domingo, 8 de junho de 2025

Asas da Poesia * 35 *

 

Poema de
SAMMIS REACHERS
São Gonçalo/RJ

Sororidade

Roubou coragem do livro santo, 
da mocinha da novela

Fugiu daquela casa, daquele cara 
sem mala sem mochila

Só uma sacola de supermercado 
cheia de segundas chances
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Poema de
FABIANE BRAGA LIMA
Rio Claro/SP

Amar é dar laço, não nó

Amar é dar laço, não nó...
Tenho diversos sonhos, tantas metas
Esqueço-me, dando voz a um poeta
Letras, palavras se fazem insuficientes
Reflito, tudo isto se esvai do meu ser
Permito-me sonhar e amar com ousadia.
Da alma crio os meus devaneios
E as minhas poesias
Sem palavras sou o silêncio e apenas leitor...
Mas não cesso a minha poesia
Que é o meu grito...
Grito alto em versos
Com todo sentimento da minha alma.
No verdadeiro amor,
Vejo a esperança e a paz,
Toda a inspiração é um mistério, que nos rodeia
Tudo que é recíproco
O psíquico não erra.
No presente me transbordo de felicidade
Há tempos desfiz do meu orgulho,
Despi-me dos meus medos e dúvidas
Amor é dar laço, não nó. 
Falta-nos vivência.
= = = = = = = = =  

Trova de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/ SP

Nos trilhos da solidão,
o retorno da saudade
ecoa em cada estação,
súplicas de liberdade.
= = = = = = = = =  

Poema de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

Mala com alça

É da lama essa mala que retiro
para subir a encosta (como a pedra
que Sísifo ainda empurra todo dia)
numa viagem cheia de sequelas.

Não há como negar tantos espinhos
na travessia turva de mistérios
que vão-se descobrindo nos caminhos:
a mão negada, a fome, o vitupério,

o rito solidário que esquecemos
em troca a vaidade transitória.
Somos do barro e ao barro voltaremos.

A verdade do Homem e de sua Hora
vem com mala e alça, disto sabemos,
mais o peso do corpo e sua história.
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

Ai, quase esqueci
dos nomes das famílias
Da rua onde cresci.
Mas na cortina do tempo
ainda há rabiscos de memória
E a rua calada me olha
Como a se lembrar de mim. 
= = = = = = = = =  

Trova de
MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR

Que se rompam os grilhões
do ódio e do preconceito;
vamos forjar, aos milhões,
elos de amor e respeito.
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Viviam-se muitos anos num só dia
(Alberto Pereira in "Textos de Amor", p. 21)

Viviam-se muitos anos num só dia
Quando esse teu sorriso em mim entrava
E aos teus beijos, inteiro, eu me entregava
Isento da noção do que ocorria.

O carinho encurtava a travessia
Do terno abraço ao fogo que avançava
Numa fogueira ardente que gastava
Os corpos que a paixão enlouquecia.

Como tochas ardendo em noite escura
Libertos do pudor e da censura
Lembramos dois faróis rasgando as trevas.

Somos partes de um todo indivisível
Mas tu roubas de mim o impossível
E a minha alma, em ti viva, tu a levas.
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Vendo, em mudo sofrimento,
a vida me desertar,
entendo, enfim, porque o vento
se recusa a silenciar.
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Tercetos  II

E, já manhã, quando ela me pedia
Que de seu claro corpo me afastasse,
Eu, com os olhos em lágrimas , dizia:

“Não pode ser! não vês que o dia nasce?
A aurora, em fogo e sangue, as nuvens corta...
Que diria de ti quem me encontrasse?

Ah! nem me digas que isso pouco importa!...
Que pensariam, vendo-me, apressado,
Tão cedo assim, saindo a tua porta,

Vendo-me exausto, pálido, cansado,
E todo pelo aroma de teu beijo
Escandalosamente perfumado?

O amor, querida, não exclui o pejo...
Espera! até que o sol desapareça,
Beija-me a boca! mata-me o desejo!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar, como há pouco repousava!
Espera um pouco! deixa que anoiteça!”

- E ela abria-me os braços. E eu ficava.
= = = = = = 

Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Meu conflito e meu fracasso 
é que as trovas que componho 
têm sempre os versos que eu faço, 
e nunca os versos que eu sonho…
= = = = = = 

Poema de
CARMO VASCONCELLOS
Lisboa/Portugal

Flores e citrinos

Uma aquarela anil de flores e citrinos
lembrou-me a vida ajardinada de azedumes...
É sábio o Cosmos... e a nós, meros peregrinos,
não nos é dado a Lei mudar nem seus costumes.

Por aqui vamos a provar fel e doçuras,
aproveitando da jornada os seus sabores
que, se num dia nos mostra apenas amarguras,
noutro, mergulha-nos num rio de mel e amores.

Porque se tudo sabe a doce o enjoo é fatal,
e se a amargura não voltasse em seu momento,  
jamais se tinha o contraponto desse sal,
a temperar nossa existência em crescimento.

Como negar o dedo sábio da alternância,
quando do caos surgem arroubos de alegria?...
Vede que igual a natureza, em inconstância,
sempre engravida a noite escura d’alvo dia.

Vede a maré alta que sepulta a baixa-mar,
o divinal calor que amansa o rude frio, 
a paz, depois de agre procela se acalmar,
e o mar que faz-se lago, após ondear bravio.

Louvemos essa miscelânea: riso e dor,
façamos nosso aprendizado co'a alternância,
divina Lei do Deus Supremo... que d’amor 
p’la Humanidade, faz constante essa inconstância!
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Poetrix de
ARGEMIRO GARCIA
São Paulo/SP

Caminho do sertão

Levanta-se pó na estrada,
rodando: será saci?
canta longe um bem-te-vi
= = = = = = 

Glosa de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Confissão de amor

MOTE
Vou confessar-te, querida,
porque tu és minha flor,
por ti eu dou minha vida,
por ti eu morro de amor.

GLOSA
Vou confessar-te, querida,
que não tenho outro desejo,
só quero ver-te esculpida
na moldura do meu beijo.

Quero sentir teu carinho
porque tu és minha flor
perfumando o meu caminho
sem mágoas por onde eu for.

Não sei se és prometida
- nem quero dizer adeus,
por ti eu dou minha vida
olhando nos olhos teus.

Quero viver tão somente
longe da mágoa e da dor,
se a vida for exigente,
por ti eu morro de amor.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Desta saudade, o vazio
parece até que traduz
um velho teto sombrio
filtrando um raio de luz!
= = = = = = 

Hino de 
BOA ESPERANÇA/ PR

Uma estrela brilha em águas formosas
Que seu berço fizeram do chão
Onde o sol doura as plantas viçosas
Cintilando do branco algodão
Num cenário que ao vento balança
Desvendando horizontes de luz
A imponência de Boa Esperança
Meu torrão que me envolve e seduz.

(Estribilho)
Nossa Senhora da Guia, padroeira.
Com seu manto abençoado
Protege esta terra alvissareira
E o seu povo predestinado
Que aqui haja sempre bonança
Salve, salve, oh Boa Esperança.

Num cenário de rara beleza
Irrigando estes vales em flor
Fluem as águas de alva pureza
Do barreiro em seu esplendor
Boa Esperança, cidade querida.
És a joia mais linda que há
Tudo em ti é amor, luz e vida.
Filha altiva do meu Paraná!
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Os sons da Lapa

O batuque animado lá da Lapa
Alcança no meu quarto meus ouvidos,
Que despertam meus sonhos tão queridos
E me fazem lembrar a velha etapa.

Aqueles meus encontros preferidos
Fizesse sol ou chuva, eu à socapa,
Correndo na ladeira o pé derrapa
E os pensamentos todos são perdidos.

Tal qual ímã que atrai o vil metal
Também os sons da Lapa repetidos
Trazem-me de tão longe um carnaval...

Aquele que num corso te encontrava
E rebolando em trajes coloridos
Ao cruzar teu olhar me fiz escrava.
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Uma Lengalenga de Portugal
PIQUE PIQUE

Pique pique
Eu piquei,
Grão de milho
Eu achei,
Fui levá-lo
Ao moinho,
O moinho
Não moeu,
Foram lá os ladrões
Que me levaram os calções.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Batatinha quando nasce,
põe a rama pelo chão;
Sinhazinha quando deita
põe a mão no coração.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Pétalas douradas

O toque suave
E intenso das tuas mãos,
Desenha poemas,
Pincelando sonhos
E tingindo de dourado
As pétalas de rosas,
Do meu jardim...
O toque suave
E intenso das tuas mãos
Envolve meus dias,
E a noite aconchega-se
Às minhas lembranças,
E aquece-me com tuas carícias.
= = = = = =

Epigrama de
CECÍLIA MEIRELES
(Cecília Benevides de Carvalho Meireles)
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964 

Epigrama n. 8

Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.
= = = = = = = = =  

Martelo Agalopado de
PROFESSOR GARCIA
(Francisco Garcia de Araújo)
Caicó/RN

No repente, ninguém traça uma meta,
mas é bom que um roteiro a gente trace,
pois do nada, um improviso sempre nasce
e a beleza da vida se completa.
Não precisa que seja em linha reta,
pode ser por caminho tortuoso,
pois o verso sofrendo é mais famoso
aos primeiros suspiros da manhã,
quando o sol salpicando o morro e a chã
torna o verso mais belo e mais formoso!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Se os meus suspiros pudessem
a teus ouvidos chegar,
verias que uma saudade
é bem capaz de matar.
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Setilhas do
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

O poeta já vem com a verve feita
por Deus Pai nosso mestre e criador;
alguns nascem com a mente de aprendiz
outros tantos já nascem professor,
e Deus vendo chegar a minha vez,
com a bênção sagrada Ele me fez:
Fuzileiro, Poeta e Trovador.

Escorado no topo da muleta,
eu me fiz um poeta e trovador;
meu passado de atleta e de boêmio
para mim, não foi nada alentador;
mas depois do meu trágico acidente,
encontrei na poesia e no repente
o remédio eficaz pra minha dor.

Como prova de amor, maior do mundo,
Cristo morre por nós, os pecadores.
Vejo ainda no manto de Maria
os vestígios de suas próprias dores;
e, dotado de toda perfeição,
pra falar deste amor e do perdão
Deus criou os poetas Trovadores.
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Soneto de
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP+

Noturno

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
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Soneto de 
FLORBELA ESPANCA
(Florbela d'Alma da Conceição Espanca)
Vila Viçosa/Portugal, 1894 — 1930, Matosinhos/Portugal

Caravelas

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar-Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram.

Caravelas douradas a bailar…
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!…
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Triverso de
ALBERTO MARSICANO
São Paulo/SP

Cumes
de cumulus
se acumulam
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Décima de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

A mais cara e perfeita maquilagem
que lambuza e restaura certo rosto
por prazer ou se não a contra gosto
torna falso o semblante da imagem
é o outono tristonho sem plumagem
é o alto do céu sem um condor
é um jarro quebrado sem a flor
é a infância sem um conto de fada
eu não vejo beleza em quase nada
que não tenha beleza interior.
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Trova de
BASTOS TIGRE
(Manuel Bastos Tigre)
Recife/PE, 1882 – 1957, Rio de Janeiro/RJ

Como infeliz é esta gente             
que pensa que ser feliz        
é não dizer o que sente      
e não sentir o que diz!
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Elegia* de
DAVID MOURÃO-FERREIRA
(David de Jesus Mourão-Ferreira)
Lisboa/Portugal, 1927 – 1996

Elegia do ciúme 

A tua morte, que me importa,
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo (mas que importa?)
possuir em sonho quem morreu.

Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.

Onde estiveste? Onde? Com quem?
— Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei: com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.

E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
— agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.
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* Modernamente, elegia é uma poesia de tom terno e triste. Geralmente é uma lamentação pelo falecimento de um personagem público ou um ser querido. Vale ressaltar que na elegia também há digressões moralizantes destinadas a ajudar ouvintes ou leitores a suportar momentos difíceis. Por extensão, designa toda reflexão poética sobre a morte: a elegia, assim como a Ode, tem extensões variadas. O que as difere é que a elegia trata de acontecimentos infelizes.

Na antiguidade, a elegia era uma composição da poesia lírica monódica (ou seja, declamada pelo próprio poeta, geralmente, e acompanhada por um só instrumento musical - como a lira; ao contrário da lírica coral, apresentada por um coro, como ou sem acompanhamento musical), aparentada à épica pela sua forma. No entanto, o metro utilizado era o dístico elegíaco. Havia vários tipos de elegia, conforme seu conteúdo: elegia marcial ou guerreira, elegia amorosa e hedonista, elegia moral e filosófica, elegia gnômica...

Inicialmente definida pelo metro específico, chamado metro elegíaco, a elegia passou a designar um gênero poético que se caracterizou não pela forma, mas pelo assunto: a tristeza dos amores interrompidos pela infidelidade ou pela morte.

A elegia surgiu na Grécia antiga, com Calino de Éfeso (século VII a.C.), Tirteu e Mimnermo. Seus poemas eram cantos guerreiros que incitavam à luta. Calímaco, importante poeta alexandrino do século III a.C., foi um dos primeiros a escrever elegias no sentido do moderno termo, ou seja, como poemas líricos e tristes. Sua elegia “Os cabelos de Berenice”, da qual só restaram fragmentos, constituiu o primeiro modelo do gênero.

Entre os romanos, o primeiro grande poeta elegíaco foi Tibulo. Seus três livros sentimentais, muito lidos durante a Idade Média, influenciaram fortemente os poetas da Renascença. Foram preferidos às elegias de Propércio, que inauguraram um subgênero, com poemas ardentemente eróticos. O mais importante dos elegíacos romanos foi Ovídio: os Poemas tristes e as Cartas do Ponto, que lamentavam seu exílio, se aproximam bastante das elegias modernas.

No século XVI, a elegia transformou-se num dos gêneros poéticos mais cultivados, embora ainda pouco definido. Em Portugal, o primeiro escritor de elegias foi Sá de Miranda, mas Camões foi o principal: da edição de 1595 de suas obras completas, constam quatro elegias, tidas pelas melhores em língua portuguesa. Na França da Renascença, destacou-se no gênero Pierre de Rosnard.

Na poesia inglesa, a elegia apareceu com Astrophel, lamento fúnebre de Edmund Spenser. Durante quase três séculos produziram-se, dentro desse modelo, alguns dos maiores poemas da literatura inglesa, como Lycidas, de Milton (1638), Adonais, de Shelley (1821), sobre a morte de Keats, e muitas outras. Contudo a mais famosa elegia da língua inglesa foi Elegy Written in a Country Church Yard (1751; Elegia escrita num cemitério da aldeia), de Thomas Gray, meditação sobre a morte de gente humilde e anônima e uma das obras capitais do pré-romantismo europeu.

Em outras literaturas, a elegia assumiu características [[pagãs], como as belas e eróticas Römische Elegien (1797; Elegias romanas), de Goethe, obra prima da literatura alemã. No século XX, a obra mais importante do gênero foi sem dúvida Duineser Elegien (1923; Elegias de Duino), do poeta alemão Rainer Maria Rilke. No Brasil, o mais importante autor de elegias foi Fagundes Varela, no século XIX. Destacam-se ainda Cristiano Martins, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles (em Solombra) e Dantas Mota, no século XX. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Elegia)
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Eduardo Martínez (Matuto no confessionário)


Lá estava aquele matuto contando mais um desses causos que, por coincidências da vida, parecem acontecer somente em Minas Gerais. No entanto, Natalino era de Luziânia, bem coladinho ao Distrito Federal.

Diante de tais histórias quase impossíveis, o homem acabou angariando alguns desafetos, que o chamavam de mentiroso. Já os amigos, por mais que também duvidassem daquelas incongruências com a verdade, cismavam em defendê-lo. 

A intriga estava tão grande, que o padre resolveu chamá-lo para uma confissão que, não se sabe como, acabou virando mais um causo. O loroteiro de um lado do confessionário; o padre, do outro. 

Natalino disse que havia sido perseguido por um homem de três metros de altura. O grandalhão estava com um facão maior do que uma pessoa de estatura média. Enquanto corria, Natalino acabou tropeçando em um tronco e caiu. Na verdade, segundo o contador de causos, o tronco era uma cobra.

Como estava escuro, o grandalhão não percebeu que Natalino se esgueirou para o meio do capim alto. Ele tentou não se mexer, ficou com um olho no facão e o outro na serpente.

— Seu padre, mas eu juro que é verdade!

— Mas como pode isso, meu filho? 

— Pois bem. Lá estava eu naquele mundaréu sem fim, o capim dessa altura. De repente, aquele homem me achou e sorriu aquele sorriso maligno. Ele ergueu o facão pra mim e já ia me cortar em pedacinhos. Mas aí, graças ao nosso bom Jesus Cristo, a cobra picou o dedinho do pé do homem. A botina dele tinha um furinho justamente ali. Por sorte minha, o bandido caiu durinho na hora!

— Meu filho, e que cobra era?

— Ah, isso eu não sei não. Mas que a bicha tinha três tipos de veneno, ah, isso tinha!

— E cadê o corpo do homem que ninguém viu, Natalino?

— E não é que apareceu uma onça e comeu o mardito inteirinho?

— Até os ossos?

— Pro senhô vê! Inté os ossos!
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

José Feldman (Os Rabugentos)


Na praça central da cidade, dois rabugentos, Arlindo e Eulália, se encontravam todos os dias no mesmo banco, discutindo sobre tudo e sobre nada.

— Olha só, Arlindo! — começou Eulália, ajeitando os óculos. — Você viu o que estão fazendo com as festas de São João? Agora têm até DJ! DJ! No meu tempo, a gente tinha sanfona e fogueira, e era assim que dançava!

Arlindo bufou, cruzando os braços. — DJ? Bah! Isso é coisa de jovem que não sabe o que é música de verdade! Antigamente, a gente dançava forró de verdade, e não essa barulheira eletrônica!

— Barulheira? — Eulália riu, sarcástica. — E você acha que o seu forró de antigamente era suave como um sussurro? Eu me lembro das suas tentativas de dançar! Mais parecia um pato desengonçado!

Arlindo arregalou os olhos. — Pato? Eu era um verdadeiro galã! As meninas se derretiam ao me ver dançar! E você, com seu vestido de chita, parecia um buquê de flores murchas!

— Ao menos eu não precisava de um milagre para fazer os outros dançarem! — Eulália respondeu, dando uma risadinha. — As moças se divertiam, ao contrário de você, que ficava parado, esperando a música acabar!

Arlindo fez uma expressão de indignação. — Parado? Você se esqueceu do meu famoso “passo do relógio”? Era um sucesso! Todo mundo imitava!

— Sucesso? Só se foi sucesso para as formigas que você pisoteou! — Eulália gargalhou. — Lembro que uma vez, você quase derrubou a mesa de comes e bebes!

Arlindo apontou o dedo para ela. — E você, com seu jeito de crítica de arte, que só sabia reclamar da comida! “Não tem sabor!”, “não tem tempero!” Ah, Eulália, você era a rainha da reclamação!

— E você, o rei da nostalgia! — replicou Eulália, com um sorriso malicioso. — Fica falando do passado como se fosse um conto de fadas, mas eu lembro bem! O que você chamava de “aventuras” eram na verdade escapadas com a sua bicicleta quebrada!

— Era uma bicicleta clássica! — Arlindo defendeu, balançando a cabeça. — E quem mais teria coragem de descer aquela ladeira sem freios? Aquilo, minha cara, era emoção!

— Emoção? Ou seria imprudência? — Eulália riu, se divertindo com a lembrança. — Eu me lembro do dia em que você quase se atirou no lago! Quase foi um “peixe fora d’água”!

Arlindo ficou pensativo. — É, mas pelo menos eu fiz história! E agora? O que você tem feito? Apenas ficar aqui reclamando da vida?

— Olha, se a vida atual é isso que a gente vê por aí, eu prefiro o passado! A internet? Uma invenção do diabo! Olha a juventude, todos com as cabeças enfiadas em telas!

— E o que você propõe? Que voltemos a escrever cartas? — Arlindo disse, levantando as sobrancelhas. — A última vez que você escreveu uma carta foi para reclamar do seu sofá!

— E que sofá! — Eulália exclamou. — Você se lembra? Aquele sofá tinha mais buracos que um queijo suíço! E você dizia que era “vintage”!

— Vintage é uma palavra moderna! — Arlindo gritou, gesticulando. — Na minha época, a gente chamava de “velho”! E não precisava de palavras chiques para isso!

— E se eu chamasse você de “vintage”? — Eulália perguntou, com um sorriso travesso. — Porque se você não parar de reclamar, vou ter que te colocar em uma vitrine!

— Ah, não se preocupe! Eu não sou tão fácil de ser colocado em uma vitrine! — Arlindo respondeu, piscando. — A última vez que tentei entrar em uma, quase me machuquei!

Eulália se virou para ele, segurando o riso. — Eu só espero que, se um dia você for para uma vitrine, não coloque uma placa dizendo “não toque”! Porque as pessoas podem acabar acreditando!

Arlindo bufou novamente. — Sabe de uma coisa, Eulália? Apesar de tudo, você me faz rir. Mesmo que eu tenha que aguentar suas histórias do passado.

— E você, Arlindo, me faz lembrar que o presente é só uma forma de eu me divertir com os seus devaneios! — Eulália respondeu, piscando.

Os dois velhos rabugentos continuaram a discutir, mas a verdade é que, no fundo, eles sabiam que a amizade que construíram ao longo dos anos era mais forte que qualquer angústia do presente ou nostalgia do passado. E, assim, entre risadas e provocações, o dia passava na praça, onde o passado e o presente se encontravam numa dança cômica e eterna.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Juan Barnav (Como escrever um livro) – 6. Sucessos fundamentais da obra


Definir os eventos que você deseja capturar em sua obra é um dos pontos fundamentais, além de constituir o principal exercício do nosso trabalho.

Nos anteriores, acumulamos uma série de elementos que nos ajudam a moldar as características do tipo de obra que desejamos criar. E, seja uma obra de conteúdo histórico ou ficcional, devemos enfrentar o desafio de desenvolver o enredo.

Já vimos no anterior o que consiste um enredo do ponto de vista etimológico; isto é, esclarecer as coisas. Isso significa simplesmente que, uma vez escolhido o tema, para esclarecer as coisas sobre ele, devemos desenvolver seu conteúdo. Isso é tudo o que queremos dizer sobre o propósito, o que nos preocupa, o que sabemos, o que podemos descobrir por meio da pesquisa, a fim de chegar a um objetivo, a uma conclusão.

Devemos partir do enfoque específico que queremos dar à obra, seja ela um romance ou uma obra histórica, uma biografia. Se tomarmos Napoleão, por exemplo, e não pretendemos uma obra exaustiva, podemos restringir o foco de sua biografia: um ensaio sobre a importância de Napoleão como estrategista; ou a vida amorosa do Grande Corso. Um foco nas circunstâncias que levaram Bonaparte a criar seu famoso Código, que incorpora valores que ainda são relevantes, mais de 200 anos após sua existência.

Se a política traduzida para a literatura produziu temas tão importantes na ficção quanto as intrigas de Macbeth, de Shakespeare, na realidade o notório Caso Dreyfus levou Émile Zola a se esforçar para desvendar a corrupção do regime francês em 1900. E, mais recentemente, o jornalismo investigativo de dois repórteres americanos que levou à queda do líder da nação mais poderosa do mundo, há apenas 27 anos, como lemos em Todos os Homens do Presidente.

Questões cotidianas fornecem exemplos de temas desenvolvidos de forma inteligente que levam a trabalhos interessantes.

Se a seção financeira do jornal pode parecer árida para alguém, seria uma boa ideia escrever um conto sobre as dificuldades enfrentadas por um grupo de empresários diante de uma hipotética quebra da bolsa de valores de Hong Kong. Quais seriam as repercussões em cada país? Qual dos protagonistas, profundamente envolvido em atos ilícitos, tiraria a própria vida, como aconteceu em muitas partes do mundo durante a famosa quebra de 29?

E não nos esqueçamos de uma seção com grande público: a seção de esportes. As aspirações de atletas em ascensão de cumprir o lema olímpico: mais rápido, mais alto, mais forte. Esse é o lema de muitos que dedicam boa parte de suas vidas à prática de alguma modalidade esportiva.

Para além de uma mente sã em um corpo são, o esporte compõe um mundo que só quem se aprofunda consegue entender os problemas enfrentados tanto pelo próprio atleta quanto pelos chamados "atletas de calças compridas", aqueles que geram homens e recursos, envoltos em circunstâncias que o escritor que adota essa temática pode tornar mais ou menos sombrias, mais ou menos dramáticas, repletas de aspirações para os praticantes ou até mesmo uma história sentimental diferente, em meio às circunstâncias que cercam os atletas em determinados momentos.

Da criação dos mitos mais antigos aos temas atuais que exploram os labirintos insondáveis da mente, eles criaram obras literárias gigantescas que perduram.

O que é fantasia?

Afirmamos que é a capacidade criativa para coisas impossíveis. Embora muitos neguem possuí-la, ela pode estar escondida em algum recesso da mente e só precisa ser exercitada para que irrompa incontrolavelmente. Como em todos os casos, é necessário exercitar os órgãos para que não atrofiem e, embora o cérebro não seja um músculo, deve ser exercitado para produzir os sonhos mais loucos que se possa ter.

A literatura é a porta de entrada para as manifestações humanas mais íntimas, que um autor se permite colocar por escrito para que outros leiam. É aqui que sentimentos e preocupações emergem, e medos, sejam eles próprios ou alheios, são frequentemente anotados quando a criatividade permite que se tome essas experiências de outros e que o escritor tenha se inspirado a colocar essas expectativas no papel.

Esse tipo de texto, onde o medo impera, tem um aspecto muito especial, pois dá origem a histórias repletas de suspense, drama e angústia diante do desconhecido ou da certeza opressiva do futuro. A partir daí, é possível expressar pensamentos como aqueles que fizeram de Edgar Allan Poe o mestre das histórias de terror.

A soma de todos os temas que podem ser desenvolvidos nos guiará para definir os eventos importantes que formarão o núcleo da nossa história.

Exercício:

– Descreva a cor azul. O que ela evoca em sua imaginação, como uma paixão, como um objeto, como um símbolo?

– Escreva uma sinopse de uma página dos eventos mais marcantes da história que você deseja escrever, com base em um tema específico. 
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continua… 7. Os sentimentos dos personagens

Fontes:
http://www.mailxmail.com/curso-como-escribir-libro/ (tradução do espanhol por Jfeldman)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Zitkala-Ša (Os sete guerreiros)


(tradução do Inglês por José Feldman)

CERTA VEZ, sete guerreiros saíram para fazer guerra - as Cinzas, o Fogo, o Bexiga, o Gafanhoto, a Libélula, o Peixe e a Tartaruga. Como eles estavam conversando animadamente, agitando os punhos em gestos violentos, o vento veio e explodiu as Cinzas. 

“Ho!” gritaram os outros, “Ele não conseguiu lutar!”

Os seis continuaram correndo para fazer a guerra mais rapidamente. Desceram um vale profundo, o Fogo indo em primeiro lugar até chegarem a um rio. 

O Fogo disse "Hsss-tchu!" e desapareceu. "Ho!" gritaram os outros, "ele não conseguiu lutar!"

Por isso os cinco partiram mais rapidamente para a guerra. Eles foram para um grande madeira. Enquanto eles passavam por isso, a Bexiga foi ouvida zombar e dizer, “He! vocês deveriam se elevar acima destes, irmãos.” 

Com estas palavras ele subiu entre os topos das árvores; e a maçã espinhosa o picou. Ele caiu pelos galhos e não era nada! “Você vê isso!” disse os quatro, “este não poderia lutar.”

Mesmo assim, os guerreiros restantes não voltariam atrás. Os quatro foram corajosamente para fazer guerra. 

O Gafanhoto e sua prima, a Libélula, foram à frente. Chegaram a um lugar pantanoso, com um atoleiro muito fundo. Enquanto caminhavam pela lama, as pernas do Gafanhoto ficaram presas e ele as arrancou! Ele rastejou sobre um tronco e chorou: "Vocês me veem, irmãos, eu não consigo ir!"

A Libélula continuou, chorando por seu primo. Ele não seria consolado, pois amava muito seu primo. Quanto mais ele sofria, mais alto chorava, até que seu corpo tremeu com grande violência. Ele assoou o nariz vermelho e inchado com um barulho tão alto que sua cabeça se desprendeu do pescoço esguio, e ele caiu na grama.

"Vejam como é", disse o Peixe, abanando o rabo impacientemente, "essas pessoas não eram guerreiras!"

"Venham!" disse ele, "vamos continuar a guerrear."

Assim, o Peixe e a Tartaruga chegaram a um grande acampamento.

"Ei!" exclamaram as pessoas daquela vila redonda de tendas, "Quem são esses pequeninos? O que eles procuram?"

Nenhum dos guerreiros carregava armas consigo, e sua estatura imponente enganou os curiosos.

O Peixe era o porta-voz. Com uma peculiar omissão de sílabas, ele disse: "Shu... hi pi!”

"Wan! O quê? O quê?" clamavam as vozes ansiosas de homens e mulheres.

O Peixe disse novamente: "Shu... hi pi!" Por toda parte, jovens e velhos, com a palma da mão no ouvido. Ninguém ainda adivinhava o que o Peixe havia murmurado!

Da multidão perplexa, o velho e espirituoso Iktomi se aproximou. "He, escutem!" gritou, esfregando as palmas das mãos travessas, pois onde havia alguma confusão se formando, ele sempre estava no meio dela.

"Este homenzinho estranho diz: 'Zuya unhipi! Viemos para fazer guerra!'"

"Uun!" ressentiram-se as pessoas, subitamente abatidas. "Vamos matar a dupla tola! Eles não podem fazer nada! Eles não sabem o significado da frase. Vamos acender uma fogueira e cozinhar os dois!"

"Se nos colocarem para ferver", disse o Peixe, "haverá confusão."

"Ho ho!" riram os aldeões. "Veremos."

E então eles fizeram uma fogueira.

"Nunca fiquei tão irritado!" disse o Peixe. A Tartaruga, em um sussurro, respondeu: "Vamos morrer!"

Quando um par de mãos fortes levantou o Peixe sobre a água que jorrava, ele abaixou a boca. "Uhssh!" disse ele. Soprou a água sobre as pessoas, de modo que muitas ficaram queimadas e não conseguiam enxergar. Gritando de dor, elas fugiram.

"Oh, o que faremos com esses horríveis?" disseram elas.

Outros exclamaram: "Vamos levá-los para o lago de água lamacenta e afogá-los!"

Imediatamente, correram com elas. Jogaram o Peixe e a Tartaruga no lago. Em direção ao centro do grande lago, a Tartaruga mergulhou. Lá, ela espiou para fora da água e, acenando com a mão para a multidão, gritou: "É aqui que eu moro!"

O Peixe nadava de um lado para o outro com movimentos tão travessos que sua barbatana traseira fazia a água voar. "E han!" gritou o Peixe, "é aqui que eu moro!"

"Oh, o que nós fizemos!" disseram as pessoas assustadas, "isso será nossa ruína.”

Então, um sábio chefe disse: "Iya, o Devorador, virá e engolirá o lago!"

Então, um deles correu. Trouxe Iya, o Devorador; e Iya bebeu o dia todo no lago até que sua barriga se tornasse como a terra. Então, o Peixe e a Tartaruga mergulharam na lama; e Iya disse: "Eles não estão em mim". 

Ouvindo isso, o povo chorou muito.

Iktomi, que vadeava no lago, havia sido engolido como um mosquito na água. Dentro do grande Iya, ele olhava para o céu. Tão funda era a água no estômago do Devorador que a superfície do lago engolido quase tocava o céu.

"Eu irei por ali", disse Iktomi, olhando para a concavidade ao alcance do braço.

Ele cravou sua faca no estômago do Devorador, e a água que caía afogou as pessoas da aldeia.

Então, quando a grande água caiu em seu próprio leito, o Peixe e a Tartaruga chegaram à margem. Eles voltaram para casa vitoriosos e cantando em voz alta.
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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing