terça-feira, 20 de maio de 2008

Da Chen (A Montanha e o Rio)

Uma jovem chinesa corre em direção a um precipício de sua aldeia montanhosa, em 1960. Grávida, solteira e abandonada pelo homem que a seduziu – um general do círculo próximo ao ditador Mao Tsé-tung –, a pobre moça vai se suicidar. Em pleno salto, ela dá à luz um menino, Shento, que se salva da queda porque o cordão umbilical se enrosca em um arbusto. Essa é apenas a primeira cena de A Montanha e o Rio (tradução de Paulo Andrade Lemos; Nova Fronteira; 496 páginas), primeiro romance do chinês Da Chen, há duas semanas na lista de mais vendidos de VEJA – e as mais de 400 páginas que se seguem se mantêm fiéis a esse estilo exagerado e folhetinesco para compor um painel da China em sua transição do totalitarismo comunista de Mao para o capitalismo autoritário de Deng Xiaoping (que, no livro, aparece com outro nome). "A situação das mulheres no interior da China ainda hoje é muito ruim", disse Da Chen em entrevista a VEJA. "Muitas trabalham como empregadas domésticas nas cidades. Se engravidam, voltam em desgraça para casa."

Nascido em 1962 numa pequena vila no sul da China e neto de um fazendeiro que teve suas terras desapropriadas pelo comunismo, Da Chen tem suas próprias histórias dramáticas para contar. Nos anos 60, durante a Revolução Cultural – a fase mais tenebrosa do regime maoísta –, a família do futuro escritor era vista com desconfiança pelos tiranetes locais. O pai e o avô de Da Chen passavam por espancamentos periódicos, e o menino chegou a ser proibido de freqüentar a escola. Radicado nos Estados Unidos desde os 23 anos (A Montanha e o Rio e dois livros de memórias do autor foram escritos em inglês), Da Chen ainda hoje engasga quando relembra esse tempo. "Meu filho hoje tem 9 anos e só pensa em estudar e brincar. Eu, na mesma idade, passava o dia recolhendo esterco de vaca para usar como adubo", diz.

A Montanha e o Rio acompanha a história de dois meio-irmãos que crescem sem se conhecer: Shento, não bastasse ser filho da suicida, perde os pais adotivos e acaba num orfanato draconiano – mas mesmo assim consegue fazer carreira no Exército, chegando a um alto posto no governo. Tan faz o caminho inverso, de privilegiado filho da elite comunista a dissidente político. Com seu tom sentimental, suas crianças pobres e orfanatos infernais, o romance deve muito ao escritor inglês Charles Dickens, autor de David Copperfield e Grandes Esperanças. "Dickens é um dos meus mestres. Na minha infância, os únicos filmes ocidentais que os comunistas nos deixavam ver eram adaptações inglesas dos romances dele", diz Da Chen. Graças a elas, os ingênuos chineses eram levados a acreditar que as agruras dos miseráveis órfãos da era vitoriana ainda constituíam a realidade contemporânea do capitalismo malvado.
-
Trecho do livro

CAPÍTULO 1
Shento 1960

BALAN, SUDOESTE DA CHINA

PARA CONTAR A HISTÓRIA do meu nascimento, não vou começar pelo início, mas pelo fim do meu começo. Para falar a verdade, nasci duas vezes. A primeira foi quando rasguei a passagem escura das entranhas de minha mãe. A segunda foi quando o velho curandeiro da aldeia me salvou.

A jovem que me deu à luz pretendia acabar com tudo, não apenas com a sua vida, mas também com a minha, no exato momento da minha chegada a este mundo. Tinha pressa em se atirar do penhasco que ficava no topo do monte Balan, mas eu fui mais rápido do que suas pernas inchadas e escapei de seu ventre bem no momento em que ela avançava para a beira daquele precipício fatídico. As pessoas da aldeia tentariam imaginar o que a teria levado a isso, transformando-se numa espécie de mito ao saltar do ponto mais alto da montanha, comigo ainda ligado a ela pelo cordão da vida, o emaranhado cordão umbilical.

