram-se, gabaram-se, esparramaram-se em contar vantagens, tramaram.

Quando Sol e Vento se reúnem, sabe-se que coisa boa não vem. Pacto feito, acertaram que a vítima seria a Manhã, a princesa dos campos, matas e rios. E o fizeram por inveja de sua leveza, desenvoltura e graciosidade.

- Não gosto dela - disse o raivoso Sol. - Quem pensa que é?

- Detesto-a - confirmou o Vento. - É ingênua, insegura e fraca!

Resolveram que, por ser bela, leve, desenvolta, graciosa, ingênua e insegura, merecia um bom castigo, desses que os maus gostam de conceber.

Tomados por superioridade e audácia, nem se deram conta do porquê de agirem assim, se há, entre coisas disponíveis, também as boas a serem feitas.

Eles preferiam as piores.

- Eu a aquecerei tanto e você a soprará com tanta força que nós, unidos, a faremos se sentir a mais infeliz dos seres! Quero vê-la se queimando num calor abrasador... he, he, he... - ordenou o Sol.

- Combinado! - exclamou o Vento. - Soprarei tanto que ela nem saberá o que fazer.

A Noite, que passara sonolenta pelas horas, não ouviu a conversa deles e, quando foi entregar ao Sol o relógio do tempo, recebeu dele um sorriso enviesado e um comentário:

- Você não viu e não verá o que vai acontecer! Você é notívaga... não sabe o que acontece durante o dia...

Intrigada, a Noite respondeu:

- Partindo de você com a sua prepotência, coisa boa não há de ser...

O Sol deu de ombros e chamou o Vento:

- Chegou a hora. Vai, sopra bem forte! Quero ver essa princesa se estragar.

E o Vento, ventando, soprou tanto, mas tanto, que levantou a saia da Manhã que, pega desprevenida, se agarrou nas barras do Horizonte, mas era tarde.

Havia mostrado tudo!

E aí uma grande surpresa aos olhos de todos: milhões de gotículas de orvalho brilharam nas pétalas, nos capins, nos campos e nas matas, refletindo, vejam só, a majestade da beleza do Criador.

Mostrou ao Sol e ao Vento o esplendor que é o amanhecer.

A Noite, que se escondera, sorriu com a decepção dos malvados. Como ela nunca foi orgulhosa, antes que o sol acordasse, colocou uma a uma daquelas gotículas no Sereno e mandou que ele espalhasse por tudo.

Envergonhados, o Sol se avermelhou e o Vento saiu de fininho, prometendo que daí por diante, pelas Manhãs, um seria ameno, e o outro, uma gostosa brisa.

Comporiam nessa parceria a beleza que temos no Alvorecer.

(Premiada no Femup 2021, Paranavaí, PR)

Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Recordando Velhas Canções (Gente humilde)


Compositores: Chico Buarque / Garoto / Vinícius de Moraes

Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar

Igual a como quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar
E aí me dá uma inveja dessa gente
Que vai em frente sem nem ter com quem contar

São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar

E aí me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar
E eu que não creio, peço a Deus por minha gente
É gente humilde, que vontade de chorar
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

A Melancolia e a Beleza na Simplicidade 
A música 'Gente Humilde', interpretada por Chico Buarque, é uma obra que reflete sobre a simplicidade e as dificuldades da vida nas áreas mais humildes da cidade. A letra expressa um sentimento de empatia e melancolia do eu lírico em relação às pessoas que vivem em condições modestas, mas que carregam uma dignidade e uma força admiráveis.

O início da canção revela uma reflexão introspectiva, onde o eu lírico se sente emocionalmente tocado ao pensar em sua 'gente', ou seja, nas pessoas simples e trabalhadoras que representam suas raízes ou sua comunidade. Há um aperto no peito, uma emoção que surge espontaneamente, indicando uma conexão profunda e uma preocupação genuína com o bem-estar dessas pessoas.

À medida que a música avança, o eu lírico descreve cenas do cotidiano suburbano, com suas casas simples e a vida que se desenrola na calçada. A inveja mencionada não é de natureza material, mas sim de um espírito de comunidade e de seguir em frente apesar das adversidades. A tristeza e a beleza se entrelaçam na descrição das flores 'tristes e baldias' e na alegria que parece não ter um lugar para se apoiar. A música culmina em um apelo emocionado a Deus, mesmo para aquele que não é crente, revelando a profundidade do sentimento de solidariedade para com a 'gente humilde'.

“Gente Humilde” teria surgido durante uma visita de Garoto a um subúrbio carioca. De repente, ao observar aquelas pessoas e suas casas modestas, ele resolveu homenageá-las numa canção. Tempos depois, a gravaria num acetato para o professor mineiro Valter Souto, registro que asseguraria a sobrevivência da composição, mantida inédita em disco comercial.

Finalmente, quase quinze anos após a morte de Garoto, Baden Powell mostrou-a a Vinícius de Moraes que, apaixonando-se pelo tema, deu-lhe uma letra em parceria com Chico Buarque. Aliás, uma letra primorosa que, segundo o próprio Chico, é quase toda de Vinicius: “São casas simples, com cadeiras na calçada / e na fachada escrito em cima que é um lar / pela varanda, flores tristes e baldias / como a alegria que não tem onde encostar...”

Muito antes, porém, houve uma outra letra (“Em um subúrbio afastado da cidade / Vive João e a mulher com quem casou / tem um casebre onde a felicidade / bateu à porta, foi entrando e lá ficou...”) de um poeta mineiro, que preferiu se manter no anonimato. Com esta letra, “Gente Humilde” foi cantada em programas da Rádio Nacional por Zezé Gonzaga e o coral Os Cantores do Céu, em arranjo de Badeco, do conjunto Os Cariocas (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

Aparecido Raimundo de Souza (Chuva ácida)

VERÔNICA TRAZIA na boca o gosto acre dos infindáveis caraminguás com os quais se relacionara durante toda a vida. No corpo inteiro, as marcas indeléveis dos amores tentados, e, no peito, as dores em virulenta profusão das paixões desfeitas. No frívolo incoerente dos olhos, recordações de figuras que usufruíram de seus melhores momentos no desfrute de infindáveis horas de prazer. Um diletantismo esmaecido e sem o fogo da mocidade, ou pior ainda, um resto dela que ainda insistia em manter uma tênue luz deixada pelo inóspito de uma distância alpestre (grosseira). 

Na alma combalida, estropiada e machucada, lembranças dos que se fartaram e se saciarem a bel prazer dos pecados da carne fraca. No geral, fantasmas iracundos se insurgiam do âmago de suas entranhas como se fossem restos de coisas repugnantes. Seu tato, sua química, seu suor, cheiros e gostos, aromas e olores, não dispunham agora do primor necessário para fazer alguém ficar por vontade própria. Faltava o distinto, o notável e o essencial, o excelente e o basilar.  Cicatrizes aqui e ali, lesões não curadas pareciam brechas profundas sedimentadas em sua armadura. 

Verônica sentia, na verdade, a necessidade de manter a postura dos vinte, mas, o peso da solidão e a carga fastidiosa da casa das sessenta primaveras, não davam tréguas. Ao contrário, magoavam e feriam profundamente. Sua vida se assemelhava à dos covardes e vencidos – os covardes e vencidos não fazem história –, simplesmente passam e seguem em frente, sem deixar vestígios dos feitos realizados. Verônica não tinha feitos memoráveis, nem páginas escritas. Tão somente folhas soltas ao sabor do nada. Rascunhos, debuxos e boquejos absolutamente inúteis que para coisa alguma serviam. Sequer, a bem de algo sólido, poderiam ou deveriam ser conservados ou restaurados. 

Apenas a fraqueza mirrada da covardia franzina e valetudinária (enferma) de não ter tentado coisa melhor. O livro-base da sua existência vazia e débil estava totalmente em branco. Em paralelo, timbres e sons sem ressonâncias harmoniosas, se confundiam numa abstinência de vidas retalhadas em completo e total fracasso. Em caminho igual, gritos e brados, clamores e rogos se perdiam difusos. Seu espírito se deixara ser levado por ruas e estradas tortuosas de inseguras realidades, como as corredeiras de um rio imenso e à esmo, buscando um afluente qualquer para se desaguar em morte lenta. 

Verônica, como essas águas, desejava um canto de sossego onde descarregar as mágoas do longo caminho percorrido. Esquecer o destino inglório e encontrar um pouco de paz. Pelo que sua vida de altos e baixos pagou em tributos, em igual camada de dissabores e desgraças, o amanhã poderia lhe comprar respostas. Ao invés disso, o porvir que se descortinava à frente, se mostrava complicado demais. Era triste aos extremos. Solitário e melancólico em demasia. As pessoas que não tem nenhum tipo de problemas ou questiúnculas pendentes conseguem vislumbrar um porvir colorido. Somente elas gozam desta beatitude e se permitem atingir o Nirvana do privilégio fazendo com que a alma se veja e se sinta em tranquilidade total e ausente de qualquer sentimento pernicioso. 

O resto, portanto, vegetava, malograva, naufragava “desprosperava,” em preto e branco.  Assim se resumia naquele instante o cotidiano de Verônica. Sem cor, sem brilho, sem um pingo de viço. Do acordar até a hora de voltar a dormir: à noite, igualmente longa e pegajosa, não ficava atrás: se fazia feia, hostil, sem sentido, mutilada. O mundo se assemelhava a um bicho pré-histórico de três cabeças a perseguir implacável. Ela, sozinha, se sentia numa espécie de hidrofobia viral. Tinha consciência, à morte, somente a Dama da Foice possuía o antídoto vital para tirá-la, de vez, daquela morbidez sem volta, daquela incerteza degradante, sem sentido lógico. 

Seu universo inteiro parecia que se deslocara da órbita natural. Dava sinais de ter seguido um trilhar secundário que se distanciava a cada minuto do que deveria ser seu hoje-agora. A sintonia meridiana desse planeta, se adumbrava (sombreava) a uma espécie rara de zumbi errante em busca do nada. Literalmente, Verônica fizera um suco de limão, mais que azedo e jogara fora o doce néctar que o destino lhe presenteara. Sem saída, sem bifurcações novas à frente, sem objetivos a serem alcançados, Verônica estancou os passos. Encarcerou seus anseios, abalou seus horizontes. Se interditou. 

Pés e mãos atados, olhou em volta de si e não viu nada. Espiou o céu e só enxergou nuvens negras. Fechou os olhos e também, dentro de si, coisa alguma. Não encontrou razão para continuar vivendo. Viver se resumia em algo sem sentido, sem conformidade ou nexo. O viver se opunha desleal, incômodo e nocivo. Lembrou da rodovia. Havia uma, não muito longe. Uma autovia gulosa que consumia o progresso. Talvez se servisse dos seus insucessos. Caminhou apressada. Como um braço enorme estendido ao “não sei para onde,” uma passarela metálica cruzava para o outro lado. 

Sob ela, carros, caminhões, ônibus e motos iam e vinham numa velocidade estonteante. Carros, caminhões, ônibus e motos passavam com pressa. Voavam ávidos de um destino certo.  Verônica não tinha destino, nem talvez, nem paradeiro. Menos ainda, ponto de chegada. Não dispunha de eira nem beira. Não sabia para onde ir, para onde chegar, para quem voltar. Não tinha o mínimo, ou melhor, um chão para continuar pisando. De repente, pulou num impulso incontido. Saltou do meio da passarela para o centro do desconhecido. Viajou com tudo, num plainar rápido e sem sentido, tão sem lógica como a sua vida sem brilho, sem sabor, sem razão de ser, sem o perfume das flores mais simples. 

Mergulhou de cabeça, esvaneceu, se reduziu a nada para o transito do tudo tresloucado que fluía com uma intensidade cada vez mais sedenta de sangue. No oco frio dos olhos, as recordações de figuras antigas que usufruíram de seu corpo por algumas horas de prazer. Na alma combalida, afundada em transgressões, lembranças caducas dos muitos e milhares que se fartaram e se saciaram a bel prazer do pecado na sua forma. Cicatrizes aqui e ali pareciam cissuras em sua armadura. Os covardes e vencidos não fazem história. Indubitavelmente, os covardes e vencidos não fazem his... 

Fonte: Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 51: Opróbrio

 

A. A. de Assis (Camões 500 anos)

Luís Vaz de Camões deixou para todos nós, povos lusófonos, uma herança cultural preciosíssima

Em todos os países de língua portuguesa está em andamento uma série de comemorações alusivas ao quinto centenário de Luís Vaz de Camões. Serão dois anos de congressos, seminários e outros eventos enfatizando a importância do nosso poeta máximo.  

Em verdade, não se sabe exatamente onde e quando ele nasceu: uns dizem que em Lisboa, outros que em Coimbra; uns dizem que em 1524, outros que em 1525. O que se tem por certo é que em Lisboa ele morreu, num bairro humilde, no dia 10 de junho de 1580.

Morreu pobrinho… ele que serviu de modelo para a formatação definitiva do nosso maior tesouro, a língua portuguesa, “última flor do Lácio”, filha caçula do velho latim.

Sabemos também que Luís de Camões foi soldado do Reino e como tal esteve na África, na  Ásia e em outros tantos ondes, fazendo guerras, fazendo versos, fazendo amor. Metonímia perfeita das mais vulcânicas paixões.

Perdeu a visão de um olho, dizem que numa batalha no Marrocos. Mas com o olho que sobrou ele brigou, namorou, navegou, sobreviveu a naufrágios. Consta até que numa dessas escapou nadando com um só braço, enquanto com o outro sobraçava os originais de “Os lusíadas”.

Voluptuoso daquele jeito, Luís Vaz de Camões foi todavia o gênio maior da cultura lusíada. Ponte entre o passado e o futuro; entre os símbolos da mitologia pagã e os valores do pensamento cristão. Porta de saída da Idade Média; porta de entrada para a civilização moderna.  O poeta do Renascimento português, o poeta épico, o poeta filósofo, o poeta lírico. O poeta flama, com quem aprendemos que “amor é fogo que arde sem se ver;/ é ferida que dói e não se sente;/ é um contentamento descontente;/ é dor que desatina sem doer”.

Embora fosse um poeta erudito, inspirou-se com frequência em canções e trovas populares e escreveu poemas que lembram as cantigas medievais, nos quais revela acentuada sensibilidade para os dramas amorosos ou existenciais. A maior parte da sua obra lírica é composta de sonetos e redondilhas.

Em 1572, com ajuda do rei Dom Sebastião, Camões conseguiu finalmente publicar sua obra-prima, “Os lusíadas”, onde sintetiza as principais marcas da história de Portugal: o humanismo e as expedições ultramarinas – em especial a descoberta do caminho para as Índias por Vasco da Gama.

Luís Vaz de Camões deixou para todos nós, povos lusófonos, uma herança cultural preciosíssima. Agora nos convida para celebrar com ele, no parnaso eterno, seus 500 anos de poesia e amor.

Fonte> Portal do Rigon. 27.06.2024,