Pulei para fora antes que ela se atirasse no abismo, nascido em pleno ar, pairando acima de tudo. Posso imaginá-la lançando-se daquele penhasco escarpado como uma águia planando em direção ao solo, liberta de seu ninho, de suas amarras, de seus pecados, em seu lamento final, para ser esquecida pelo vento que fazia esvoaçar seu cabelo viçoso de moça, enquanto se arremessava precipício abaixo. Nós dois, anjos geminados e sem asas, caíamos em queda livre. Mas o impensável aconteceu. A mão do destino interveio. Eu, o recém-nascido choroso, caindo no rastro de minha mãe pela encosta do penhasco coberto de trepadeiras, fiquei subitamente agarrado aos galhos de um arbusto de chá que crescia na entrada de uma gruta.

Em câmera lenta, num segundo que poderia ter durado uma vida inteira, rompeu-se o cordão umbilical. Apanhado por dois galhos flexíveis, soltei um grito assustador - minha ode ao vigoroso e resistente arbusto de chá. Minha mãe - o anjo de meu nascimento, de minha morte - e eu nos separamos em pleno ar, com o sangue jorrando por todo o lado, respingando nas folhas. Fiquei balançando, suspenso nas alturas, preso nos galhos daquela planta abençoada. Minha mãe mergulhava em direção ao fundo, transformada num pequeno ponto que ia ficando cada vez mais diminuto, até que desapareceu no silêncio do vale que ficava lá embaixo, para nunca mais ser vista. Só muito depois é que eu viria a saber o motivo de minha mãe ter escolhido cantar a canção da morte tão cedo em sua vida. Por ora, eu estava pendendo de um galho, tão periclitantemente quanto se poderia estar.

Porém, o destino interveio mais uma vez. A misericórdia divina desceu sobre mim na forma do velho curandeiro da aldeia - magro, ossudo e cheio de fé. Quando ele me ouviu chorando e me viu preso no penhasco açoitado pela ventania, desceu como um macaco para me resgatar. Felizmente, era tão ágil quanto um deles, pois sua atividade exigia que percorresse as cadeias de montanhas, passando por todos os cumes, por todos os vales, indo de caverna em caverna em busca do raro ginseng e da saliva de andorinhas cujos ninhos eram encontrados apenas nos locais quase inalcançáveis escolhidos pelas aves.

Ele desceu pela encosta do penhasco, abrindo caminho por entre os galhos das árvores, por vezes não encontrando os pontos de apoio para os pés e quase despencando numa queda fatal. Mas, naquele dia, os céus permitiram que apenas uma morte ocorresse. Ofegante, conseguiu me agarrar. Este momento é o que eu chamo de meu segundo nascimento, e que me foi concedido pela graça e misericórdia de Buda, pelas mãos de uma pessoa que tinha praticado boas ações dia após dia, cuidando de um vilarejo repleto de gente pobre e doente. Digo que foi a graça e a misericórdia de Buda e foi exatamente isso, pois se fosse um outro homem que tivesse escutado o meu choro e que, mesmo pela vontade de Buda, tivesse em seu coração a disposição e o desejo de salvar aquele pequeno ser, fosse ele um homem de bom coração ou não, poderia nunca ter conseguido fazer o que o curandeiro fez, porque ao coração daquele velho faltava um filho. O grito que lancei no ar, e que foi ouvido por ele, ecoou nos recônditos de sua própria alma, como ele mais tarde me contaria. Não era apenas o berro de um menino qualquer, mas o do seu próprio sangue.

Ele estava a apenas alguns centímetros de distância de mim quando uma rajada de vento por pouco não me arrancou novamente das mãos da vida. Mas, segurando na raiz de uma árvore, ele estendeu um dos braços para me pegar, agarrando a minha perninha minúscula a tempo de me aninhar na dobra do seu outro braço. Para ganhar tempo e me salvar, fez o que ninguém tinha ousado fazer antes, descendo centenas de metros pelo penhasco íngreme, arranhando os joelhos e os calcanhares, quase fraturando os ossos, para logo em seguida correr de volta para casa ao encontro da mulher com quem era casado há quarenta anos, antes que os grandes felinos notívagos das montanhas pudessem sentir o cheiro do nosso rastro de sangue.

Pegaram a cabra e a ordenharam. A mulher me alimentou com aquele leite como se viesse do seu próprio seio. Naquela mesma hora e naquele exato momento, deram-me o nome de Shento - o topo da montanha, o cume.
- Ele vai querer alcançar o céu, como o nosso sagrado monte Balan - disse baba.
- E vai subir aos céus como o espírito de nossos ancestrais - acrescentou mama. - Será que podemos realmente ficar com ele como se fosse nosso próprio filho?
- Mas é claro que sim! Ele é uma dádiva da nossa querida montanha, uma recompensa pelas boas ações que praticamos.
- E se encaixa tão bem nos meus braços! - murmurou mama, acariciando meu rosto.

E assim termina a história do meu nascimento e começa a da minha vida.

O SOL SE PUNHA E A LUA subia no céu, e aos poucos fui me tornando um menino da roça, robusto e forte, com o apetite de uma criança três anos mais velha. Mama me dava comida com uma colher de bambu do tamanho da usada pelos adultos. Não precisava ficar cantando nenhuma canção infantil para que eu comesse. Eu devorava uma colherada depois da outra até soltar pequenos arrotos. Meu prato predileto era bolo de arroz doce. Na nossa aldeia pobre, onde a comida de todos os dias era o inhame, arroz doce era coisa rara e preciosa. Baba tinha que percorrer muitos quilômetros para atender pacientes em povoados distantes e ganhar um dinheirinho extra para que eu pudesse comer aqueles preciosos bolos de arroz. Foi à antiga floresta, cortou as melhores varas de bambu e construiu um cercadinho, grande o suficiente para que eu pudesse engatinhar e dormir. Pôs o cercado perto de sua escrivaninha na enfermaria. Com o auxílio de mama, atendia seus pacientes, dava conselhos e praticava acupuntura comigo ali ao lado.

Apoiado numa das paredes da enfermaria, havia um grande armário cheio de gavetas com medicamentos fitoterápicos que baba vendia aos seus pacientes, por grama ou por pitada. As gavetas tinham etiquetas com caracteres chineses antigos e misteriosos que apenas os médicos versados em textos clássicos saberiam reconhecer. Certo dia, aos dois anos e meio de idade, surpreendi baba ao citar e localizar dez das ervas mais comumente utilizadas. Aos três, eu já sabia reconhecer mais da metade delas. Quando tinha quatro anos, alertei baba de que ele tinha pegado uma pitada da erva errada para uma determinada receita. O aviso, disse baba, evitou que uma mulher grávida sofresse um aborto. Baba e mama estavam convencidos de que eu não era uma criança comum. Daquele dia em diante, baba começou a ler para mim os textos clássicos da medicina chinesa e me ensinou a memorizar os pontos usados na acupuntura.

Uma noite, deitado na cama antes de adormecer, escutei por acaso baba falando baixinho para mama:
- O destino do nosso filho é ser o melhor médico que essas montanhas jamais irão conhecer. Com a sua inteligência extraordinária, imagine só quantas curas vai descobrir!
- Não! - retrucou mama.
- E por que não? Por que é que você discorda disso?
- O destino do menino vai além do seu desejo limitado - disse ela.
- Um dia, ele vai comandar milhares e governar milhões.
- Você não está sendo um pouco ambiciosa demais, minha querida esposa? - ouvi baba dizer.
- De jeito nenhum. Você não percebe? O nascimento dele foi um acontecimento trágico, e sua história não é diferente da vida de muitos imperadores que, vindos do nada, ascenderam ao trono dourado.

Baba ficou em silêncio por um momento.
- É... já li em algum lugar que os acontecimentos trágicos formam homens extraordinários.
- É isso mesmo, mas, infelizmente, esses grandes homens nunca foram muito felizes.
- Pois prefiro que ele seja um homem comum que viva feliz, e que tenha uma vida longa o suficiente para estar ao nosso lado, na hora da nossa morte - disse baba.
- Já é tarde demais para isso. O destino dele começou quando ele respirou pela primeira vez o ar daquele penhasco. Já é uma grande sorte para nós tê-lo conosco durante o tempo que o nosso bom e misericordioso Buda permitir.

Naquela noite, infringi as regras e me aconcheguei na cama dos dois, dormindo entre eles até o sol raiar. Mas, mesmo que falassem freqüentemente sobre mim, nunca mencionavam meus verdadeiros pais. Se esse tabu fosse quebrado, o fantasma do meu passado voltaria para assombrar a nossa vida quase perfeita, ainda que simples.

Fonte:
http://veja.abril.com.br/

Nenhum comentário: